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Processo n.º 159/03
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. foi acusado pelo Promotor de Justiça junto do Tribunal Militar Territorial de Tomar pela prática de quatro crimes de insubordinação, sendo dois previstos e punidos pelo artigo 72º, n.º 1, alínea d), um previsto e punido pelo artigo 75º, alínea a), com referência ao artigo 76º, um previsto e punido pelo artigo 79º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Justiça Militar, e um crime por embriaguez, previsto e punido pelo artigo 126º, alínea c), também do Código de Justiça Militar.
Por acórdão de 5 de Novembro de 2002, de fls. 143, o Tribunal Militar Territorial de Tomar decidiu:
“1. Nos termos de facto e de direito expostos, Acordam os Juízes que constituem o Tribunal Colectivo, constituído neste Tribunal Militar Territorial de Tomar, em julgar o douto Libelo totalmente procedente e provado, e, por isso que condenam o Soldado da G.N.R. n.º -----------, A., pela prática dos seguintes crimes: a) Dois crimes de insubordinação por desobediência, p. e p. pelo Artigo
72º, n.º 1, alínea d), do C.J.M., na pena de 6 (seis) meses de Presídio Militar, por cada um desses crimes; b) Um crime de insubordinação por ofensa corporal em tempo de paz, p. e p. pelo Artigo 75º, alínea a), e 76º do C.J.M., na pena de 10 (dez) meses de Presídio Militar; c) Um crime de insubordinação por meio de outras ofensas ou ameaças, p. e p. pelo Artigo 79º, n.º 1, alínea a), do C.J.M., na pena de 8 (oito) meses de presídio Militar; d) Um crime de embriaguez em serviço, p. e p. pelo Artigo 126º, alínea c), do C.J.M., na pena de 2 (dois) meses de Presídio Militar.
2. Operando agora o cúmulo jurídico das penas parcelares ora impostas ao arguido, e, tendo em atenção o disposto no artigo 40º do C.J.M. e o artigo 77º do Código Penal, vai o arguido Soldado da G.N.R. n.º -------------, A., condenado na pena única de 16 (dezasseis) meses de Presídio Militar.”
Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal Militar, o qual por acórdão de 6 de Fevereiro de 2003, de fls. 203, absolveu o recorrente “dos dois crimes de insubordinação por desobediência, previstos e punidos pelo artigo 72º, n.º 1, alínea d), do C.J.M., de que vinha acusado”, e refez “o cúmulo jurídico, agora com as penas parcelares de dez (10) meses de presídio militar, oito (8) meses de presídio militar e dois (2) meses de prisão militar, ficando o recorrente A. condenado na pena global única de catorze (14) meses de presídio militar”.
No acórdão do Supremo Tribunal Militar afirmou-se ainda, com interesse para o presente recurso, o seguinte:
“O recorrente A. invoca a excepção do caso julgado por os factos descritos no libelo acusatório, com excepção da embriaguez em serviço, terem sido objecto de um processo de inquérito que correu na Comarca de Lagos e foi mandado arquivar por despacho do Procurador Adjunto dessa Comarca, transitado em julgado. Essa decisão impediria o conhecimento dos mesmos factos pelo Tribunal a quo, sob pena da violação do princípio ne bis in idem constitucionalmente consagrado. Não assiste, porém, razão ao recorrente. Na verdade, o artigo 29º, n.º 5, da Constituição, que impõe o princípio ne bis in idem estatui que ‘Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime’. Ora, no caso sub judicio nem o recorrente foi julgado, nem se trata do mesmo crime. O processo de inquérito respeitava aos crimes de ofensas à integridade física, ameaças e injúrias, todos referentes aos direitos pessoais dos ofendidos, enquanto o presente processo versa vários crimes de insubordinação que protegem os valores ou bens jurídicos da hierarquia e da disciplina militares. Por outro lado, o despacho que ordena o arquivamento do inquérito não é ‘caso decidido’, nem forma caso julgado, já que pode ser oficiosamente revogado pelo superior hierárquico do magistrado que ordenou o arquivamento (artigo 278º do C.P.P.) e o inquérito pode ser reaberto (artigo 279º do C.P.P.)”.
2. Novamente inconformado, A. veio recorrer para o Tribunal Constitucional, “ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional e pelas seguintes razões:
Tendo o tribunal a quo desatendido o pedido do arguido de considerar o foro militar absolutamente incompetente em razão da matéria para julgar os factos constantes da acusação, no que respeita aos crimes de injúrias, ameaças e ofensas à integridade física, não revogando o Acórdão do Tribunal de 1ª Instância, proferido em 5/11/2002, e, com igual fundamentação, manteve a sua condenação em 10 meses de presídio militar pela prática de um crime de insubordinação por ofensa corporal, p. e. p. pelo artigo 75º, alínea a), com referência ao artigo 76º, do C.J.M., e em 8 meses de presídio militar pela prática de um crime de insubordinação por meio de outras ofensas ou ameaças, p. e p. pelo artigo 79º, n.º 1, alínea a), do CJM, em violação do princípio constitucional e de direito ne bis in idem, já que pelos mesmos factos e após inquérito, o Digníssimo Magistrado do Ministério Público na Comarca de Lagos tinha proferido despacho, em 15/07/2002, ordenando, naquela parte, o arquivamento dos autos, despacho que não foi objecto de recurso, não foi revogado pelo superior hierárquico do magistrado que ordenou o arquivamento nem foi ordenada a sua reabertura por quem de direito, pelo que transitou em julgado.
Pretende-se em síntese: a) A apreciação da inconstitucionalidade do julgamento do arguido no foro militar, no que respeita aos crimes de injúrias, ameaças e ofensas à integridade física, por violação do princípio ne bis in idem, plasmado no artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, face ao despacho do magistrado competente da Comarca de Lagos. b) A apreciação da inconstitucionalidade dos artigos 75º, alínea a), e 79º, n.º
1, alínea a), ambos do Código de Justiça Militar, se interpretados no sentido de considerar como essencialmente militar os crimes de injúrias, ameaças e ofensas
à integridade física, praticados pelo arguido enquanto mero cidadão, por violação do artigos 213º e 215º (versão de 1989) da Constituição da República Portuguesa, face à qualificação dos factos que lhe foram dados pelo Magistrado do Ministério Público da comarca de Lagos. c) Apreciação da inconstitucionalidade dos artigos 75º, alínea a), e 79º, n.º 1, alínea a), ambos do CJM, efectivamente aplicados no Acórdão condenatório, por preverem uma moldura penal excessivamente gravosa e sem respeito pelos princípios da necessidade, da proporcionalidade e da adequação das penas, discriminando negativamente o cidadão militar em relação ao cidadão comum, em violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade constantes dos artigos 13º, n.º 1, e 18º da Constituição da República Portuguesa, face às molduras penais previstas para os mesmos crimes no Código Penal.”
3. A fls. 236 foi proferido o despacho que a seguir se reproduz, na parte relevante:
“Para alegações, sendo o objecto do recurso limitado às alíneas b) e c) do respectivo requerimento de interposição, de fls. 219, uma vez que na alínea a) do mesmo requerimento não é colocada qualquer questão de constitucionalidade normativa que possa ser conhecida pelo Tribunal Constitucional”.
4. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as correspondentes alegações.
Quanto ao recorrente, relativamente à delimitação do objecto do recurso feita no despacho acabado de referir, veio dizer que, “efectivamente, não é colocada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, mas, pelo menos, é colocada uma questão de ilegalidade, por eventual violação do princípio
‘ne bis in idem’, constante do Artº 29º, n.º 5, da CRP, para cuja apreciação também é competente o Tribunal Constitucional.
Porém, há que produzir alegações em conformidade com o aliás douto despacho “. E formulou as seguintes conclusões, na parte relevante:
“...
5ª - Participados estes factos pela Região Militar Sul aos Serviços do Ministério Público na Comarca de Lagos, foi instaurado o Inquérito n.º -------- TALGS, findo o qual o Ilustre Magistrado Ministério Público proferiu douto despacho (fls. 169 a 176 dos autos) onde, quanto à qualificação dos factos, decidiu que, no que respeita a injúrias e ameaças, os factos eram susceptíveis de, em abstracto, integrarem a prática de dois crimes p. e p. pelo artigo 153º do CP e um crime p. e p. pelos artigos 181º e 184º, com referência ao artigo
132º, n.º 2, alínea j), do mesmo diploma legal e, quanto às ofensas à integridade física, os factos eram susceptíveis de, em abstracto, integrarem a prática de dois crimes p. e p. pelo artigo 146º, n.ºs 1 e 2, com referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea j), do Código Penal.
6ª - Contudo, entendendo aquele Ilustre Magistrado que arguido e ofendidos, todos colegas de profissão, intervieram nos factos na qualidade de meros cidadãos, que a conduta do arguido não revelou especial censurabilidade e perversão exigidos para a verificação de crime qualificado e, atendendo a que os ofendidos declararam desistir da queixa e não desejar procedimento criminal contra o arguido pelos factos denunciados, julgou válida a desistência e determinou, naquela parte, o arquivamento dos autos.
7ª - O Magistrado do Ministério Público na Comarca de Lagos, no fim do inquérito, apenas deduziu acusação contra o arguido pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º do Código Penal, tendo-se decidido pelo arquivamento dos autos quantos aos restantes factos denunciados, despacho que não foi objecto de recurso, não foi revogado pelo superior hierárquico do magistrado que o proferiu, nem foi mandado reabrir por quem tivesse legitimidade para tal, pelo constitui caso decidido.
8ª - Na fase do Inquérito, a homologação da desistência da queixa é da competência do Ministério Público, como se dispõe no artigo 51º, n.º 2, do Código Penal.
9ª - A tese do Tribunal a quo de que os factos denunciados como crimes comuns também eram simultaneamente crimes essencialmente militares, por violarem valores ou bens jurídicos da hierarquia e da disciplina militares, assenta numa construção jurídica violadora dos princípios constitucionais e, a vingar, permitiria que um arguido, pelos mesmos factos, fosse julgado tantas vezes como os hipotéticos bens a proteger.
10ª - O Tribunal Constitucional, em vários acórdãos, já se pronunciou sobre o conceito de crime essencialmente militar, concluindo que não basta a violação de bens jurídicos da hierarquia e da disciplina militares para a verificação de um crime essencialmente militar, sendo necessário que a infracção ofenda a sociedade em geral e não apenas a instituição militar.
11ª - Para a realização da protecção dos valores ou bens jurídicos da hierarquia e da disciplina militares existe um ordenamento jurídico-disciplinar próprio, o Regulamento de Disciplina Militar (RDM) ou o regulamento Disciplinar da GNR, que se destinam precisamente a proteger a coesão e os interesses disciplinares das instituições militares.
12ª - Como dispõe o artigo 6º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, compete ao Tribunal Constitucional apreciar a inconstitucionalidade e a ilegalidade nos termos dos artigos 277º e seguintes da Constituição e da presente lei.
13ª - Os factos praticados pelo arguido, ora recorrente, no que respeita a injúrias, ameaças e ofensas à integridade física, não constituem crimes essencialmente militares, não só pelas razões constantes do Despacho do Ilustre Magistrado do Mº Pº, proferido no Inquérito n.º ---------- TALGS (fls. 169 a 176 dos autos), visto que o arguido e os ofendidos neles intervieram na qualidade de meros cidadãos, mas também porque nenhum deles interveio no desempenho de qualquer missão de serviço que lhe tivesse sido atribuída ou que legalmente devesse praticar.
14ª - Resulta do texto do Acórdão recorrido que o tribunal a quo aceita como correcto e legal o despacho de arquivamento proferido pelo Magistrado do Ministério Público na Comarca de Lagos, só que seguidamente, considera que os mesmos factos constituem crimes essencialmente militares, o que, com todo o respeito que nos merece aquele Alto Tribunal, é um absurdo, pois os mesmos factos não podem constituir simultaneamente crimes comuns e crimes essencialmente militares.
15ª - Como se disse no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 48/99, de
19/1/1999, não poderão, assim, entrar na definição de crimes essencialmente militares os crimes comuns em que a única ligação com a instituição militar seja a qualidade de militar do seu agente ou qualquer outro elemento acessório.
16ª - Assim, as normas dos artigos 75º, alínea a), e 79º, n.º 1, alínea a), ambos do CJM, se interpretados nos termos em que o fez o tribunal a quo, de considerar como essencialmente militares os crimes de injúrias, ameaças e ofensas à integridade física praticados pelo arguido como mero cidadão e projectados sobre colegas na mesma qualidade, são inconstitucionais, por violação dos artigos 213º e 215º (versão de 1989) da CRP, face à qualificação dos factos que lhe foram dados no Despacho proferido pelo Ministério Público e que não foi objecto de tempestivo recurso.
17ª - A norma do artigo 75º, alínea a), do CJM, não só não prevê a alternativa de multa, constante da lei penal comum, como o mínimo da sua moldura penal é superior em três anos ao máximo previsto no correspondente artigo 143º do Código Penal.
18ª - Também a norma do artigo 79º, n.º 1, alínea a), do CJM, além de não prever a pena de multa em alternativa à pena de prisão, o limite mínimo da sua moldura penal é superior em mais de dois anos à soma do limite máximo das duas penas previstas nos correspondentes artigos 153º e 181º do Código Penal.
19ª - É inaceitável que de actos praticados sob o efeito de uma taxa de alcoolémia de 2,27 g/l, de que não resultaram sequelas, com reduzida ou nula consciência da ilicitude, o que foi compreendido pelos ofendidos que desistiram da queixa, na sequência do que a entidade competente ordenou, nessa parte, o arquivamento dos autos, resulte uma severíssima pena de 14 meses de prisão efectiva a um arguido primário, com bom comportamento anterior e posterior aos factos, considerado pelos seus camaradas como um militar exemplar, educado e trabalhador, como consta dos factos provados, pondo em causa não só uma carreira como a estabilidade económica de todo o agregado familiar.
20ª - As normas dos artigos 75º, alínea a), e 79º, n.º 1, alínea a), ambas do CJM, ao preverem molduras penais excessivamente exageradas em relação às molduras penais previstas no Código Penal para idênticos crimes comuns, não tendo em conta os princípios da necessidade, da proporcionalidade e da adequação das penas, são inconstitucionais, por violarem o princípio da igualdade conjugado com o da proporcionalidade, constantes dos artigos 13º e 18º da Constituição da República”.
Quanto ao Ministério Público, para quem é manifestamente infundado questionar a inclusão do crime de insubordinação “no catálogo dos crimes essencialmente militares”, começou por observar que “é, desde logo, duvidoso que as normas do Código de Justiça Militar, questionadas pelo recorrente, tenham sido aplicadas com o sentido por ele especificado, já que a condenação do arguido assentou obviamente – não no cometimento daqueles tipos penais – mas de vários crimes de insubordinação: o facto de as ofensas ou ameaças, dirigidas pelo subordinado militar ao seu superior hierárquico, integrarem elementos da
‘fattispecie’ daquele crime de insubordinação, não autoriza que se autonomizem como tipos penais autónomos. Na verdade, e como é óbvio, é perfeitamente diferenciado o bem jurídico tutelado pelas normas em que assentou a condenação – o referido crime essencialmente militar de insubordinação – e invocadas pelo recorrente – o direito à honra e integridade física do lesado.” E formulou as seguintes conclusões:
“1 – Não são inconstitucionais as normas penais que tipificam e sancionam, como crime essencialmente militar, a insubordinação por ofensa corporal e outras ofensas ou ameaças, já que tal tipo visa proteger um bem jurídico – a disciplina
– essencial às forças armadas, tendo plena autonomia relativamente aos crimes comuns de injúrias, ameaças e ofensas à integridade física.
2 – A pena cominada para o tipo legal da insubordinação não viola qualquer preceito ou princípio constitucional, não se revelando desproporcionada à relevância daquele bem jurídico estritamente militar – e não sendo obviamente comparável, dada a diversidade de bens jurídicos tutelados, com a cominada para os crimes de injúrias e ameaças entre cidadãos não militares.
3 – termos em que deverá improceder o presente recurso.”
5. Cabe começar por fixar o objecto do recurso, que se considera delimitado nos termos do despacho de fls. 236. Acrescenta-se, todavia, que a afirmação, dele constante, de que o recorrente, na alínea a) do requerimento de interposição de recurso, não define nenhuma questão de constitucionalidade normativa susceptível de ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, valeria igualmente para o caso de o recorrente a ter qualificado como uma questão de ilegalidade, já que, em qualquer caso, não define nenhuma norma que o Tribunal Constitucional possa apreciar.
Seja como for, o recurso interposto não possibilitaria o conhecimento de nenhuma questão de ilegalidade (cfr. artigo 70º da Lei nº
28/82).
São os seguintes os textos das normas impugnadas, ambas do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 141/77, de 9 de Abril, e ambas constantes da Secção IV do Capítulo relativo aos “Crimes essencialmente militares”, que trata do crime de “Insubordinação”:
:
– Artigo 75º, alínea a):
Artigo 75º
O militar que em tempo de paz, ofender corporalmente algum superior, não resultando a morte ou a incapacidade para o serviço militar, será punido: a) Com a pena de presídio militar de seis a oito anos, se a ofensa for cometida em acto de serviço, em razão de serviço ou em presença de tropa reunida;
(...)
– Artigo 79º, n.º 1, alínea a):
Artigo 79º
1. A ofensa por meio de palavras, escritos ou desenhos, publicados ou não publicados, ameaças ou gestos, cometida por qualquer militar contra superior será punida: a) Com presídio militar de quatro a seis anos, se a ofensa for cometida em acto de serviço, em razão de serviço ou em presença de tropa reunida;
(...)
São duas as questões de constitucionalidade normativa suscitadas nos presentes autos e referidas a estes preceitos.
Em primeiro lugar, a questão de saber se violam os artigos 213º e 215º da Constituição, na redacção de 1989, as normas, constantes da alínea a) do artigo
75º, e da alínea a) do n.º 1 do artigo 79º do Código de Justiça Militar, segundo as quais o crime de insubordinação, cometido, respectivamente, por meio de ofensa corporal e de palavras ou ameaças a superior, em acto de serviço, é um crime essencialmente militar; em segundo lugar, a questão de saber se tais normas impugnadas prevêem molduras penais excessivamente gravosas e violadoras dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, bem como o princípio da igualdade, por confronto com as molduras penais previstas no Código Penal para os crimes de ofensas corporais, de injúrias e de ameaças.
6. A questão de saber se os crimes previstos nas normas impugnadas se pode considerar como sendo “essencialmente militares” à luz do disposto no artigo 215º da Constituição, na versão anterior à Revisão de 1997, coloca desde logo o problema de saber se é efectivamente esse o parâmetro de aferição de inconstitucionalidade a ter em conta, atendendo a que os factos em causa no presente processo foram já praticados depois da mencionada Revisão, ou se não deverá ser, antes, o artigo 211º, n.º 3, da Constituição, onde se fala em crimes de natureza “estritamente militar”.
A este propósito afirmou-se no Acórdão n.º 194/2002 e, posteriormente, no Acórdão n.º 172/2003 (ambos inéditos, mas que podem ser consultados na página do Tribunal Constitucional na Internet, em http://www.tribunalconstitucional.htm), o seguinte:
“O recorrente sustenta que o disposto no artigo 197º da Lei Constitucional n.º
1/97 significa que os tribunais militares que se mantêm em vigor por força dessa disposição apenas têm competência para julgar os crimes estritamente militares, nos termos do artigo 213º da Constituição. Ora, tal argumentação o artigo 213º reporta-se a tribunais militares a constituir, quando os actuais forem extintos o que coincidirá com a regulamentação do artigo 211º, n.º 3, da Constituição. Enquanto tal não acontecer, mantêm-se em vigor os tribunais militares, não fazendo sentido, naturalmente, a invocação do disposto no artigo 213º (como de resto entendeu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 47/99). O parâmetro de aferição da constitucionalidade norma em questão será então o artigo 215º da Constituição
(na versão decorrente da Revisão de 1989)”
Na verdade, quando a Constituição, na actual redacção do n.º 3 do artigo 211º e do artigo 213º, utiliza a expressão “crimes de natureza estritamente militar” no contexto de normas de organização e competência, parece pressupor-se que a aplicação daquele conceito depende da prévia aprovação da lei prevista no artigo
211º, n.º 3, da Constituição.
Mas ainda que assim não se entenda, e se pretenda aferir a constitucionalidade das normas impugnadas à luz do critério mais exigente dos “crimes de natureza estritamente militar”, sempre se teria de concluir que os crimes de insubordinação, previstos nas referidas normas (bem como nas demais normas incluídas na Secção IV do Capítulo Único do Título II do Código de Justiça Militar), se conformam com as exigências de tal critério.
Com efeito, como se afirmou no Acórdão nº 108/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Abril de 1999), o crime de insubordinação “é um crime de natureza estritamente militar: nele tutelam-se, com efeito, a hierarquia e a disciplina, que, por serem essenciais à existência e coesão da instituição militar, são bens jurídicos militares, pois - nos dizeres de JORGE FIGUEIREDO DIAS - merece este qualificativo aquele “conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão” (cf. “Justiça Militar”, in Colóquio Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional, edição da Assembleia da República, 1995, páginas 25 e 26).”
7. Assente que as normas impugnadas se conformam com as exigências, quer do conceito de crimes “de natureza estritamente militar”, quer, até por maioria de razão, com as exigências do conceito de crimes “essencialmente militares”, torna-se necessário averiguar se essas normas se mostram violadoras dos princípios constitucionais da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade, nos termos exigidos pelos artigos 13º e 18º da Constituição.
A este propósito afirmou-se no Acórdão n.º 606/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Março de 2000), precisamente sobre a norma do artigo 79º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Justiça Militar, o seguinte:
“(...) sendo diferentes, no âmbito do direito penal comum e no do direito penal militar, os valores jurídicos violados com a conduta do arguido, não faz sentido apelar para o princípio da igualdade, na medida em que, na norma sindicanda, se prevê uma punição mais severa do que o Código Penal prevê, no âmbito do direito penal comum, dado os valores em presença e o facto de aquele princípio, como reiteradamente se tem afirmado, apenas recusar o arbítrio, as diferenças de tratamento materialmente infundadas e que, por isso mesmo, se mostram irrazoáveis e arbitrárias (cfr. o acórdão nº 108/99, publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Abril de 1999).
Como se escreveu neste aresto, na sequência de uma invocada desproporcionalidade (que, implicitamente, está presente na argumentação deduzida pelo ora recorrente):
“[...] regista-se, antes de mais, que, para concluir pela existência de excesso na punição do crime de insubordinação, não é legítimo invocar, como faz o recorrente, o facto de tal punição ser bastante mais severa do que aquela que o Código Penal prevê para o crime de ameaças e para o crime de injúrias. E não o
é, porque, como já atrás se fez notar, estes ilícitos são substantivamente diferentes do crime de insubordinação, que é um crime de natureza estritamente militar; nele tutelam-se, com efeito, a hierarquia e a disciplina, que, por serem essenciais à existência e coesão da instituição militar, são bens jurídicos militares, pois - nos dizeres de Jorge Figueiredo Dias - merece este qualificativo aquele ‘conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão’ (cf. ‘Justiça Militar’, in Colóquio Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional, edição da Assembleia da República, 1995, páginas 25 e 26). Ora, como se fez notar no Acórdão nº 271/97 (publicado no Diário da República, I Série-A, de 15 de Maio de 1997), seja qual for o exacto sentido e alcance da expressão constitucional atinente a este tipo de ilicitude, ‘é consensual a ideia de que o punctum saliens dos crimes essencialmente militares (hoje, o artigo 213º da Constituição fala em crimes de natureza estritamente militar) se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser, naturalmente, bens jurídicos militares’ (Sobre as divergências acerca do conceito de crime essencialmente militar, vide o acórdão nº 347/86 e a declaração de voto, a ele aposta, do Conselheiro Luís Nunes de Almeida; e ainda a declaração de voto da Conselheira Maria Fernanda Palma, no Acórdão nº 679/94 -
arestos publicados, ambos, no Diário da República, II Série, de 20 de Março de
1987 e de 25 de Fevereiro de 1995).
É que - sublinha Jorge Figueiredo Dias (loc. Cit.) - ‘tal como sucede com o direito penal comum, também o direito penal militar substantivo, para passar a prova de fogo da sua legitimação democrática, tem de ser um direito exclusivamente orientado por e para o bem jurídico’. Acresce que, atenta a natureza dos bens jurídicos violados, cujo respeito é essencial, como se disse, à subsistência mesma da instituição militar, não pode dizer-se que seja manifesto que a pena prevista no artigo 79º, nº 1, alínea a), para o crime de insubordinação cometido por ameaças, em acto de serviço
(presídio militar de quatro a seis anos) seja desproporcionada ou excessiva. Ora, já se disse que só quando a punição se apresentar como manifestamente excessiva ou desproporcionada, é que este Tribunal deve julgar constitucionalmente ilegítima a norma que a previr. De contrário, há que respeitar a liberdade do legislador, pois é a ele que a Constituição confia a tarefa da ‘definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos’ (cf. artigo 165º, nº 1, alínea c)).”
As considerações expostas aproveitam inteiramente ao caso dos autos.
4. - Não se descortinando, por conseguinte, ofensa ao princípio da igualdade plasmado no artigo 13º, nº 1, da CR, nem se mostrando tocado o princípio da proporcionalidade com expressão no artigo 18º, nº 2, segunda parte, da CR, o mesmo se diga no tocante às demais vertentes de alegada inconstitucionalidade convocadas pelo recorrente, consubstanciadas, de um modo genérico, nas garantias de defesa consagradas no nº 1 do artigo 32º da Lei Fundamental.
Não se vislumbra, na verdade, em que medida estas garantias são afectadas. Afastada a lesão dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, poderá, quando muito - atendendo à tese defendida - questionar-se a respeito da necessidade da pena, sabido que por ela se deve pautar a intervenção do legislador, o que, no entanto, também se mostra injustificadamente invocável, atingida a conclusão a que se chegou. Ainda aqui seguindo de perto o citado acórdão nº 108/99, se observará que o juízo sobre a “necessidade de lançar mão desta ou daquela reacção penal cabe, obviamente, em primeira linha, ao legislador, em cuja sabedoria tem de confiar-se, reconhecendo-se-lhe uma larga margem de discricionariedade”. A limitação da liberdade de conformação legislativa, neste domínio, como então se acrescentou, só pode ocorrer quando a sanção se apresente como manifestamente excessiva (cfr. Acórdãos nºs. 634/93, 83/95 e 480/98, publicados respectivamente, no Diário da República, de 31 de Março de 1994 – Suplemento – e
16 de Junho de 1995, mantendo-se o último inédito). Situação de excesso essa que não se verifica no concreto caso.”
As considerações então tecidas pelo Tribunal mantêm inteira validade no caso dos autos, sendo aplicáveis também, até por maioria de razão, em relação
à norma do artigo 75º, alínea a), do Código de Justiça Militar.
8. Assim, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs., sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 14 de Outubro de 2003
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Gil Galvão
Luís Nunes de Almeida