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Procº nº 575/2003
3ª Secção Relator:- BRAVO SERRA
1. Em 22 de Setembro de 2003 proferiu o relator decisão, na qual foi dito:
“1. Tendo o A. requerido a abertura da instrução, após ter sido acusado pelo Ministério Público da prática de factos que foram subsumidos ao cometimento das infracções ao disposto nos artigos 24º, nº 1, 27º e 18º, estes do Código da Estrada, e de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelo artº 137º, este do Código Penal, em concurso aparente com um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punível pelo nº 1 do artº 148º deste último diploma, a Juíza do 1º Juízo de competência especializada criminal do Tribunal de comarca de Santo Tirso, em 10 de Julho de 2002, proferiu decisão por intermédio da qual o pronunciou tão só pelos indicados crimes, pois que se entendeu que as citadas infracções ao Código da Estrada se encontravam consumidas por aqueles crimes.
Não se conformando com tal decisão recorreu o arguido para o Tribunal da Relação do Porto, tendo, na motivação adrede produzida, formulado, para o que ora releva, as seguintes «conclusões»:
‘.................................................................................................................................................................................................................................................
B1: O presente recurso deve ser admitido na espécie e regime de subida preconizados, por a decisão instrutória não constituir uma ‘dupla conforme’ com a acusação do ministério público, nos termos da regra excepcional da primeira parte do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, nos termos acima melhor esclarecidos (supra, ponto A1.1). Como quer que seja:
B2: mesmo que assim se não entendesse, o que o recorrente apenas admite por cautela de patrocínio, ainda por uma outra ordem de razões a conclusão haveria de ser a mesma. Com efeito,
B3: o nº 4 do artigo 32º da Constituição da República materializa um direito fundamental, como tal directamente aplicável nos termos do nº 1 do artigo 18º da mesma. Ora,
B4: assegurado que está, agora sem margem para dúvidas, por força de norma expressa, o direito ao recurso (art. 32º, nº 1, parte final da Constituição), a própria dupla conforme (artigo 310º, nº 1, primeira parte, do Código de Processo Penal), como limite ao princípio da recorribilidade, ao menos em um grau, de todas as decisões jurisdicionais que não sejam de mero expediente, é materialmente inconstitucional - por violação do disposto nas disposições conjugadas dos n.ºs 4 e 1, ambos do assinalado artigo 32º - ao restringir o referido direito, no tocante a um direito fundamental: o da existência na lei legislada de uma fase processual da competência de um Juiz, para permitir sindicar por este a decisão que o ministério público venha a tomar findo o inquérito. Por outro lado,
B5: o nº 2 do artigo 283º do diploma penal adjectivo, ao remeter na fase de instrução o critério da ‘suficiência de indícios’ para o disposto no nº 2 do artigo 283º do mesmo compêndio, carece de ser interpretado em termos hábeis.
B6: Com efeito, é decorrência directa de princípio de natureza constitucional, aquele vulgarmente conhecido por ‘in dubio pro reo’ - artigo 32º nº 2 da norma normarum - que deve orientar toda a actividade de assunção da prova por parte de qualquer Juiz, sobretudo no âmbito do processo penal - mas, ao cabo e ao resto, igualmente, mesmo nos ramos de direito processual em que se verifique a existência e a repartição do ónus da prova - sempre que discutida a causa o juiz não consiga afastar do seu espírito todo o estado de dúvida razoável e, na verdade, não só quanto à verificação dos elementos descritivos de um tipo legal de crime, como no concernente às eximentes (expressão aqui utilizada na sua compreensão mais ampla, abrangendo, além do mais, as causas de exclusão da ilicitude ou da culpa). Por conseguinte,
B7: a referida regra legal - nº 2 do artigo 283º do Código de Processo Penal - quando aplicada por um Juiz, deve ser pontilhada na respectiva interpretação e aplicação da forma preconizada.
B8: pois, se assim não acontecer - e é o sucedido na espécie dos autos, como acima demonstrado em sede de motivação e aí, em especial, pág. 16 - tal critério torna-se materialmente inconstitucional, por violação do nº 2 do já assinalado artigo 32º. De resto,
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Em 9 de Outubro de 2002, a Juíza do assinalado Juízo proferiu despacho por via do qual admitiu o recurso interposto, atenta a suscitada questão de inconstitucionalidade do nº 1 do artº 310º do Código de Processo Penal.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 23 de Abril de 2003 - após entender que o recurso se cingia unicamente à questão de inconstitucionalidade da norma ínsita no nº 1 do artº 310º do diploma adjectivo criminal, pois que, ponderou, a decisão instrutória veio a pronunciar o arguido
‘pelos mesmíssimos factos (e só eles) vertidos na acusação pública’, sendo que a
única alteração que se verificava entre uma e outra daquelas peças processuais era a consubstanciada em, na decisão instrutória, se ter perfilhado a perspectiva de que era diversa a velocidade a que seguia o veículo conduzido pelo arguido, o que, por um lado, não implicava uma alteração substancial dos factos descrito na acusação e, por outro, não acarretava uma alteração no tocante à qualificação jurídica daqueles factos - veio a negar provimento ao recurso.
Na verdade, pode ler-se naquele acórdão:
‘.................................................................................................................................................................................................................................................
3. O DIREITO: Vem o presente recurso interposto do despacho de fls. 372 e segs., que pronunciou o arguido nos termos supra consignados - ou seja, pela prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art.º 137° do C. Penal e, em concurso aparente com este, um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo art.º 148°, nº1 do mesmo diploma legal, tendo-se entendido, nesse despacho, que as contravenções que na acusação vinham imputadas ao arguido estavam consumidas pelo aludido crime – ‘sob pena de violação do princípio ‘ne bis in idem’. Como emerge igualmente do acima exposto, o arguido tinha sido acusado (cfr. fls.
149 a 152) da prática das contra - ordenações p. e p. pelos arts. 24°, no1, 27° e 18° do C. Estrada e do aludido crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.º 137° do C. Penal, em concurso aparente com o citado crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo art.º 148°, nº1 do C. P. Conforme se vê do supra expendido, o recurso interposto pelo arguido do despacho de pronúncia tão só foi recebido por força da questão da inconstitucionalidade nele citada, qual seja, do art.º 310º, nº1 do CPP. O que parece líquido, sendo certo que assiste razão ao Mmº Juiz quando refere (a fls. 436) que a alteração que na pronúncia se operou relativamente à velocidade a que seguiria o veículo do arguido - constava da acusação que seguia a velocidade superior a 120 Km/Hora e na pronúncia ficou a constar que seguia a velocidade que não foi possível apurar com precisão, mas que seria seguramente não inferior a 120 Km/Hora - não consubstancia uma alteração substancial (nem, sequer, não substancial), dos factos, em nada alterando o esclarecimento de que o recurso só foi recebido por força da questão da inconstitucionalidade nele apontada, até porque - como igualmente bem ali igualmente se referiu - a alegada alteração é favorável ao arguido, o que sempre lhe retiraria, por isso, nessa parte, legitimidade para interpor recurso (cfr. art.º 410°, nº1, al. b), do C.P.P.). Assim sendo, portanto, cinge-se o objecto do recurso à questão da inconstitucionalidade do art.º 310°, n.º1 do CPP. Quid juris? Dispõe o referido art.º 310º, nº1, o seguinte:
‘1. A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
2. É recorrível o despacho que indeferiu a arguição da nulidade cominada no artigo anterior’- negrito nosso.
É óbvio que a decisão recorrida pronunciou o arguido pelos mesmíssimos factos (e só eles) vertidos na acusação pública. Como se referiu supra, a alteração que na pronúncia se operou relativamente à velocidade a que seguiria o veículo do arguido não consubstancia uma alteração substancial (em, sequer, não substancial), dos factos, descritos na acusação do Mº Pº ou no requerimento de abertura de instrução (veja-se art° 1º-1-f) do CPP) caso em que teríamos uma nulidade da decisão instrutória nessa parte, nulidade, no entanto, a arguir no prazo de oito dias a contar da data da notificação da decisão (cfr. art° 309° do CPP), sendo certo que nenhuma nulidade foi arguida, obviamente por falta do respectivo fundamento. Daqui que, como dito supra, a decisão recorrida não seja objecto de recurso - salvo no que concerne à questão da inconstitucionalidade do próprio art° 310°, nº 1, do CPP. Poder-se-ia eventualmente dizer que o Mmº Juiz, ao entender que as contravenções que vinham apontadas na acusação estavam consumidas no crime imputado ao arguido, estaria a alterar a qualificação jurídica dos factos. Só que, mesmo que assim fosse, em nada se alterava a bondade de despacho que incidiu sobre o recurso interposto, apenas recebendo o recurso no que tange à aludida inconstitucionalidade. Nos trabalhos preparatórios do Código Processo Penal aprovado pelo Dec.-Lei
78/87, foi marcante «a procura de uma maior celeridade e eficiência na administração da justiça penal», conforme se escreveu no respectivo preâmbulo; e corolário dessa marcante ideia de celeridade, terá sido, entre outras, a opção acolhida de se não admitir, no novo Código e ao arrepio do que a lei anterior estabelecia em casos semelhantes, recurso quanto a várias decisões interlocutórias que antecedem o julgamento; neste pendor haveremos de considerar os dispositivos paralelos, dos art.ºs 310°, n° 1 e 313°, n° 3 do vigente Cód. Proc. Penal, em confronto com os arts. 371° e 390°, n° 2 do velho Código de 1929 ou ainda com o art° 21° do Dec.-Lei 605/75. A propósito do art° 310°, anota Maia Gonçalves no seu Código de Processo Penal, que a lei de autorização legislativa n° 43/86 de 26/9, na sequência da orientação da Comissão encarregada de elaborar o projecto, «estabeleceu a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação, confinando-se a sindicabilidade da mesma ao próprio julgamento» (cfr. art° 2°, nº 2, al. 53 daquela lei); e acrescenta que, dentro desta orientação, manifestamente destinada a obter aceleração processual, foram estabelecidos os comandos deste artigo».
«O arguido que é pronunciado por factos por que o MP o acusou terá agora que ser submetido a julgamento, se não sobrevier causa de extinção do procedimento criminal, e com isso não sofrerá prejuízo ilegítimo, pois que até uma eventual condenação com trânsito beneficiará da presunção de inocência». Assim, são irrecorríveis a decisão que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação do Mº Pº (cit. art° 310° do CPP) e bem assim o subsequente despacho que designe dia para julgamento (cfr. 313°, nº 3 do mesmo Código), mesmo que o juiz atribua, na pronúncia, incriminação diversa da que indicava o Digno acusador - o que no entanto no caso sub judice não ocorreu. Diga-se, no entanto, que o art° 310°, n° 1 apenas alude a factos e não (também) a crimes, pelo que, no caso sub judice, ao pronunciar-se o arguido pelos mesmos factos vertidos na acusação, apenas se operando a apontada alteração da qualificação jurídica referente às contravenções, a situação situa-se na previsão do citado art° 310°, n° 1, do CPP, sendo, como tal, a decisão instrutória irrecorrível, excepto para apreciação da inconstitucionalidade referida. O que a lei processual pretende é, confiando nos deveres de isenção e objectividade do Ministério Público, e numa óptica de celeridade processual, viabilizar a introdução do pleito penal em juízo, reduzindo ao mínimo as hipóteses de rejeição da acusação pelo juiz. Por isso, pode o juiz, quer na pronúncia, quer no despacho de designação do julgamento, qualificar os factos de forma diversa. Aliás, não se compreende que o não pudesse fazer e que já o pudesse em sede de julgamento. O Dr. Marques Ferreira, sempre com a ressalva da inalterabilidade da factualidade descrita na acusação, escreveu que o juiz do julgamento poderá discordar livremente da qualificação jurídica constante da acusação face ao princípio da liberdade na aplicação do direito que é apanágio da função jurisdicional. E, obviamente, o mesmo acontece relativamente ao juiz da pronúncia. E sendo aceite, sem qualquer alteração, toda a factualidade vertida na acusação, apenas se qualificando juridicamente de forma diversa essa mesma factualidade, não é admitido recurso desse despacho, por a situação se enquadrar claramente na previsão do n° 1 do art° 310°, do CPP. Consigne-se, porém, que o regime de irrecorribilidade da decisão instrutória aludida no art° 310°, nº 1, do CPP, não se estende à decisão das questões prévias ou incidentais a que se refere o art° 308°, nº 3, do mesmo Código. O que se compreende, pois este normativo apenas declara irrecorrível o despacho que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Mº Público, o que inculca uma decisão instrutória de fundo, nada nos dizendo sobre a recorribilidade da decisão instrutória «de forma», como é a que se refere
àquelas questões prévias ou incidentais. Anote-se que, remetendo-se a consistência da acusação, ou da pronúncia que se limitou a aceitar toda a factualidade naquela vertida, para o julgamento, compreende-se que não assista ao arguido o direito de recorrer, em nome do já aludido princípio da aceleração processual, sendo certo que - como anotado supra
-- a lei sempre o protege com a presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória (cfr. art° 32°, nº 2 da CRP). Assim sendo, somos chegados à questão da questionada inconstitucionalidade do artº 310°, nº 1 do CPP. Ora, sem prejuízo de se louvar o aturado e mui douto trabalho que a motivação do recorrente consubstancia relativamente a esta questão, parece para nós manifesto que, efectivamente, o citado art° 310°, nº 1, do CPP, não é inconstitucional - posição que já tomámos noutras alturas e não alvejamos razões válidas para deixar de seguir--, não violando os princípios constitucionais da igualdade e das garantias de defesa do arguido em processo penal, pois que este já beneficiou destas com a possibilidade de abertura da instrução. Os motivos pelos quais o Tribunal Constitucional tem entendido não existir a pretendida inconstitucionalidade do art° 310°, nº 1, do CPP, vêm, resumidamente, aflorados na bem elaborada resposta do Mº Pº na primeira instância à motivação de recurso, não se alvejando necessidade de acrescentar algo mais ao que ali se escreveu. Permitimo-nos, porém, passar aqui as duas transcrições de dois sumários de acórdãos daquele Tribunal Constitucional que ali se fizeram. Assim, no Acórdão do Tribunal Constitucional n° 690/96, que decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 310° do Código de Processo Penal de 1987, escreveu-se que:
‘I. Na perspectiva das garantias de defesa e no plano do direito infraconstitucional, a abertura da instrução corresponde ao exercício de uma faculdade, tendente a obter uma averiguação jurisdicional sobre a existência de indícios suficientes para promover o julgamento (indícios de que resulte uma possibilidade razoável de ao arguido ser aplicada pena ou medida de segurança), que fundamentam o despacho de acusação. II. De todo o modo, a não obrigatoriedade de uma fase instrutória é legitimada, constitucionalmente, por um desígnio de celeridade que surge associado ao próprio princípio de presunção de inocência do arguido. Ora, a celeridade não só é compatível com as garantias de defesa, podendo coincidir com os fins de presunção de inocência, como é instrumental dos valores últimos do processo penal - a descoberta da verdade e a justa decisão da causa – próprios de um Estado democrático de direito. III. (...) IV. O regime especial de irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, não é arbitrário, encontrando fundamento na existência de indícios comprovados, de modo coincidente, em duas fases do processo: pelo Ministério Público, dominus do inquérito, e pelo juiz de instrução. V. Sendo certo que o n° 1 do artigo 32° da Constituição impõe que se consagre o direito de recorrer de decisões condenatórias e de actos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou restrição de liberdade ou de outros direitos fundamentais desde que não atinja o conteúdo essencial das garantias de defesa e a limitação seja justificada por outros valores relevantes no processo penal.’ Acrescentou-se na dita resposta do Mº Pº:
‘Neste sentido, também tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente, no Acórdão de 19 de Janeiro de 2000, DR 18-A de 7 de Março de
2000, onde se refere expressamente que ‘A norma do artigo 310º nº 1 do C.P.P. estabelece a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, confinando-se a sindicabilidade da mesma ao próprio julgamento. Tal norma, que surge na sequência da orientação da comissão encarregada de elaborar o CPP, tem manifestamente por escopo uma preocupação de aceleração processual. O arguido que é pronunciado por factos que o Ministério Público o acusou terá de ser submetido a julgamento, se não sobrevier causa extintiva do procedimento criminal, não sofrendo com tal imposição qualquer ‘prejuízo ilegítimo pois que até uma eventual decisão com trânsito em julgado beneficiará da presunção de inocência’. Tudo claro, portanto, corroborando esta posição de que o citado art° 310°, nº 1, não sofre de inconstitucionalidade vários outros Arestos daquele Tribunal, como são os Acórdãos nos 610/96, de 17 de Abril, BMJ 456-158; 158/98, de 5 de Março, DR, II Série e de 11 de Julho e 30/2001, DR, II Série, de 23/03/01.
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Fez então o arguido juntar aos autos requerimento com o seguinte teor:-
‘A., já identificado nos autos e neles arguido/recorrente, não podendo conformar-se com o acórdão neles proferido - o qual, salvo o devido respeito, parece não se ter apercebido do tema posto à cognição dos Ex.mos Senhores Desembargadores - vem do mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos art.ºs 69º e ss da Lei do Tribunal Constitucional.
Evidentemente que através do presente recurso não pretende discutir-se, em si mesma, a ‘dupla conforme’ alegadamente verificada nos autos, nem sequer a ousada afirmação que a corporiza e o recorrente não consegue entender - ‘erros seus’, como diria Luís de Camões ou porventura , ‘má fortuna’, quem sabe? - segundo a qual o facto de o arguido circular a velocidade alegadamente superior a 100 kms/hora lhe é mais favorável do que aquela outra segundo a qual o faria a mais de 120 kms/hora.
Antes se tem em vista, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a apreciação por este pretório da conformidade das seguintes normas ou princípios normativos: da 1ª parte do nº 1 do art. 310º do CPP, à luz do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 32º, nº 4 (e, implicitamente do art. 286º, nº 1 do CPP, dado que aquele é destituído de conteúdo material, se não for lido à face deste, como entendeu ao menos implicitamente o Tribunal Constitucional no acórdão em que procedeu à fiscalização preventiva de certas normas do CPP de 1987) e 32º, nº 1, ambos da Constituição da República. A questão foi largamente suscitada, sem êxito, por agora, na motivação do recurso do despacho da M.ma Juíza do 1º Juízo Criminal da Santo Tirso - conf., aí, items A1.1., A1.2. e CONCLUSÕES B2 a B4.
Com efeito, pretende-se que o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade material da referida norma do direito ordinário (art.
310º, nº 1), na medida em que a mesma ilaqueia, no que toca a um direito fundamental, o direito à instrução, assegurado pelo nº 4 do art. 32º da norma normarum com a funcionalidade que lhe foi adscrita pelo disposto no nº 1 do art.
286º do CPP, o direito ao recurso de uma decisão - a decisão instrutória - que tem apetência para constituir uma decisão final (art. 268º, nº 1) talqualmente as que são proferidas findo o julgamento. Por conseguinte, a referida limitação ao recurso da decisão judicial proferida como culminar do referido direito fundamental - que, de resto, é a única que o art. 310º, nº 1 consagra e, para mais, com base em conformidade de juízos de entidades diferentes - viola também o direito ao recurso, direito este assegurado pelo art. 399º do CPP e 32º nº 1, segunda parte da Constituição.
Outrossim se pretende a declaração de inconstitucionalidade material do disposto no nº 2 do art. 283º do CPP, aplicável na instrução ex vi art. 308º, nº
2 do CPP, quando o mesmo for interpretado e aplicado como o foi no caso vertente, pois uma decisão judicial relativa a um direito fundamental com as preditas características, não pode pautar-se pelos mesmos critérios que bastam ao ministério público para proceder a um juízo indiciário no qual se baseia a dedução de acusação. Um tal tão acrítico, como irritamente sedimentado entendimento, viola os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, consagrados no nº 2 do art. 32º do diploma fundamental e no nº 2 do art. 6º da Convenção Europeia. Esta questão foi objecto de larga explanação na já assinalada motivação recursal e está sintetizada nas CONCLUSÕES B5 a B8 da mencionada peça.
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O recurso para este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa veio a ser admitido por despacho prolatado em 2 de Maio de 2003 pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação do Porto, vindo o processo a ser remetido ao predito órgão em 8 de Julho seguinte.
2. Entende-se ser de proferir decisão nos termos do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Como deflui do relato supra levado a efeito, o recurso interposto pelo ora impugnante visa que o Tribunal Constitucional efectue um julgamento de desconformidade com normas ou princípios insertos na Lei Fundamental (é de presumir que, por lapso, o recorrente mencione «declaração» de inconstitucionalidade) concernentemente a duas normas, sendo uma a constante da primeira parte do nº 1 do artº 310º do Código de Processo Penal, no ponto em que não permite a impugnação jurisdicional da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, e outra a vertida no nº 2 do artº 283º do mesmo diploma, numa dada interpretação - que o recorrente minimamente não explicita no requerimento de interposição de recurso
(vincando-se que essa explicitação, para o caso, não releva, atento o que adiante se exporá).
2.1. Começando por esta última, é por demais evidente que o aresto ora sub iudicio, directa ou indirectamente, explícita ou implicitamente, não efectivou a aplicação, para o feito que tinha de decidir, de qualquer normativo integrado no corpo de leis adjectivas criminais e do qual resulte, juridicamente, aquilo que deve ser considerada suficiência de indícios de que possa resultar uma possibilidade razoável de a um arguido vir a ser aplicada em julgamento, e por via deles, uma pena ou medida de segurança.
Na realidade, no discurso utilizado pelo acórdão em espécie não se lobriga minimamente que o mesmo tivesse, de todo, debruçado a sua atenção e discutido a factualidade carreada à acusação, à instrução e à subsequente decisão instrutória, ou - e é isso que aqui mais interessa - que tivesse gizado um qualquer juízo de valor jurídico do qual resultasse que a apreciação da suficiência de indícios utilizada na decisão instrutória tinha de ser aquilatada de modo idêntico ao que é exigível para a entidade formuladora da acusação.
Neste contexto, e por o acórdão em crise não ter aplicado a norma do nº
2 do artº 283º do Código de Processo Penal, possível não será tomar-se conhecimento do objecto do recurso a ela atinente, pois que, in casu, se não congrega o requisito da aplicação, na decisão querida submeter à censura deste Tribunal, do normativo cuja desarmonia com a Constituição foi sustentada precedentemente ao proferimento daquela decisão.
Resta, desta sorte, a apreciação da norma do nº 1 do artº 310º do aludido Código.
2.2. Tem este Tribunal perfilhado, conquanto por maioria, uma jurisprudência (que o ora relator tem sufragado) de acordo com a qual a irrecorribilidade da decisão instrutória, ditada pelo normativo agora em apreço, mesmo após o aditamento ao nº 2 do artigo 32º do Diploma Básico da asserção
«incluindo o recurso», aditamento esse operado pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, não se mostra feridente de normas ou princípios constantes da Constituição (cfr., por entre muitas outras decisões, as tomadas, verbi gratia, pelos Acórdãos deste órgão de administração de justiça números 156/98 - in Diário da República, 2ª Série, de 7 de Maio de 1998, 238/98, inédito, 266/98, in Diário da República, 2ª Série, de 11 de Julho de 1998, 299/98, 300/98, 732/98, inéditos, 216/99, in Diário da República, 2ª Série, de 6 de Agosto de 1999,
471/2000, inédito, 30/2001, in Diário da República, 2ª Série, de 23 de Março de
2001, e 463/2002, inédito).
A corte de razões que foram trazidas aos exemplificados arestos (e que se tornaria fastidioso aqui estar a repetir ou sintetizar), tradutoras da jurisprudência do Tribunal, é cabível no vertente caso, justificando-se, por isso, - ou seja, justamente em função de a questão agora em análise já ter sido objecto de anteriores decisões, todas tomadas no mesmo sentido -, a emissão da presente decisão ex vi do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº 28/82.
3. Desta arte, não se toma conhecimento do objecto do recurso no que tange à norma do nº 2 do artº 283º, negando-se-lhe provimento no que se reporta
à norma do nº 1 do artº 310º, este como aquele do Código de Processo Penal.
Custas pelo recorrente, fixando-se em cinco unidades de conta a taxa de justiça”.
2. Da transcrita decisão reclamou o recorrente, requerendo que sobre o seu teor e sobre o problema da recorribilidade da decisão instrutória em caso de dupla conforme, fosse proferido acórdão.
Para fundamentar essa solicitação, disse o arguido:
“1. Da consulta, até onde a mesma se mostrou factível, dos diversos acórdãos citados na assinalada douta ‘decisão sumária’ não se colhe, salvo o devido respeito - muito antes pelo contrário - que alguma vez o Tribunal Constitucional tenha encarado a questão da constitucionalidade para cujo julgamento foi convocado, da perspectiva em que o recorrente a coloca.
2. Com efeito, o fulcro da argumentação aduzida por este é bem diferente daquela que perpassa os acórdão referidos no despacho do Senhor Juiz Conselheiro Relator. É que, aquele, não se limita a sediar a questão na mera interpretação do disposto art. 32°. n° 1, segunda parte da CRP, na redacção que para este normativo adveio da Lei Constitucional n° 1/97. Muito diferentemente, o demiurgo da récita centra-se no facto de a instrução ou, se se preferir, da injunção constitucional da existência de uma fase chamada da instrução, da competência de um juiz, constituir um direito fundamental. Direito fundamental ou, direito. liberdade e garantia individual ao qual, nos termos do citado normativo constitucional, é atribuído um conteúdo meramente formal. E, por isso, carecido de concretização ao nível do direito legislado, quanto ao respectivo conteúdo, o que foi deixado ao legislador ordinário. Essa concretização advém, pois, do n° 1 do art. 286° do CPP, o qual constitui uma norma de valor reforçado. Só ante esta forma inovadora de ver as coisas se justifica o apelo, num segundo momento, ao disposto na segunda parte do nº 1 do art. 32° da CRP. Logo, o que pretende demonstrar-se é que, assente o referido caril da instrução e não obliterando que, através dela, o requerente dessa fase, mormente o arguido, ao menos em certos casos, visa a obtenção de uma decisão que, para todos os efeitos é uma ‘decisão final’, não se compreende a diferença de regimes entre a decisão final posterior ao julgamento e aquela outra que se visa obter por força da instrução. Como é o caso dos autos, no qual o recorrente visa a prolação de um despacho de não pronúncia, o qual conduzirá ao arquivamento dos autos e, por conseguinte, à declaração da sua irresponsabilidade criminal.
3. Foi justamente com base neste argumentário que Figueiredo Dias superou e irrespondivelmente, as aporias colimadas à interpretação do conceito de ‘instrução’ e à consequente questão de saber se a Constituição da República impunha, à semelhança do que se passava no CPP29 que a investigação esgotava o conteúdo do nomen iuris instrução e por conseguinte, este deveria ser da competência de um juiz. Conf., neste preciso sentido, do assinalado douto Mestre, 'Para uma reforma global do processo penal português’, in Para uma nova Justiça Penal, Almedina, 1983, especialmente 225 e 226. E anteriormente, no mesmo sentido, a conferência do mesmo ilustre Professor, publicada em A revisão constitucional, o processo penal e os Tribunais, Livros Horizonte 1981, 43 e ss e sobretudo 53-55.
4. Por conseguinte, o facto de o Tribunal Constitucional e, para mais, com votos de vencido, se vir pronunciando, por conseguinte, apenas maioritariamente, exclusivamente enfocando a questão sub specie do art. 32°, n°
1 da CRP sobre a não inconstitucionalidade da restrição do direito ao recurso na
única hipótese figurada no n° 1 do art. 310º do CPP, não significa, face ao que se deixou escrito, salvo o devido respeito, que tenha esgotado, per omnia, secula seculorum, todas as diferentes formas de perspectivação da problemática e, em concreto, aquela inovadora agora chamada à colação.
5. De resto, se bem se atentar, até pode dizer-se que, lida a norma do nº 1 do art. 32° (sua segunda parte), ao não estabelecer a mesma qualquer
possibilidade de o direito ao recurso ser restringido por disposição legal, nos termos do disposto no n° 2 do art. 18° da CRP não pode admitir-se qualquer limitação, por via legal, a esse direito, pelo que a primeira parte do n° 1 do art. 310° do CPP, também - por força desta ordem de razões, seria sempre de considerar inconstitucional.
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Ouvido sobre a reclamação, o Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido de a mesma em nada abalar a decisão reclamada, aditando que “perante a reiterada orientação deste Tribunal Constitucional acerca da questão da constitucionalidade da norma contida no nº 1 do artigo 310º -”, não via “que o enfoque dado pelo reclamante” tivesse “virtualidades suficientes para pôr em crise o entendimento do Tribunal Constitucional acerca do âmbito do direito ao recurso, no que se reporta a decisões interlocutórias no processo penal”.
Cumpre decidir.
3. Como resulta do relato supra efectuado, a discordância do reclamante quanto à peça processual ora em crise centra-se na circunstância de a jurisprudência deste Tribunal nela citada, fundamentadora do decidido, não ter enfocado a questão atinente ao normativo vertido no nº 1 do artº 310º do Código de Processo Penal, no prisma de se estar perante um direito fundamental, precisamente aquele que resulta constitucionalmente da atribuição ao arguido do jus a uma instrução da competência de um juiz, fase adjectiva essa que, para todos os efeitos, há-de ser perspectivada como uma decisão final.
Não se acha, contudo, que a jurisprudência tirada por maioria pelo Tribunal Constitucional possa ser lida como se dela fosse arredada a óptica de que a instrução é um direito fundamental posto ao dispor do arguido e que intenta o proferimento de uma decisão jurisdicional final.
Na verdade, em ponto algum daquela jurisprudência é possível descortinar-se que, ainda que incidindo sobre garantias fundamentais como aquelas que se extraem do artigo 32º da Lei Fundamental, a mesma se tivesse afastado ou tivesse rejeitado, ainda que implicitamente, que ao arguido não era, constitucionalmente, atribuído um «direito à instrução» da competência de uma entidade imparcial e independente titular do poder soberano de administração da justiça.
Efectivamente, falar aqui de um respeito pelas garantias fundamentais postuladas pelo Diploma Básico que o legislador ordinário deve observar ao gizar normativos do processamento adjectivo criminal, ou de um dever de acatamento de um direito fundamental consagrado por aquele diploma, não passa de uma quase mera questão semântica.
Isso vale por dizer que a mencionada jurisprudência, ao concluir pela não enfermidade constitucional da norma constante do nº 1 do artº
310º do Código de Processo Penal, não teria deixado de ponderar a circunstância de a mesma não violar quaisquer direitos ou garantias fundamentais do arguido injuntivamente prescritos pela Constituição.
Pelo que tange ao entendimento de harmonia com o qual a instrução deve ser visionada como uma fase processual que visa obter uma decisão final jurisdicional, a jurisprudência do Tribunal tem devidamente sublinhado que se está perante uma situação diversa daquela a que se reporta a sentença penal, visto que, ao menos quando se trate de uma decisão judicial de pronúncia, esta não pode ser deixada de ser considerada como a emissão de um juízo necessariamente indiciário e por natureza provisório de conteúdo não condenatório.
A decisão judicial de pronúncia só poderia ser perspectivável como uma «decisão final» no ponto em que conduziria à submissão a julgamento do arguido, quando pronunciasse pelos factos acusados pelo Ministério Público e nela não fossem decididas nulidades arguidas no decurso do inquérito, da instrução e demais questões prévias ou incidentais. Mas, de todo o modo, mesmo nessa perspectiva, não é defensável que se poste uma situação de existência de uma decisão judicial definitiva de cariz sancionatório.
Isso significa que, em rectas contas, a jurisprudência de que se deu eco na decisão reclamada contém em si argumentário bastante para concluir que, mesmo tendo em conta o prisma enfocado pelo reclamante, se não entende como contrário à Constituição o normativo precipitado no nº 1 do artº
310º do Código de Processo Penal.
Em consequência, a decisão em crise não merece censura, pelo que se indefere a reclamação, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando em quinze unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 30 de Outubro de 2003
Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida