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Proc. n.º 659/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. deduziu reclamação, ao abrigo do disposto no artigo 76º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho da Relatora do Tribunal da Relação de Lisboa que não admitiu o recurso que pretendia interpor para o Tribunal Constitucional.
2. Resulta dos autos que:
2.1. Por acórdão do Tribunal do Círculo Judicial de ----------------, de 25 de Outubro de 2002 (fls. 314 e seguintes), foi o arguido A. condenado pela prática de um crime de abuso sexual de criança, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 30º, n.º 2, e 172º, n.º 1, do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão.
2.2. O arguido interpôs recurso para a Relação, “tendo como finalidade, nos termos dos artigos 410º e 412º do CPP, impugnar a decisão proferida pelo tribunal «a quo» no que respeita a vícios que resultam do texto da decisão recorrida, impugnar a matéria de facto e a aplicação do direito”.
Nas alegações então apresentadas (fls. 382 e seguintes), invocou a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 411º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por violação do princípio constitucional das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, “quando interpretada no sentido de o momento a partir do qual se inicia a contagem do prazo, contar-se a partir do depósito na Secretaria, sem distinção dos casos em que haja ou não lugar a transcrição da prova gravada e no caso de a mesma ser deferida pelo Juiz iniciar-se o prazo com a entrega da transcrição” (conclusão
2ª).
2.3. Por acórdão de 8 de Abril de 2003 (fls. 486 e seguintes), o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Sobre a questão de inconstitucionalidade suscitada pelo arguido, lê-se no acórdão:
“[...]
Uma das questões suscitadas pelo recorrente é a da alegada inconstitucionalidade do art. 411° CPP, por violação do art. 32°, nº 1 CRP, na interpretação segundo a qual se inicia o prazo de contagem do prazo para interpor recurso a partir do depósito da decisão na secretaria sem distinção dos casos em que há, ou não, lugar a transcrição da prova. Porém, não consta dos autos que o recorrente tenha pretendido beneficiar da interpretação, que pretende ser a constitucional, do dito preceito nem que o tenha requerido ao juiz, solicitando dilação do prazo para apresentar o seu recurso ou que, por razão de indeferimento dessa pretensão por aplicação do citado preceito legal, interpretado da forma alegadamente inconstitucional, tenha sido prejudicado o seu direito de defesa. O arguido apresentou o seu recurso no prazo estabelecido no art. 411° CPP tendo transcrito as partes dos depoimentos que entendeu pertinentes a partir da gravação que lhe foi facultada, não requerendo a sua apresentação contada da junção e notificação ao arguido da transcrição efectuada pelo tribunal, alegando nomeadamente justo impedimento para o ter feito antes. Não existindo, nos autos, qualquer decisão que tenha por fundamento qualquer interpretação do referido preceito do art. 411° CPP não compete a este tribunal, com competência para conhecer de recursos interpostos de decisões conforme resulta do art. 432° CPP, apreciar genericamente a alegada inconstitucionalidade do citado preceito, quando este não foi objecto de aplicação e interpretação por nenhuma decisão em concreto. Não se conhece pois da questão prévia suscitada pelo recorrente a este propósito.
[...].”
2.4. Notificado deste acórdão, A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 411º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por violação do princípio constitucional das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º da Constituição, “quando interpretada no sentido do momento a partir do qual se inicia a contagem do prazo de 15 dias para a interposição de recurso ser a partir do depósito da sentença na secretaria, sem distinção dos casos em que haja ou não lugar a transcrição da prova gravada e não a partir da transcrição efectuada pelo tribunal, no caso da mesma ser deferida pelo juiz do tribunal «a quo»” (fls. 535).
2.5. A Relatora, no Tribunal da Relação de Lisboa, decidiu não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional pelas razões a seguir indicadas (despacho de fls. 537 e seguinte):
“[...]
Nos termos do disposto no art. 70°, nº 1 al. b) da Lei do Tribunal Constitucional cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Do presente processo, porém, não consta decisão que tenha interpretado ou aplicado a norma do art. 411°, nº 1 CPP com a interpretação que o recorrente pretende ser inconstitucional, o que se deixou claro no acórdão de 8.04.2003 que, por essa razão não apreciou a questão suscitada pelo recorrente. [...]
[...]
Sem decisão que defina uma infracção constitucional e que habilite o Tribunal Constitucional a decidir em concreto da questão suscitada, estar-se-á perante um mero pedido de apreciação abstracta da interpretação alegadamente inconstitucional de norma que não foi aplicada em concreto por qualquer decisão, o que implicará que o recurso interposto para o TC não tenha objecto. Será porventura essa a razão que impediu o recorrente de indicar qual a decisão de que diz interpor recurso perante a alegada interpretação inconstitucional. E foi essa a razão que levou esta Relação a não a apreciar. Como se decidiu no acórdão proferido e referenciado anteriormente, e pelos motivos aí expostos, não se encontrava esta Relação obrigada a conhecer da questão de inconstitucionalidade alegada.
[...].”
2.6. A. veio deduzir reclamação do despacho de não admissão do recurso, ao abrigo do disposto no artigo 76º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, através do requerimento de fls. 540 e seguinte, onde sustentou:
“[...] a sentença foi depositada na Secretaria no dia 25/10/02. Por requerimento de fls. entrado em 29/10/02, o arguido dá conhecimento ao Tribunal que pretende interpor Recurso de decisão final, e requereu que lhe fosse entregue cópia da gravação bem como requereu a transcrição integral dos suportes magnéticos de toda a prova produzida em audiência. Sobre esse requerimento recaiu o despacho de fls. 330 dos autos, pelo qual a Exma. Juiz, no sentido de proceder à cópia da gravação e à cópia da transcrição da prova gravada nos termos requeridos. Da cópia de gravação foram entregues 5 cassetes no dia 31/10/02 e 6 cassetes no dia 5/11/02. Até ao termo do prazo de recurso 13/11/02 a transcrição não se encontrava junta aos autos. Ora, nos termos do art. 411, n° 1 do CPP, o prazo de interposição do Recurso é de 15 dias e tratando-se de sentença conta-se do respectivo depósito na Secretaria. Embora a lei não estabeleça qualquer distinção nem quanto ao prazo, nem quanto ao momento a partir do qual se inicia a contagem do prazo. Porém, no entender do arguido o prazo de interposição do Recurso deveria iniciar-se com a entrega da transcrição da prova. Situação que, a não acontecer, prejudica os direitos de defesa do arguido, designadamente o direito de defesa ao Recurso, uma vez que a falta de transcrição integral da prova, até à interposição do recurso dentro dos 15 dias previstos na lei, prejudicou o direito de recurso sobre a matéria de facto. O arguido, por mera cautela, interpôs recurso dentro dos 15 dias.
[...].”
3. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer (fls.
547 v.º a 548 v.º), em que concluiu:
“não tendo o arguido-recorrente invocado justo impedimento para a interposição e motivação do recurso em que impugnava a matéria de facto, não aguardando pelo prazo alongado que poderia decorrer da demora na transcrição oficiosa dos depoimentos prestados e não tendo apresentado qualquer questão nova ou complementar às focadas na motivação originariamente apresentada, carece de utilidade a apreciação da questão suscitada quanto ao início do prazo para recorrer, já que a mesma nunca poderia ter qualquer repercussão no teor e sentido da decisão recorrida, o que conduz à improcedência da presente reclamação”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. O ora reclamante pretendia interpor recurso de constitucionalidade da decisão proferida nos autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
A Relatora não admitiu o recurso, por entender que não estavam verificados no caso os pressupostos processuais exigidos pela disposição invocada, designadamente por considerar que não foi aplicada no mencionado acórdão a norma que o ora reclamante pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional.
5. Não merece censura o despacho reclamado.
Na verdade, o ora reclamante interpôs o recurso para o Tribunal da Relação dentro do prazo de 15 dias após o depósito da sentença na secretaria do Tribunal do Círculo Judicial de ----------------------, fundando a impugnação da matéria de facto na transcrição dos depoimentos a que ele próprio procedeu, sem aguardar a transcrição efectuada pelo tribunal. Não invocou o então recorrente
“justo impedimento” para a interposição e motivação do recurso, por não dispor de transcrição dos depoimentos efectuada pelo tribunal, com o objectivo de eventualmente vir a beneficiar de um prazo mais alargado para a prática de tais actos.
Não se suscitou portanto no processo qualquer problema quanto à tempestividade do recurso interposto.
Assim sendo, não pode considerar-se aplicada, no caso, a dimensão normativa do artigo 411º, n.º 1, do Código de Processo Penal questionada pelo ora reclamante nas alegações de recurso para a Relação e identificada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Por outro lado, como sublinha o Senhor Procurador-Geral Adjunto, verifica-se que, na sequência da transcrição efectuada pelo tribunal, “nenhuma questão nova ou complementar foi deduzida pelo recorrente relativamente ao elenco de questões e matérias que abordou ao longo da motivação do recurso originariamente apresentado”.
A questão de constitucionalidade que o ora reclamante pretende ver apreciada por este Tribunal configura-se deste modo como uma questão meramente abstracta e hipotética, insusceptível de ter utilidade ou repercussão no sentido da decisão proferida.
Ora, atenta a função instrumental reconhecida, em geral, ao recurso de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional só deve conhecer das questões de constitucionalidade normativa quando a decisão a proferir possa influir utilmente no julgamento da questão de mérito discutida no processo (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal, nº 257/92, Diário da República, II, nº 141, de 18 de Junho de 1993, p. 6448 ss, p. 6452, e nº 440/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., p. 319 ss, p. 326).
Não tendo sido aplicada na decisão da Relação a norma questionada pelo ora reclamante, na dimensão interpretativa por ele identificada, não podem dar-se como verificados os pressupostos processuais do tipo de recurso interposto.
III
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 29 de Outubro de 2003
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos