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Processo nº 72/2003
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Pela decisão de fls. 10, de 18 de Dezembro de 1998, e para o que agora releva, A. foi pronunciado, como cúmplice, pela prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelo artigo 36º, n.º 1, alíneas a), b) e c), n.º 2 e n.º 5, a) do Decreto-Lei n.º 24/84, de 20 de Janeiro, e artigos 27º e 30º do Código Penal.
Por decisão da 4ª Vara Criminal do Tribunal Criminal do Círculo de Lisboa, constante de fls. 293 e seguintes, foi declarado inteiramente prescrito o procedimento criminal contra o arguido A.. Para o efeito, considerou-se que o referido crime se considera consumado com a decisão de atribuição do subsídio e que, portanto, já tinha decorrido quanto a este arguido, quando foi notificado da decisão instrutória, o prazo de prescrição aplicável, ou seja, 10 anos, contados desde a data da consumação do crime.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Por acórdão de 21 de Novembro de 2002, constante de fls. 376, o Tribunal da Relação de Lisboa concedeu provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e determinando o prosseguimento dos autos, também para o que agora interessa, contra A.:
«3. - A questão central do presente recurso que é a de precisar em que momento se consuma o crime de fraude na obtenção de subsídio tem sido objecto de soluções díspares por parte da jurisprudência e dos que por qualquer razão se debruçam sobre ela. Essa disparidade – melhor seria dizer confusão – vai ao ponto de os defensores de cada uma das posições mais difundidas as reclamarem de maioritárias e também ao extremo de se verificar que quem defende o mesmo ponto de vista ter sobre a dita questão do momento da consumação, diverge quanto à caracterização do crime em causa(...). As posições em confronto podem sintetizar-se do seguinte modo: De um lado considera-se que o crime de fraude na obtenção de subsídio se consuma no momento em que é dado o despacho de aprovação do projecto de candidatura.
(...) Nesta corrente há algumas 'nuances'. Assim, há quem entenda que os adiantamentos constituem não antecipações da prestação aprovada mas parcelas do subsídio total já concedido e que é entregue de uma forma faseada (...) e também quem considere que as informações inexactas ou incompletas fornecidas no período de pagamento de saldo, por serem posteriores à obtenção de subsídio configuram o crime de desvio de subsídio previsto e punido pelo art. 37°, nºs 1 e 3 do Dec. Lei n.° 28/84. De outro lado, considera-se que o crime se consuma com a entrega das verbas em questão ou (numa variante) com a saída da sua disponibilidade da esfera das entidades concedentes.
(...) Uma terceira via, mais original, digamos, de que se conhece apenas uma decisão
(...) considera que o crime se consuma num 'momento indeterminado', posterior à prestação das informações fraudulentas ou à omissão das que seriam necessárias mas imediatamente anterior ao despacho que concede o subsídio.
(...)
4. - Segundo a doutrina ( cfr . estudo de Figueiredo Dias e de Costa Andrade abundantemente citado, in Rev. Port. de Ciência Criminal, ano 4, 3°, p. 337) o dito crime é um crime material ou de resultado e um crime de dano. Recorde-se que nos crimes materiais ou de resultado a realização do evento interessa à valoração objectiva contida num certo tipo legal, resulte esse evento de uma comissão por acção ou de uma comissão por omissão e que nos crimes de dano, considerados os interesses que se pretendem proteger se exige a lesão efectiva (Eduardo Correia, 'Direito Criminal', I, p. 286 e ss.). Isto posto não se vê como seja possível defender com consistência (...), que o crime de fraude na obtenção de subsídio é um crime formal, ou seja, um crime que se consuma independentemente da verificação do evento e em relação ao qual a entrega ou depósito das quantias é irrelevante para a consumação. Tendo por assente que o dito crime é de execução vinculada em que 'a produção do dano tem de obedecer ao processo causal típica e abstractamente descrito na norma incriminatória' (cfr. estudo cit. p. 366) o que se não pode coonestar é a afirmação segundo a qual para a sua realização 'só vale a manobra fraudulenta contemporânea da proposta de concessão, anterior à aprovação' ou aquela outra de que 'autorizar ou não o pagamento parcial ou antecipado ou o pagamento integral do saldo é questão de controlo administrativo-financeiro ... que em nada contende com o subsídio atribuído', porque 'se em virtude de alegadas práticas enganosas, o saldo vier a ser pago integralmente ou pago em valor superior ao devido, a pretérita atribuição do subsídio em nada é afectada' (sublinhado acrescentado ).
(...)
É aqui que está o cerne da questão. Como muito bem argumenta o magistrado recorrente e é também lucidamente enfatizado de outro modo pelo Sr. procurador-geral adjunto no seu parecer o subsídio não poderia ter-se por obtido (definitivamente, como parece resultar das posições referidas supra) no momento em que era proferido o despacho que o concedia porque isso seria confundir o compromisso de efectuar uma prestação, com a prestação propriamente dita. A mera decisão de aprovação do subsídio que concedia, portanto, o direito ao seu recebimento não poderia ser, senão por ficção (é disso que se trata, de uma ficção) equiparada à efectiva obtenção. Nem essa decisão era definitiva e intocável nem o adiantamento era apenas acompanhado da cominação da obrigação de restituição se e na medida em que a empresa se afastasse, em concreto do programa de formação (cfr. ainda estudo citado, p. 338).
(...) Por isso, necessariamente, para obter subsídio que fora decidido conceder, o engano, a fraude, tinham de se desenrolar e manter ao longo de todas as etapas do processo de concessão e aplicação dos subsídios. Porque a realidade é esta: a efectiva obtenção do subsídio nas suas várias parcelas ou 'tranches' estava condicionada à sua correcta aplicação. Por conseguinte, para ele ser obtido era necessário não só 'mascarar' o processo de candidatura fornecendo às entidades competentes as informações inexactas ou incompletas mas principalmente manter essa 'máscara' na apresentação dos pedidos de pagamento de saldo. De outro modo, o subsídio que a Comissão se comprometera a atribuir poderia ser pura e simplesmente anulado, suprimido, ficando sem efeito a decisão de aprovação. Por isso, se nos afigura que assiste razão ao recorrente quando defende que o crime de fraude na obtenção de subsídio deve ser configurado como um processo complexo que se espraia no tempo e em que a esfera de protecção da norma não se cinge aos momentos iniciais da relação jurídica estabelecida entre a entidade outorgante e o particular mas se prolonga por todo o período em que a relação se mantém. Nesta perspectiva, nem sequer é com ela incompatível a afirmação de Francesco Antolisei citada pelo(...) recorrido A. (...) segundo a qual para a consumação do crime (correspondente na lei italiana) não é necessário que o beneficio seja distribuído, bastando que fique completo o iter necessário para a sua atribuição
(Manuale di Diritto Penale, tomo 1, 12º ed. 1996, p. 335). Chegados aqui, não se diga que um subsídio poderia ser tido como efectivamente concedido e o crime consumado, quando houvesse uma decisão da Comissão tomada ao abrigo do art. 6.°, n.°1 do Regulamento n°2950/83 que pura e simplesmente o suprimisse.
(...) o próprio art. 36° no seu articulado destrinça entre obtenção e concessão como resulta da sua redacção: 'Quem obtiver subsídio ou subvenção ... fornecendo
às autoridades ou entidades competentes informações inexactas ou incompletas sobre si ou terceiros e relativas a factos importantes para a concessão do subsídio ou subvenção ... será punido...' (...). Distinção que ganha ainda maior relevo quando se constata que o art. 21° (do mesmo Dec. Lei nº 28/84) define subsídio ou subvenção como a prestação feita a empresa ou unidade produtiva à custa de dinheiros públicos o que (...) permite concluir que a prestação consistindo numa entrega de dinheiro 'só pode considerar-se feita, efectuada, realizada' quando ela 'é entregue ou fica na disponibilidade do credor'.
(...)'não pode afirmar-se que alguém obteve um subsídio em dinheiro enquanto esse alguém não pode dispor desse dinheiro'. A não ser à custa de uma verdadeira ficção, acrescentar-se-ia. De resto, a circunstância de a consumação do crime passar pela efectiva obtenção do subsídio no sentido que se vem expondo ressalta e reforça-se com o teor do art. 39° do Dec. Lei nº 28/84 onde se determina que, além das penas dos arts. 36° e 37°, 'o tribunal condenará sempre na total restituição das quantias ilicitamente obtidas'. Em suma, no entendimento que se perfilha, com o devido e efectivo respeito pelas opiniões contrárias, o crime de fraude na obtenção de subsídio quando, como é o caso, estejam em causa subsídios concedidos pelo FSE, consuma-se com o último acto do iter-criminis que consiste na entrega das últimas tranches desses subsídios.
(...) O art. 120º, n° 3 determina que a prescrição do procedimento criminal terá sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Como este prazo normal de prescrição acrescido de metade (15 anos, portanto) não decorreu ainda, fácil é concluir que o procedimento criminal não se encontra prescrito, salvo no que toca à UGTUR, sendo certo que face à ressalva do tempo de suspensão, sempre haverá que adicionar-se ao prazo normal o período de 2 anos de suspensão.
(...)»
2. Veio então o arguido A. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, 'nos termos dos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, 72º, n.º 1, alínea b), e 75º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (...) com vista à fiscalização concreta da constitucionalidade material da norma constante do artigo 36º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, quando interpretada no sentido
(desfavorável ao Arguido) de o crime de fraude de obtenção de subsídio só se consumar aquando do pagamento/recebimento do subsídio.
Salvo o devido respeito por opinião em contrário, a norma em causa viola o princípio 'in dubio pro reo', constitucionalmente consagrado no artigo 32º, n.º
2, da C.R.P.
Por outro lado, a norma em causa, ao deixar de conter a clareza necessária quanto ao momento da consumação do crime que prevê é materialmente inconstitucional por violação do princípio da protecção da segurança jurídica relativamente a actos normativos e do princípio da previsão ou determinabilidade das normas jurídicas, 'subprincípios concretizadores' do princípio do Estado de Direito Democrático'.
3. Notificado para o efeito, o recorrente apresentou as suas alegações, que terminou da seguinte forma:
«Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e consequentemente:
1 - Declarada a inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 36º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, por não conter a clareza necessária quanto ao momento da consumação do crime que prevê, em violação do princípio da protecção da segurança jurídica relativamente a actos normativos e do princípio da previsão ou determinabilidade das normas jurídicas,
'subprincípios concretizadores' do princípio do Estado de Direito Democrático, constitucionalmente consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa. Se assim não se entender:
2 - Declarada a inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 36º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, por falta de especificação dos factos relevantes para a determinação do momento da consumação do crime que prevê, por violação do princípio da tipicidade, constitucionalmente consagrado no artigo 29º, n.º 1, da C.R.P. e por obstar ao exercício de todos os direitos de defesa do arguido, previstos no artigo 32º, n.º 1, da C.R.P. Sem conceder, se assim não se entender:
3 - Declarada a inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 36º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, quando interpretada no sentido (desfavorável ao arguido) de o crime de fraude de obtenção de subsídio só se consumar aquando do pagamento do subsídio, por violação do princípio 'in dubio pro reo', constitucionalmente consagrado no artigo 32º, n.º 2, da C.R.P.»
Quanto ao Ministério Público, único dos recorridos que apresentou alegações, concluiu nestes termos:
«1 - A norma do artigo 36.°, n.º 1, do Decreto-Lei n° 28/84, de 20 de Janeiro, tem a suficiente clareza e o grau de determinação constitucionalmente exigível quanto à definição e ao momento da consumação do tipo legal de crime que prevê.
2 - A existência de diferentes posturas jurisprudenciais relativamente à interpretação de normas jurídicas incriminatórias, não constitui só por si sinal, ou sequer indício, da sua não conformidade à Constituição.
3 - O princípio 'in dubio pro reo' tem o seu campo de aplicação circunscrito à matéria de prova em processo penal, não servindo de suporte de inconstitucionalidade normativa em sede de interpretação de preceitos legais.
4 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.»
4. Admitindo a relatora a possibilidade de não conhecimento parcial do recurso, por não estarem reunidos os necessários pressupostos, foi notificado
às partes o parecer de fls. 442, do qual se transcreve a parte agora relevante:
«3. Ora é pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, como é o caso, que a inconstitucionalidade haja sido “suscitada durante o processo” (citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), ou seja, colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82). Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade “durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Ora, no caso presente, parece que apenas se pode considerar oportunamente suscitada a questão da inconstitucionalidade colocada perante o Tribunal da Relação de Lisboa, na contra-motivação do recurso interposto pelo Ministério Público, acima referido; ou seja, a inconstitucionalidade que o recorrente ali atribui à “norma constante do artigo 36º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 28/84, de
20-1, uma vez que – quanto à data da consumação do crime – permite duas interpretações possíveis, uma favorável ao arguido e outro desfavorável ao mesmo, quando interpretada no sentido (mais desfavorável) de o crime de fraude de obtenção de subsídio só se consumar aquando do pagamento/recebimento do subsídio”, que considerou violar o “princípio ‘in dubio pro reo’, constitucionalmente consagrado no artigo 32º, n.º 2, da CRP” (cfr. fls. 353). A outra norma que o recorrente, no requerimento de interposição de recurso e nas alegações, refere ao mesmo artigo 36º, n º 1, e acusa, respectivamente, de violação do “princípio da previsão ou determinabilidade das normas jurídicas” e da infracção “do princípio da tipicidade, constitucionalmente consagrado no artigo 29º, n.º 1, da C.R.P”, parece não ter sido oportunamente questionada pelo recorrente, razão pela qual o é plausível que o Tribunal Constitucional a não possa apreciar.
4. Assim, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil, aplicável de acordo com o artigo 69º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, notifique-se as partes para se pronunciarem, querendo, sobre a possibilidade de não se conhecer parcialmente do recurso.»
5. Responderam a este parecer o recorrente, A., e o Ministério Público.
Quanto ao recorrente, sustentou que o recurso deve ser conhecido na sua totalidade, tendo em conta o disposto no artigo 79º-C da Lei nº 28/82, que permite ao Tribunal Constitucional avaliar a constitucionalidade das normas que constituam o seu objecto à luz de normas ou princípios constitucionais diferentes daqueles que foram apontados pelo recorrente para fundamentar a alegação de inconstitucionalidade. Sustentou, para além disso, que o recorrente tem a liberdade de indicar, já no recurso de constitucionalidade, fundamentos diversos daqueles que alegou perante as instâncias; que “todas as questões/fundamentos de constitucionalidade se reconduzem ao mesmo artigo”; e, finalmente, fazendo apelo à jurisprudência do Tribunal Constitucional quanto ao requisito em causa, que o recorrente “tinha motivos para considerar que seria desnecessária a invocação da inconstitucionalidade do artigo em causa, pelo menos em todas as suas vertentes normativas, por se esperar a manutenção da decisão de 1ª instância que o favorecia”.
Diferentemente, o Ministério Público, a fls. 450, manifestou a sua concordância com a impossibilidade de conhecimento de parte do recurso, nos termos colocados no referido parecer.
6. Cumpre então começar por verificar se estão reunidas as condições para o conhecimento do recurso.
Ora a verdade é que, como aliás o Tribunal Constitucional tem repetidamente observado, o objecto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade tem como objecto – constitucional e legalmente definido, cfr. artigos 280º da Constituição e, por exemplo, 70º e 79º-C da Lei nº 28/82 – a apreciação de normas, e não dos artigos ou preceitos legais que as contenham. Assim, quando um recorrente questiona uma – ou mais – interpretações de um preceito legal, tem de as definir (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 172/95, Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995); e sobre ele recai naturalmente, o ónus de suscitar oportunamente a respectiva inconstitucionalidade.
Aliás, o obstáculo colocado no parecer não tem a ver com o disposto no artigo
79º-C da Lei nº 28/82. Não se põe em causa que o Tribunal Constitucional, para apreciar as normas que constituem o objecto do recurso, as possa analisar em função de normas ou princípios constitucionais diferentes daqueles cuja violação
é apontada pelo recorrente; o problema respeita à norma a apreciar, e não aos fundamentos possíveis da sua apreciação.
Ora o recorrente não se limita a alterar o fundamento para a inconstitucionalidade que suscita, antes altera o próprio objecto do recurso, definindo normas diferentes nos vários momentos identificados no parecer.
Finalmente, não se pode considerar que a circunstância de a decisão da 1ª instância ter sido favorável ao recorrente o dispense de suscitar oportunamente a inconstitucionalidade que apenas colocou perante o Tribunal Constitucional, já que o recorrente teve plena oportunidade de o fazer.
Assim, pelas razões constantes do parecer de fls. 442, considera-se que o presente recurso tem apenas como objecto a norma, constante do n.º1 do artigo
36º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, quando interpretada no sentido de que “o crime de fraude de obtenção de subsídio só se consuma(...) aquando do pagamento/recebimento do subsídio”, norma que o recorrente considera inconstitucional por violação do princípio in dubio pro reo.
O texto do referido n.º 1 é o seguinte:
Artigo 36º
(Fraude na obtenção de subsídio ou subvenção)
“1. Quem obtiver subsídio ou subvenção: a) Fornecendo às autoridades ou entidades competentes informações inexactas ou incompletas sobre si ou terceiros e relativas a factos importantes para a concessão do subsídio ou subvenção; b) Omitindo, contra o disposto no regime legal da subvenção ou do subsídio, informações sobre factos importantes para a sua concessão; c) Utilizando documento justificativo do direito à subvenção ou subsídio ou de factos importantes para a sua concessão, obtido através de informações inexactas ou incompletas;
será punidos com prisão de 1 a 5 anos e multa de 50 a 150 dias.
(...)”.
7. Está naturalmente fora do âmbito do presente recurso de constitucionalidade apreciar, do ponto de vista do direito ordinário, a interpretação dada pelo tribunal recorrido ao n.º 1 do artigo 36º atrás transcrito, no que respeita à determinação do momento em que o crime em causa se considera consumado. Cumpre apenas ao Tribunal Constitucional determinar se considerar que tal consumação apenas ocorre com o “pagamento/recebimento” do subsídio viola o princípio “in dubio pro reo”, como sustenta o recorrente.
O Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de se pronunciar sobre este princípio, nomeadamente, no seu Acórdão n.º 491/00 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt):
«8. Importa ainda verificar se o regime em causa no presente recurso de constitucionalidade resiste incólume à invocação do princípio in dubio pro reo.
Este princípio, que se aceita decorrer da Constituição em estreita ligação com o princípio da presunção de inocência (cfr., quanto à relação entre a presunção de inocência e o in dubio pro reo, HELENA MAGALHÃES BOLINA, Razão de ser, significado e consequências do princípio da presunção de inocência (artigo
32º, nº 2, da CRP), in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXX, 1994, págs. 440-446), assenta na ideia de que a impunidade do culpado é mais tolerável do que a condenação de um inocente (CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, II, reimp. da Universidade Católica, Lisboa,
1981, pág. 310). Noutros termos, pode afirmar-se que é 'resultante de dois postulados processuais – o postulado processual geral da exigência dirigida ao juiz de decidir sempre (...) e o postulado processual criminal que tem por incondicionalmente inadmissível uma condenação penal em que se não tenha
'convencido' o réu da sua efectiva responsabilidade e culpabilidade'
(CASTANHEIRA NEVES, Sumários de processo criminal, policop., Coimbra, 1968, págs. 55-56). Assim, decorre do in dubio pro reo que 'todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à 'dúvida razoável' do tribunal, também não possam considerar-se como 'provados' (FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, I, reimp., Coimbra, 1984, pág. 213).»
Tal como resulta do que então se afirmou, o princípio in dubio pro reo tem aplicação no domínio probatório e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido; é justamente por isso que é no princípio da presunção de inocência, incluído pela Constituição entre as garantias do arguido em processo criminal (artigo 32º, n.º 2), que se encontra a base constitucional para a sua protecção.
Como escreveu BELEZA DOS SANTOS (Crimes de moeda falsa, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 65º, p. 322), “À lei criminal deve dar-se a interpretação que os respectivos elementos – gramatical, lógico e histórico – impõem, e não a que favorece o acusado. A máxima in dubio pro reo é inteiramente inaceitável para fazer prevalecer uma interpretação sobre outra. É melhor interpretação a que for mais lógica e não a mais favorável para o réu”.
O mesmo se pode ler em FIGUEIREDO DIAS, op. cit., p. 215, CASTANHEIRA NEVES, op. cit., p. 59 ou GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, II, 1993, Lisboa, p. 93 e nota 2. EDUARDO CORREIA, em Direito Criminal, I, Coimbra, 1971, depois de afirmar que “é seguramente de repudiar” considerar, em nome do referido princípio, que “o intérprete, em caso de dúvida, siga aquela das interpretações que mais favoreça o réu”, e que, “em caso de dúvida sobre o significado das normas, deve, com efeito, o intérprete socorrer-se de todos os elementos que permitam a averiguação da vontade do legislador”, apenas admite que, embora “mal se compreend[a], depois disso, que se continue em face de duas interpretações contrárias de valor igual” se opte pela interpretação mais favorável em atenção ao “princípio de que a liberdade é a regra e a limitação a excepção”.
Não estando em causa, no caso presente, qualquer situação de dúvida por falta de prova, não se encontra qualquer violação do princípio “in dubio pro reo”.
8. Sempre se acrescenta, todavia, que, se pudesse admitir-se que tal princípio tinha aplicação no domínio da interpretação da lei, então não poderia o Tribunal Constitucional conhecer da inconstitucionalidade suscitada.
Com efeito, tal conhecimento implicaria que o Tribunal Constitucional se substituísse ao tribunal recorrido na tarefa de interpretação da lei ordinária, o que excede os limites do recurso de constitucionalidade.
Na verdade, o Tribunal teria, em primeiro lugar, que verificar se, à luz dos critérios de interpretação da lei criminal, o texto legal comportava as duas interpretações apontadas pelo recorrente; em segundo lugar, que concluir pela impossibilidade de optar por uma delas, à luz desses mesmos critérios; e, finalmente, que concluir que a solução defendida pelo recorrente é mais favorável ao arguido do que a que foi efectivamente aplicada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Estaria, pois, a sindicar, sem qualquer dúvida, não a norma aplicada, mas o processo de decisão do tribunal recorrido, o que a Constituição e a lei lhe não permitem.
A terminar, refira-se que, pelas razões acabadas de indicar, nem teriam cabimento, numa hipótese como a do presente recurso, as dúvidas que se têm levantado quanto à competência do Tribunal Constitucional para conhecer de uma alegada violação do princípio constitucional da legalidade, no domínio da lei criminal (artigo 29º, n.º 1, da Constituição) – cfr., a título de exemplo, os Acórdãos n.º 674/99 (Diário da República, II série, de 25 de Fevereiro de 2000),
176/03 ou 331/03, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt e as declarações de voto apostas aos Acórdãos n.ºs 674/99 e 383/00 (também em
www.tribunalconstitucional.pt.)
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 31 de Outubro de 2003
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida