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Processo n.º 668/01
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Em 8 de Junho de 2000, A., juiz de direito, apresentou, no Conselho Superior da Magistratura, recurso da deliberação de 3 de Maio de 2000, daquele Conselho, que, decidindo o processo disciplinar n.º ----/2000, julgou amnistiada infracção disciplinar cometida na condução do processo n.º -----/----- e lhe aplicou uma pena disciplinar de 25 dias de multa, por infracção disciplinar decorrente do sucessivo adiamento da decisão instrutória no processo n.º -----/----.
Tendo o recurso sido remetido ao Supremo Tribunal de Justiça em 15 de Junho desse ano, foi admitido em 6 de Julho seguinte.
Nas alegações apresentadas, o recorrente suscitou, entre o mais, duas questões de constitucionalidade: a do artigo 111º do Estatuto dos Magistrados Judiciais
(Lei n.º 21/85, de 30 de Julho), por culminar “procedimento disciplinar não autorizado pelo sistema normativo dos arts. 201/1, 203, 205/2, 209, 212/3,
215/1.2, 217/1.3 e 218/1.2, da CRP”; a dos artigos 117º, n.º 1 e 122º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, “por contrariarem o disposto no art. 269/3 CRP”, na medida em que:
“(1) não foram articulados na acusação os factos a que se subsumiria a culpa do visado (todavia dados como provados, depois: (...)”;
“(2) não ficou a constar a pena (ou qualquer pena) que por fim foi aplicada ao recorrente”;
“(3) sobre estes 2 ita, o visado (ou mandatário) não foi ouvido nunca, contra o disposto nos arts. 100º ss CPA ou art. 52º/1 CPA (c/ remissão para o artº 252º/1 CPC)”.
Em 27 de Setembro de 2001 a Secção do Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão, que, designadamente, considerou o seguinte:
- a defesa do bom nome – que o recorrente arvorara como fundamento do recurso, no que diz respeito à decisão de aplicação da amnistia – já tinha sido contemplada no n.º 1 do artigo 10º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, ao permitir que os arguidos por infracções previstas no artigo 7º pudessem requerer, no prazo de 10 dias a contar da sua entrada em vigor, que a amnistia lhes não fosse aplicada, pelo que, não o tendo feito, o recorrente aceitara aquela amnistia, não podendo, até em face do disposto nos artigos 166º e 178º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, recorrer contenciosamente para o Supremo Tribunal de Justiça com tal fundamento;
- a questão da inconstitucionalidade da competência do Conselho Superior da Magistratura para ordenar ex officio um procedimento disciplinar já fora decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça, “no acórdão de 7 de Junho de 2000, proferido no recurso n.º -----/2000, recurso este intentado pelo ora Recorrente da deliberação do Plenário do CSM de 18 de Janeiro de 2000”;
- “a acusação não enferma de falta de articulação de factos que integrem o cometimento da infracção”;
-“embora a decisão que aplicou a sanção ao aqui recorrente tenha considerado circunstância não referida na acusação – ausência de coincidência temporal entre diligências indicadas como impeditivas do proferimento da leitura da decisão instrutória em causa – a mesma não pode ser configurada como factualismo novo sobre o qual o arguido não tenha tido oportunidade de defesa, já que as motivações subjacentes aos adiamentos verificados não constitu[em] elemento indispensável à incriminação, antes respeitando à defesa, enquanto causa de exclusão da culpa.”;
- “as razões que justificam esta exigência [a da indicação das penas aplicáveis] que também decorre da noção de processo equitativo, a que se refere o n.º 1 do art. 6º da Convenção [Europeia dos Direitos do Homem], cessam quando se trata da regulamentação do processo disciplinar respeitante a Magistrados cujo conhecimento da lei e, em particular, daquela que regula a respectiva actuação,
é de presumir. Neste caso, os direitos de defesa encontram-se suficientemente garantidos pela identificação da infracção disciplinar imputada e indicação dos demais elementos mencionados no art. 117º, n.º 1 do EMJ”;
- “embora se encontre prejudicada a questão das inconstitucionalidades invocadas pelo Recorrente face ao entendimento acabado de expor (...) da análise dos autos não decorre, conforme vimos, que as garantias de audiência e defesa do arguido, designadamente pela não aplicação de determinados preceitos ao processo disciplinar em causa (como é o caso do art. 100º, do CPA), tenham sido preteridos, obstando à eficaz defesa do recorrente. Consequentemente, não se verificam as aludidas inconstitucionalidades.”
Este aresto foi proferido com um voto de vencido que, invocando a consagração constitucional do direito a um processo equitativo (artigo 20º, n.º 4) e a jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre tal direito, considerou dever “conceder-se ao arguido em processo disciplinar o direito a pronunciar-se sobre o Relatório Final”, acrescentando:
“No processo disciplinar contra magistrados, findas as diligências de prova que seguem a contestação do arguido, tem lugar o Relatório Final em que o Instrutor, face aos resultados dessas diligências e ao direito aplicável, propõe o arquivamento do processo ou a aplicação ao arguido da pena que entenda adequada. Este não dispõe, antes da apreciação do Relatório pelo CSM, de qualquer possibilidade de contestar as apreciações aí formuladas. E os seus direitos de defesa encontram-se tanto mais coartados quanto a apreciação da matéria de facto pelo CSM está sujeita a um controlo limitado pelo Supremo. Nestas condições, o princípio da igualdade de armas impõe a notificação ao arguido do Relatório Final, com a oportunidade de sobre ele se pronunciar.”
2. O arguido interpôs recurso de constitucionalidade deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade com a Constituição das normas dos artigos 111º, 117º, n.º 1 e 122º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na interpretação que lhes foi dada no acórdão recorrido. Em resposta ao despacho previsto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, veio esclarecer que o sentido que reputa inconstitucional da norma do artigo 111º daquele Estatuto:
“traduz-se na concepção acolhida no acórdão recorrido de o Conselho Superior da Magistratura deter poderes de ofício para instaurar qualquer procedimento disciplinar contra Magistrados Judiciais, procedimento esse que, depois, finaliza com uma decisão sobre o caso;”
E esclareceu também o sentido tido por inconstitucional das normas dos artigos
117º, n.º 1 e 122º:
“traduz-se na afirmação pela instância recorrida de não ser obrigatória (não dando por isso origem a nulidade do processo e da decisão final inquinada), a notificação do parecer final do instrutor ao arguido, bem como a afirmação de não constituírem notas essenciais da acusação (e do processo disciplinar contra magistrados) quer a intercalar referência explícita à pena aplicável, quer o articulado dos factos subsumidos à culpabilidade, todavia dados como provados depois”.
Foi então determinada a produção de alegações, tendo concluído assim o recorrente:
“a) Na leitura que o Acórdão do STJ, recorrido, deu dos artºs 111 e 149/ª EMJ, é permitida ao CSM acção disciplinar oficiosa contra os Magistrados Judiciais; b) Tal interpretação dos preceitos torna-os inconstitucionais, por contrariedade com os artºs. 202/1.2, 203, 215/1 ss, 217/1.3, 218/1 e 218/2 CRP; c) Os quais fazem emergir sistematicamente uma directiva constitucional que impõe a vigência do princípio do pedido nas causas disciplinares contra os juízes; d) Na verdade, os Magistrados Judiciais, como titulares do órgão de soberania Tribunais, um e cada um independentes, têm de ter um estatuto de pares, sem subordinação interna; e) E a característica disciplinar oficiosa emerge, pelo contrário, num corpo de subordinados, tal como são os funcionários da Administração Pública; f) Aliás, essa vigência do princípio do pedido, que se conclama, constitui garantia fundamental implícita, ordenada à protecção do jus dicere. g) E recobra sentido na substância do estatuto (de Magistrados Judiciais)que a Constituição outorga a todos os vogais do CSM (artº 118/2 CRP). h) Bem como na norma do artº 168/1 EMJ que, no cumprimento dos artºs 202/1.2,
212/3, 217/1.3 e 218/2 CRP, atribui competência contenciosa ao STJ e não ao STA, no limite, afectando o desenrolar da causa disciplinar contra magistrados, perante o Conselho, a um garantismo parajurisdicional (e simultaneamente alienando as matérias de governo da magistratura do campo administrativo estrito). i) Por outro lado, a leitura que o Acórdão do STJ, recorrido, deu dos artºs
117/1 EMJ, e afinal de contas dos artºs 122 e 123 do mesmo diploma legal, no sentido de não exigirem a consignação da pena disciplinar na acusação, a audição do arguido perante o desígnio de chegar a ser agravada a proposta de pena apresentada pelo instrutor, e sobretudo de não lhe ser notificado o relatório final e para sobre ele se pronunciar, é outrossim inconstitucional; j) Na verdade, contradiz o artº 20/4 CRP, mesmo se os arguidos são juízes de direito; e no âmbito da directiva constitucional de um processo devido e justo, o princípio do contraditório e a verdadeira regra de arquitectura dos ordenamentos jurídicos democráticos: audite et altera pars; k) Contudo, foi sob uma interpretação ao contrário [aquela, e não outra diferente da referida em i)] que o STJ fez aplicação das normas sobreditas, defendendo a confirmação do acto sancionador do CSM que estava sob o fogo da crítica: ...as razões que justificam [a indicação da pena disciplinar aplicada] cessam quando se trata da regulamentação de processos disciplinares respeitantes a magistrados;...no processo disciplinar o que importa notificar ao arguido[juiz] é apenas qualquer modificação quanto ao objecto da acusação;...[a notificação para pronúncia sobre o relatório final] representa excesso de garantismo [no caso dos magistrados judiciais].”
Por sua vez, a entidade recorrida concluiu deste modo as suas contra-alegações:
“1 – A iniciativa disciplinar e aplicação de eventual sanção são momentos diferentes da competência disciplinar atribuída ao Conselho Superior da Magistratura, que o próprio Estatuto também não distingue, no sentido de serem atribuições de diferentes entidades, como pretende o recorrente, no que respeita
à iniciativa ou instauração oficiosa de procedimento disciplinar contra magistrado judicial.
2 – O relatório final não constitui um acto cujos efeitos se reflictam na esfera jurídica de um arguido, ou seja, não se configura um acto lesivo de direitos e, por isso, também no caso em apreço não afectou nem os direitos, nem os interesses legalmente protegidos do recorrente.
3 – Não são inconstitucionais os preceitos do Estatuto dos Magistrados Judiciais invocados pelo recorrente.”
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos A) A norma do artigo 111º do Estatuto dos Magistrados Judiciais
3. A primeira norma impugnada no presente recurso é o artigo 111º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei n.º 21/85, de 30 de Julho), na interpretação segundo a qual atribui ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) competência para proceder oficiosamente à instauração de procedimentos disciplinares aos magistrados sujeitos ao seu poder disciplinar.
Ora, em recente decisão, de recurso interposto também pelo ora recorrente, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que negou provimento ao recurso contencioso que este havia interposto da deliberação do Conselho Superior da Magistratura que lhe mandara instaurar procedimento disciplinar – acórdão n.º
268/03 (processo n.º 465/00) –, já este Tribunal Constitucional, por esta mesma Secção, se pronunciou sobre argumentação idêntica à agora apresentada contra a constitucionalidade do artigo 111º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (à excepção da conclusão h) cujo conteúdo, todavia, também foi tratado na fundamentação do referido acórdão). E concluiu, por unanimidade, “que a norma do art.º 111.º do EMJ quando entendida no sentido de o CSM poder oficiosamente exercer a acção disciplinar contra os juízes dos tribunais judiciais não é materialmente inconstitucional por violação das disposições constitucionais que o recorrente aponta. Sendo assim o recurso não merece provimento.”
A questão é, neste aspecto, a mesma do processo n.º 465/00, sendo as mesmas as partes, e sendo a mesma a argumentação produzida. E mesmo a decisão ora recorrida se limita, nesta matéria, a remeter para outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – justamente a decisão recorrida no citado processo n.º
465/00.
Pelo que pode reiterar-se, com os mesmos fundamentos, a decisão proferida neste acórdão 268/03, no sentido de se não ter por inconstitucional a norma do artigo
111º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, interpretada no sentido de que cabe ao Conselho Superior da Magistratura instaurar oficiosamente processos disciplinares contra magistrados judiciais.
B) As normas dos artigos 117º, n.º 1, e 122º do Estatuto dos Magistrados Judiciais
4. Resta, pois, apreciar a conformidade constitucional dos artigos 117º, n.º 1, e 122º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, cuja redacção é a seguinte:
“Artigo 117º
(Acusação)
1. Concluída a instrução e junto o registo disciplinar do arguido, o instrutor deduz acusação no prazo de dez dias, articulando discriminadamente os factos constitutivos da infracção disciplinar e os que integram circunstâncias agravantes ou atenuantes, que repute indiciados, indicando os preceitos legais no caso aplicáveis.”
“Artigo 122º
(Relatório) Terminada a produção da prova, o instrutor elabora, no prazo de quinze dias, um relatório, do qual devem constar os factos cuja existência considere provada, a sua qualificação e a pena aplicável.”
O que está em causa, no presente recurso, é, por um lado, o entendimento do primeiro preceito no sentido de dispensar referência explícita na acusação à pena aplicável e ao elenco dos factos que posteriormente (na decisão final) vieram a ser determinantes do juízo sobre a culpa do agente, e, por outro lado, o entendimento da segunda disposição no sentido de dispensar a notificação do relatório final ao arguido antes da decisão final.
5. Quanto aos factos que vieram, na decisão final, a ser determinantes do juízo sobre a culpa do agente, é claro que a omissão, na acusação, da imputação de falta de veracidade das justificações posteriormente apresentadas, na defesa, para os sucessivos adiamentos da leitura da decisão instrutória em causa, não envolve, só por si, qualquer violação do princípio constitucional da proibição de indefesa.
Na verdade, a defesa do arguido contém já uma impugnação dos factos constantes da acusação. Na acusação formulam-se imputações contraditadas posteriormente, na defesa. A consistência de uma e de outra – da afirmação e sua impugnação – vêm a ser aferidas na decisão final, apenas antecipando o relatório o juízo provável da entidade decisora. Trata-se, simplesmente, da confrontação da imputação de factos e sua impugnação, na sequência da apreciação da prova existente. Se na decisão final – ou no relatório que, na sequência da instrução, a prepara – se contêm afirmações relativas à falta de veracidade de afirmações contidas na acusação ou na impugnação dos factos constantes da contestação, não se afigura necessário conceder nova oportunidade ao arguido de contrariar essas afirmações.
Do reconhecimento constitucional das garantias de defesa ao arguido não pode, pois, concluir-se que, após a defesa apresentada contra uma imputação, seja sempre constitucionalmente imposta a concessão de uma possibilidade de renovar tal defesa quando a inicialmente apresentada não tenha sido convincente, ou tenha sido contrariada pelo relatório final da instrução, que põe em dúvida a veracidade de justificações apresentadas na defesa.
Não há assim, quanto a este ponto, relativo ao entendimento seguido nos autos sobre a articulação dos factos constitutivos da infracção, tal como exigido pelo artigo 117º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, qualquer desconformidade com os princípios constitucionais.
6. Quanto à pena adequada à infracção, não constava referência explícita a ela na acusação, vindo a ser proposta apenas no “relatório final”. Para justificar a desnecessidade de formular uma referência explícita a tal pena, a decisão recorrida invocou a especial qualificação do seu destinatário: “quando se trata da regulamentação do processo disciplinar respeitante a Magistrados cujo conhecimento da lei e, em particular, daquela que regula a respectiva actuação,
é de presumir”, os direitos de defesa encontrar-se-iam suficientemente garantidos pela identificação da infracção disciplinar imputada e pela indicação dos demais elementos mencionados no art. 117º, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
Ora, antes de mais, sendo certo que o magistrado em causa se encontra, desde o início, representado no processo por advogado – como acontece em muitos outros processos disciplinares –, serão legítimas dúvidas sobre se tal presunção de conhecimento não provará de menos (ou demasiado).
Aliás, como a própria entidade recorrida não deixou de sublinhar nas suas contra-alegações, citando Marcello Caetano, “na lei disciplinar não se estabelece a correspondência rígida de certas sanções para cada tipo de infracção, deixando-se a quem haja de decidir amplo poder discricionário para punir as infracções verificadas.” O que é dizer que, devido a este amplo poder discricionário, na ausência de indicação na acusação sobre a pena entendida aplicável – que, no caso, resultaria das disposições dos artigos 85º, n.º 1, alínea b), 87º, 92º e 96º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, e não das dos artigos 3º, n.ºs 1, 4, alínea a) [certamente referida por lapso, em vez da alínea b)], e 6 do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração, a que, apesar de tudo, se fez ainda referência (como notou na sua alegação o representante do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça)
–, não podia o acusado antecipar qual seria a sanção que enfrentava.
Tal não constituirá, porém, por si só, violação do princípio da “proibição de indefesa”, que se deve considerar consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição (cfr. Acórdãos n.ºs 440/94, 521/00 e 6/01, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 1 de Setembro de 1994, de
31 de Janeiro de 2001 e de 22 de Fevereiro de 2001). Com efeito, caso, posteriormente, viesse a ser dada ao arguido a possibilidade de, em tempo útil, se pronunciar (e reagir) relativamente à concretização, proposta no relatório final, da pena adequada à gravidade da infracção – com sua identificação, ao menos, dentro de certos limites – poderia ainda admitir-se que a disparidade entre o conteúdo legalmente imposto à acusação pelo artigo 117º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, e o que é imposto no relatório final pelo artigo 122º do mesmo Estatuto, não implicava inconstitucionalidade daquela primeira norma. Tal disparidade é, aliás, análoga à que existe entre o n.º 4 do artigo 59º e o n.º 1 do artigo 65º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 26 de Janeiro.
Pode, pois, concluir-se que, se o relatório final tivesse sido notificado ao recorrente ou devesse sê-lo – como foi entendimento minoritário no Supremo Tribunal de Justiça –, a omissão de identificação da sanção adequada à infracção não cobraria relevância no sentido de gerar a desconformidade do entendimento do artigo 117º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, adoptado na decisão recorrida, com os direitos de defesa constitucionalmente garantidos (isto, qualquer que pudesse, porventura, ser a relevância de tal norma se dirigir a um universo de destinatários especialmente qualificados). Os direitos de defesa não seriam afectados se o grau de empenhamento na defesa ainda pudesse ser corrigido, depois da notificação do relatório final.
Não foi este, porém, o entendimento subjacente à decisão recorrida. O que remete o objecto do presente processo para a apreciação da questão relativa à norma do artigo 122º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na interpretação em causa, que não impõe a não comunicação ao arguido do relatório final.
7. Está agora em questão, não o entendimento, já exposto, da norma do artigo
117º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, sobre os requisitos de conteúdo da acusação, mas antes a norma (referida a um momento posterior do processo) do artigo 122º do mesmo diploma, interpretada no sentido de não ser exigível a notificação desse relatório final ao arguido, abrindo novo contraditório antes da decisão do processo disciplinar, quando a acusação não tenha incluído a indicação das normas tidas por violadas e da natureza da pena adequada à infracção.
8. A existência de um relatório final da entidade instrutora, culminando a fase instrutória, é elemento constante em vários processos contra-ordenacionais e disciplinares.
De comum, têm estes a particularidade de correrem junto de entidades administrativas (o exercício do poder disciplinar das entidades privadas não prevê como momento necessário um relatório final da entidade instrutora), o que, só por si, poderá tornar problemática a convocação do parâmetro do n.º 1 do artigo 20º da Constituição. Como se salienta na doutrina (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p.
164, anotação V ao artigo 20º),
“Como candidato positivo reentrante no âmbito normativo do n.º 1 deve assinalar-se ainda a proibição de ‘indefesa’ que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses.” (segundo itálico aditado)
É certo que nas referências aos direitos de “audiência e defesa” constantes no n.º 10 do artigo 32º e no n.º 3 do artigo 269º da Constituição se pode fazer derivar um princípio análogo em matéria de processo de contra-ordenações e de processo disciplinar.
Todavia – sendo, aliás, corrente a existência desse relatório final e a sua não notificação ao arguido, sem que, até ao momento, tal tenha suscitado dúvidas de constitucionalidade –, desde que a acusação – ou “nota de culpa”, ou “nota de ilicitude” – comunicada ao arguido contenha os factos que lhe são imputados, o seu enquadramento legal e a indicação da sanção aplicável, de forma a permitir o exercício do contraditório e a audiência e defesa do arguido, uma exigência geral de renovação da sua audição após o relatório final da entidade instrutora
– que, de resto, não vincula a entidade decisória – não se afigura, porém, resultar da Constituição.
Isto, desde logo, porque o sentido deste relatório final pode ser muito diverso. Em muitos casos, tal relatório constitui a própria essência da decisão – como quando esta cabe a uma entidade política, sem necessária competência técnica, que as mais das vezes se limita a remeter para os seus termos. Outras vezes, tal relatório é apenas uma síntese do processo, na conclusão da sua instrução – designadamente, em situações em que a decisão cabe a uma entidade decisória especializada –, não permitindo o conhecimento do seu conteúdo antecipar o sentido da decisão final.
Numa certa perspectiva, poderia dizer-se que, no primeiro caso, a contradição ou insuficiência da fundamentação do relatório final (que será a da decisão) se fará pelo recurso contencioso – ou, mesmo, que será até preferível para o arguido que, padecendo a fundamentação de decisão de algum vício, esse seja suscitado perante uma entidade jurisdicional (na medida em que isso invalidará a decisão condenatória, ao passo que a sua suscitação posteriormente ao relatório final apenas obrigaria a novo “relatório final” de uma qualquer entidade tecnicamente habilitada a sustentar a decisão do órgão político, reabrindo-se a questão da sua notificação ao arguido, e assim sucessivamente). E, na mesma perspectiva, no segundo caso, havendo um órgão decisório especializado, também a notificação ao arguido do conteúdo do relatório final será dispensável: na medida em que a decisão final o venha a adoptar, as objecções que lhe faria serão dirigidas a um órgão jurisdicional; na medida em que o não adopte, as objecções serão dispensáveis.
Em resumo: segundo esta perspectiva, por vezes o relatório final equivale à própria fundamentação da decisão, mas outras vezes o relatório final em nada a antecipa. A primeira situação é típica, mas não exclusiva, de decisões a cargo de órgãos políticos ou, em todo o caso, não especializados no proferimento de decisões. A segunda situação é típica, mas não exclusiva, de decisões a cargo de órgãos decisórios especializados ou, em todo o caso, tecnicamente habilitados a proferi-la.
Seja, porém, como for quanto a esta possibilidade de exercício do contraditório no recurso contencioso, é certo que, perante esta diversidade de situações, a imposição de uma obrigação geral de comunicação do relatório final em todos os processos disciplinares introduziria uma espécie de reclamação de uma decisão ainda não formalizada (no primeiro caso), ou um direito de audição sobre o conteúdo de um formalismo processual que umas vezes pode ser relevante, mas outras vezes é irrelevante para a decisão final.
E, em qualquer das alternativas, não lograria realizar melhor a garantia dos direitos de audiência e defesa dos arguidos do que a sua pronúncia sobre o conteúdo e enquadramento legal da acusação, ao menos nos casos em que a decisão do processo não esteja vinculada ao relatório final (obviamente, se este circunscrevesse aquela, aumentariam as garantias do arguido – mas à custa da limitação dos poderes decisórios e da criação de uma forma anómala de reclamação de uma espécie de “protodecisão”), e, evidentemente, desde que esta acusação contenha os elementos necessários para o exercício do direito de defesa.
9. Tendo em conta a ratio geral deste tipo de formalidade processual – o relatório final –, há que apurar se, no caso dos autos, a notificação ao arguido desse relatório é constitucionalmente imposta.
Num processo disciplinar como o do presente caso, o relatório final do instrutor
é, indiscutivelmente, apresentado à entidade especialmente qualificada para decidir sobre ele: o Conselho Superior da Magistratura. Dispõe o artigo 217º, n.º 1 da Constituição que o exercício da acção disciplinar sobre juízes dos tribunais judiciais compete ao Conselho Superior da Magistratura “nos termos da lei”. E já se viu o que a lei (os artigos 117º e 122º da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho) estabelece quanto a isso, analisando o entendimento efectuado daquele artigo 117º, n.º 1, sobre o conteúdo da acusação.
A lei prevê, numa fase posterior à instrução, a existência deste relatório final, mas nada obriga a decisão do Conselho Superior da Magistratura a seguir o relatório do instrutor, nem sequer se impondo expressamente um dever de fundamentação onde não for concordante com esse relatório – relatório, este, que nem sequer é tido formalmente como “proposta”, como acontece naquele Estatuto Disciplinar da função pública (artigo 66º, n.º 4).
No artigo 123º – fora do perímetro de apreciação deste Tribunal –, o Estatuto dos Magistrados Judiciais determina, porém, que a decisão final, “acompanhada de cópia” do relatório final, seja notificada ao arguido do mesmo modo que o foi a acusação. Tal obrigação de notificar, além da decisão final (e depois desta, portanto), o relatório final, que não encontra paralelo no domínio disciplinar da função pública (cfr. artigo 69º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro) nem no domínio contra-ordenacional, é logo um indício da especial relevância que é conferida pelo legislador a este relatório.
Sendo o conteúdo do exercício da acção disciplinar sobre juízes dos tribunais o resultante da lei, e determinando a lei, expressamente, que o relatório final do instrutor do processo disciplinar seja notificado ao arguido depois da decisão final (excepto no caso apontado), não pode, porém, ter-se por inconstitucional essa opção do legislador.
Mas tal pressupõe, como resulta do que se disse, que logo pela comunicação da acusação (e, portanto, pelo teor desta), possam ter ficado salvaguardados os direitos constitucionais de audiência e defesa. É isso, porém, que, como se viu, se não verificou no presente caso.
10. Com efeito, se a solução sobre a pena aplicável, constante do relatório final, vem a ser adoptada na decisão final, entende este Tribunal que o direito de audiência e defesa do arguido (cfr. o artigo 50º do Regime Geral das Contra-ordenações – Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, e pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro) exigirá, pelo menos, que o arguido tenha prévio conhecimento do relatório final quando nele se inclua pela primeira vez essa proposta de sanção
– designadamente, quando a acusação não tenha incluído a indicação das normas tidas por violadas e da natureza da pena que lhe é aplicável.
Razão análoga justifica, aliás, que o próprio Estatuto dos Magistrados Judiciais preveja, no n.º 5 do artigo 85º, um caso de notificação ao arguido do relatório do inspector judicial: não havendo processo nesse caso (de aplicação de mera advertência), não há acusação, e o modo de o arguido se defender é perante o relatório (final).
Importa relembrar que, como acima se viu, foi seguido no presente caso o entendimento do artigo 117º do Estatuto dos Magistrados Judiciais no sentido de dispensar a indicação na acusação dos preceitos legais deste Estatuto que se têm como violados, bem assim como dos que serão invocados para punir tal violação. Neste contexto, não poderá dispensar-se também, à luz dos direitos constitucionais de defesa do arguido, a comunicação do relatório final do instrutor do processo disciplinar a um magistrado judicial, antes da decisão do Conselho Superior da Magistratura que o segue, quando aquele relatório final contém pela primeira vez a indicação da sanção adequada à gravidade da infracção, e que estima aplicável ao arguido.
É que a desnecessidade de comunicação do relatório final só se poderia basear, justamente, na integral transparência da avaliação prévia feita no libelo acusatório, de modo a permitir a informada, consciente e empenhada defesa do arguido. Tendo seguido um entendimento estrito (ou, mesmo, limitativo) das garantias estabelecidas pelo legislador parlamentar na letra do artigo 117º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, não pode deixar de se considerar desconforme com as garantias de audiência e defesa que a Constituição estabeleceu, em geral, para os processos sancionatórios, ao menos, a ausência de outros modos de realização da teleologia dessa norma, como é, no caso, a notificação ao arguido do conteúdo do relatório final do instrutor, com possibilidade de reacção adequada e sem alteração dos seus termos, em sentido desfavorável ao arguido, na decisão final.
Pois não tendo a acusação incluído a indicação das normas tidas por violadas pelo arguido e da pena que é adequada à gravidade da infracção, se o relatório final não for comunicado a este, ficará de todo sem possibilidadade de se defender tendo em conta esta pena, e quanto à gravidade estimada dos factos em questão.
Nessas circunstâncias, só com a notificação do relatório final a avaliação do que está em jogo no processo disciplinar, para efeitos da sua defesa, não seria sonegada ao arguido (como seria também, por exemplo, se, constando da acusação um conjunto de imputações e uma certa pena a elas aplicável, a decisão final – amparada ou não, nesse ponto, pelo relatório final do instrutor – viesse a aplicar pena de natureza mais grave), não havendo violação dos direitos que a Constituição lhe reconhece em processos contra-ordenacionais (artigo 32º, n.º
10) e disciplinares (artigo 269º, n.º 3).
Perante um entendimento como o que foi seguido da norma relativa ao conteúdo da acusação, os direitos de defesa do arguido exigiriam, pois, a possibilidade de esta defesa vir a ser exercida, pelo menos, perante o relatório final (não sendo, quanto a este ponto, e perante tal entendimento prévio do artigo 117º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, decisiva a qualificação do relatório final como acto lesivo dos direitos do arguido, cujos efeitos jurídicos se reflictam, externamente, na sua esfera).
O recurso merece, pois, provimento, por violação do direito de defesa reconhecido no artigo 32º, n.º 10, da Constituição da República, quanto ao artigo 122º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na interpretação segundo a qual este preceito não impõe a comunicação ao arguido do relatório final do instrutor, quando a notificação da acusação ao arguido não tenha também incluído a indicação das normas tidas por violadas e da natureza da pena que lhe é aplicável, e a decisão final seja no mesmo sentido daquele relatório.
III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional o artigo 111º do Estatuto dos Magistrados Judiciais; b) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 10, da Constituição, a norma do artigo 122º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na interpretação segundo a qual não impõe a comunicação ao arguido do relatório final do instrutor, quando a notificação da acusação ao arguido não tenha incluído a indicação das normas tidas por violadas e da natureza da pena que lhe
é aplicável, e a decisão final seja no mesmo sentido deste relatório; c) Em consequência, determinar a reforma da decisão recorrida em consonância com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 28 de Outubro de 2003 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos