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Proc. n.º 418/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Por decisão sumária de fls. 400 e seguintes, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A., pelos seguintes fundamentos:
“[...]
8. Pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional da norma do artigo 1905º, n.º 2, do Código Civil, interpretada no sentido de que «constitui uma relação de grande proximidade uma estada de 8 horas de 15 em 15 dias de um progenitor com um menor seu filho»
(supra, 7.).
O Tribunal Constitucional pacificamente tem entendido que, no âmbito do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto pelo recorrente –, tanto podem ser apreciadas normas, em si mesmas consideradas, como normas, numa determinada vertente interpretativa. Assim sendo, quando o recorrente pretende a apreciação de uma norma, numa certa interpretação, aparentemente nenhum obstáculo existiria ao conhecimento de tal objecto do recurso.
Sucede porém, que, no presente caso, o recorrente efectivamente não pretende a apreciação da conformidade constitucional de uma norma, em certa dimensão interpretativa. Pretende, sim, a apreciação da conformidade constitucional de uma decisão judicial: concretamente, daquela que dispôs sobre o destino da sua filha menor e que decretou um determinado regime de visitas. Na verdade, ao pretender a apreciação da norma do artigo 1905º, n.º 2, do Código Civil, interpretada no sentido de que «constitui uma relação de grande proximidade uma estada de 8 horas de 15 em 15 dias de um progenitor com um menor seu filho», o recorrente mais não faz do que solicitar ao Tribunal Constitucional que se pronuncie sobre um determinado plano de visitas estabelecido pelo tribunal, nomeadamente sob o ponto de vista da sua frequência e, em última análise, adequação à manutenção de uma relação de proximidade entre pai e filha. Não é, em suma, uma interpretação normativa que o recorrente questiona, mas o modo de preenchimento de um conceito indeterminado pelo tribunal recorrido. Ora, não possuindo o Tribunal Constitucional poderes para apreciar a conformidade constitucional das decisões judiciais em si mesmas consideradas
(cfr. as várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional), não pode conhecer-se do objecto do presente recurso.
9. A isto acresce que, ainda que se considerasse ser idóneo o objecto do presente recurso, outra razão haveria para dele não se conhecer.
É que (contrariamente ao que afirma: supra, 7.), o recorrente não suscitou, no processo, a inconstitucionalidade da interpretação normativa que identifica no requerimento de interposição do recurso (cfr. artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
Nas alegações para o Tribunal da Relação de Lisboa, suscitou a inconstitucionalidade do modo de condução do processo, bem como a inconstitucionalidade de uma outra interpretação (aquela segundo a qual é permitido que a guarda dos filhos caiba a um pai e não a outro – cfr. supra, 3., conclusão IV); nas alegações para o Supremo, suscitou a inconstitucionalidade da aplicação da norma do artigo 1905º, n.º 2, do Código Civil (cfr. supra, 5., conclusão X).
Assim sendo, e ainda que pudesse considerar-se que o recorrente pretende a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, de uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, não poderia este Tribunal conhecer de tal questão, por não estar preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso: a invocação pelo recorrente, durante o processo, da inconstitucionalidade da norma, na interpretação que pretende ver apreciada.”
2. Notificado desta decisão sumária, A. veio agora apresentar o requerimento de fls. 409 e seguintes, em que impugna a decisão proferida pela relatora, arguindo a respectiva nulidade.
Embora o reclamante não invoque expressamente o artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, entende-se que o pedido formulado consubstancia a “reclamação para a conferência” prevista naquela norma legal.
3. Alega o reclamante, em primeiro lugar, que tal decisão é contraditória e, em segundo lugar, que contrariamente ao aí sustentado, suscitara no processo a inconstitucionalidade da interpretação normativa identificada no requerimento de interposição do recurso.
3.1. Quanto ao primeiro fundamento invocado – contradição da decisão sumária – é notória a falta de razão do requerente.
Na verdade, a afirmação, na parte relativa à indicação do pedido apresentado perante o Tribunal, de que “o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional de uma norma num certo sentido” não contradiz a conclusão da decisão do Tribunal de que “o recorrente efectivamente não pretende a apreciação da conformidade constitucional de uma norma em certa dimensão interpretativa” e de que “pretende, sim, a apreciação da conformidade constitucional de uma decisão judicial”.
E não a contradiz, porque, na aferição da idoneidade do objecto de um recurso, o Tribunal Constitucional não está sujeito às qualificações feitas pelas partes dos seus próprios pedidos. Dito de outro modo: mesmo que o recorrente qualifique o objecto do seu recurso como uma interpretação normativa, o Tribunal Constitucional não está adstrito a tal qualificação, podendo perfeitamente concluir que, não obstante a formulação do recorrente, do que verdadeiramente se trata é de um pedido de apreciação da conformidade constitucional de uma decisão judicial.
Portanto, e em suma, a decisão sumária não padece de qualquer contradição, já que nela a relatora se limitou a qualificar como inconstitucionalidade da decisão impugnada uma realidade que o recorrente qualificava como inconstitucionalidade normativa: como tal, não conheceu do objecto do recurso.
3.2. O reclamante afirma seguidamente que, contrariamente ao que se afirma na decisão sumária reclamada, suscitou no processo a inconstitucionalidade da interpretação normativa identificada no requerimento de interposição do recurso.
Ora, quanto aos argumentos subjacentes à alegação do reclamante, nesta parte, justificou-se claramente na decisão sumária reclamada que, ainda que pudesse considerar-se que o recorrente pedia a apreciação de uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, não poderia este Tribunal conhecer de tal questão, por não estar preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso: a invocação pelo recorrente, durante o processo, da inconstitucionalidade da norma, na interpretação que pretende ver apreciada e que identificou no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
Na verdade, nas alegações para o Tribunal da Relação de Lisboa, o então recorrente suscitou a inconstitucionalidade do modo de condução do processo, bem como a inconstitucionalidade de uma outra interpretação (aquela segundo a qual é permitido que a guarda dos filhos caiba a um pai e não a outro
– cfr. conclusão IV dessas alegações, transcrita no ponto 3. da decisão sumária); nas alegações para o Supremo, suscitou a inconstitucionalidade da aplicação da norma do artigo 1905º, n.º 2, do Código Civil [certamente por lapso, escreveu artigo 1405º, n.º 2, do Código Civil] e a violação, pelo acórdão então recorrido, dos artigos 63º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 84/84, 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 1878º, n.º 1, e 1905º, n.º 2, do Código Civil, 495º, 497º, e 668º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil e 13º, n.º 1, e 36º, n.ºs 3, 5 e 6 da Constituição da República Portuguesa (cfr. respectivamente, conclusões X e XIV dessas alegações, transcritas no ponto 5. da decisão sumária reclamada).
Reafirma-se portanto que, mesmo que se considerasse ser idóneo o objecto do presente recurso, não se encontra verificado um pressuposto processual do recurso interposto: a invocação pelo recorrente, de modo processualmente adequado, da questão de inconstitucionalidade que pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional.
4. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 29 de Outubro de 2003
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos