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Processo nº 125/2002
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença do Tribunal Fiscal Aduaneiro de Lisboa de 21 de Maio de 1998, de fls. 159, foi julgada improcedente a impugnação judicial que A. deduziu contra o acto de liquidação de Imposto Automóvel praticado pela Direcção-Geral das Alfândegas, devidamente identificado nos autos, no valor de 450.314$00, relativo à admissão de um veículo automóvel proveniente da Alemanha, “alegando, em síntese, que o disposto no DL 40/93, quando aplicado a veículos automóveis usados provenientes de outros países comunitários, viola o princípio da livre circulação de mercadorias e da não discriminação fiscal estabelecido no Tratado CEE, bem como o direito de propriedade” (sentença referida). A sentença considerou, para o efeito, que não ocorria, nem qualquer violação do direito de propriedade, nem qualquer violação do “disposto nos artigos 3º, 9º, 12º e 95º do Tratado CEE” pelo Decreto-Lei n.º 40/93, na versão posterior à Lei n.º 75/93, de
20 de Dezembro, cuja tabela de desvalorização foi aplicada no caso dos autos.
Inconformada, A. recorreu para o Tribunal Tributário de 2ª Instância; mas o Tribunal Central Administrativo negou provimento ao recurso, confirmando integralmente a sentença recorrida, para cuja fundamentação remeteu, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 713º do Código de Processo Civil.
2. A. recorreu, então, para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, secção que, por acórdão de 20 de Junho de 2001, de fls., concedeu provimento ao recurso, “julgando procedente a impugnação, mais declarando o direito da impugnante a juros indemnizatórios, nos termos do disposto no artigo 24º do Código de Processo Tributário”.
Para o efeito, o Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se nos seguintes termos:
«3.1. Estamos perante impugnação da liquidação de imposto automóvel efectuada a propósito da introdução no consumo, em Portugal, pela impugnante, de um veículo automóvel usado proveniente da Alemanha, deduzida com fundamento na nulidade de todo o procedimento da Administração, por ofensivo do direito à propriedade privada constitucionalmente garantido, ofensa do caso julgado constituído pelo acórdão proferido por este STA no recurso n° 14542 após reenvio prejudicial ao TJCE, e violação dos artigos 30° e 95° do Tratado da União Europeia. O acórdão recorrido negou provimento ao recurso interposto da sentença da 1ª instância que julgara improcedente a impugnação, por considerar constitucionalmente legítimas restrições ao exercício do direito de propriedade como as que resultam do Decreto-Lei n° 40/93, e por não entender que o Decreto-Lei n° 40/93, na versão posterior à Lei 75/93, viole o disposto nos artigos 3°, 9°, 12° e 95° do Tratado CEE. No presente recurso, a recorrente continua a defender que é nulo o procedimento administrativo, devendo ser-lhe restituído o IA pago; e que, caso assim se não entenda, deve declarar-se ineficaz, com a consequente não aplicação, o artigo
1º, nºs 1, 4 e 5 do Decreto-Lei n° 40/93, anulando-se o acto de liquidação, com restituição do IA pago; por último, e para o caso de o Tribunal a entender útil, afirma não se opor a que se proceda a reenvio prejudicial para o TJCE, conquanto o considere desnecessário.
3.2. Este Tribunal suscitou, recentemente, sobre as questões de interpretação do direito comunitário aqui pertinentes, a pronúncia do TJCE, no reenvio prejudicial no processo nº 22364. Recebido que foi o correspondente acórdão do TJCE, dispõe-se já da interpretação desse Tribunal das normas comunitárias relevantes, pelo que não faz sentido suscitar nova pronúncia do TJCE.
3.3. Apesar de a recorrente continuar a formular um pedido complexo, incluindo uma alternativa, a verdade é que estamos no âmbito do contencioso de anulação, em que ao tribunal apenas cabe anular ou declarar a nulidade do acto tributário impugnado, sendo o demais mera consequência dessa declaração. Por sua vez, o recurso jurisdicional não visa mais do que a reapreciação da decisão recorrida, estando fora do seu âmbito a apreciação de questões novas, por ela não decididas. No caso vertente, o acórdão recorrido confirmou a sentença que julgara improcedentes todos os fundamentos da impugnação do acto de liquidação de IA, e, por isso, não o anulou. A recorrente, por seu turno, não contesta, nas conclusões das suas alegações de recurso, senão o decidido quanto à incompatibilidade das disposições nacionais ao abrigo das quais foi efectuada a liquidação com a legislação comunitária pertinente, e a ofensa do direito de propriedade que entende resultar da impossibilidade legal em que ficou de usar o veículo que importou. Daí que essas sejam as únicas questões a decidir. Começaremos pela alegada contrariedade entre o artigo 7° n° 1 do Decreto-Lei n° 40/93, de 18 de Fevereiro, e o artigo 95° do Tratado de Roma.
3.4. O imposto automóvel é, como se sabe, um imposto interno, especial, monofásico, variável em função da cilindrada dos veículos automóveis. Recai sobre o seu consumo, quer nele sejam introduzidos novos, quer usados, sendo devido aquando dessa introdução, independentemente do país em que foram fabricados ou montados.
Deste modo, o imposto não incide sobre as transacções internas de veículos automóveis, ou seja, sobre as transacções de veículos usados já antes introduzidos no consumo. Mas só daí não resulta que os veículos usados importados sejam penalizados relativamente aos também usados já introduzidos no consumo. Todos os veículos novos pagam IA, quando introduzidos no consumo, quer tenham sido fabricados ou montados em Portugal, quer no exterior, uma vez que esse é o momento em que o imposto é devido, por incidir, não sobre as transacções de veículos, mas sobre a sua introdução no consumo. Assim, os veículos já introduzidos no consumo seriam penalizados relativamente aos usados importados se, aquando da sua transacção como usados, fosse novamente exigido IA. Por seu turno, os usados importados, que nunca suportaram IA, sairiam beneficiados se, quando introduzidos no consumo, ficassem fora do âmbito de abrangência do imposto. Ora, o artigo 95° do Tratado, na redacção dada pelo Tratado de Amsterdão, em que tomou o n° 90°, dispõe que 'Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos de outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares. Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções'. Suscitada a questão da compatibilidade do imposto automóvel incidente sobre os veículos usados provenientes de outros Estados-membros, face àquele artigo 95°, o TJCE, chamado a interpretar o direito comunitário, ainda que em caso em que fora aplicada a legislação nacional anterior sobre aquele imposto, pronunciou-se no sentido de só considerar impedida pelo artigo 95° do Tratado CEE a cobrança, por um Estado-membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-membro, 'quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional' – cfr. o acórdão de 9 de Março de 1995 proferido no processo C-345/93, em reenvio prejudicial suscitado por este STA no recurso de
14542. E a jurisprudência nacional, partindo da interpretação feita pelo TJCE do direito comunitário, vinha entendendo que o IA só defrontaria o artigo 95° do Tratado CEE se o seu montante excedesse o residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados em Portugal – vd. os acórdãos deste STA de 14 de Fevereiro de 1996, 1 de Abril, 1 de Julho, 30 de Setembro, 14 e 28 de Outubro, e 2 e 9 de Dezembro de 1998, proferidos nos recursos nºs 15467, 22372, 22396, 22365, 22451, 22645, 22374 e 22452, respectivamente, que traduzem jurisprudência ao tempo uniforme do Tribunal.
É certo que o IA não contempla a depreciação efectiva do veículo usado proveniente do exterior, o seu valor real de mercado aquando da importação. Porém, como se nota no acórdão de 1 de Abril de 1998 referido, 'se as percentagens de redução de Imposto Automóvel previstas no n° 7, do artigo 1º, do Decreto-Lei n° 40/93, estivessem em relação directa com a presumível depreciação do veículo, a aplicação das taxas em vigor no momento da importação traduzir-se-ia num desagravamento fiscal para os veículos importados em estado de usados percentualmente equivalente ao valor da inflação acumulada desde o momento da 1ª matrícula até ao da importação'. Por esta razão, a tabela do referido artigo 1º n° 7 estabelece uma percentagem de redução do IA, para os veículos importados usados, que tem em atenção o tempo de uso, com o que se atende a vários factores, entre eles a depreciação dos veículos e a variação monetária havida entre a data da primeira matrícula e a da importação. No caso vertente, a tributação foi feita com base nesse mesmo Decreto-Lei n°
40/93, de 18 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei n°75/93, de 20 de Dezembro, de tal modo que ao veículo, pela primeira vez matriculado em 1990, quando introduzido em Portugal, no ano de 1996, foi aplicado imposto automóvel com uma percentagem de redução de 41% relativamente ao que seria devido se se tratasse de um veículo novo. Essa lei estabelece que os veículos automóveis usados, originários ou em livre prática nos Estados-membros, beneficiam, relativamente ao que incide sobre veículos novos, de reduções do imposto automóvel, fixando-as em oito percentagens, de 18% a 67%, de acordo com a idade do veículo, de tal modo que quanto maior for o tempo de uso maior será a redução, sendo que, a partir dos oito anos de uso, ela deixa de variar, sendo, sempre, de 67%. Não pode, pois, afirmar-se que a lei não é sensível à desvalorização do veículo pelo uso, sendo o método de redução de imposto que adoptou capaz de, tendencialmente, aproximar o montante do imposto a cobrar aquando da importação de um veículo usado daquele que integra o valor de um veículo usado idêntico já existente no mercado interno. Mas também se não pode dizer que a lei fixa, de modo preciso, e leva em conta, a real depreciação sofrida pelo veículo usado introduzido no consumo, de modo a estabelecer uma relação directamente proporcional entre a perda de valor que o uso retirou ao veículo, e a redução do imposto que sobre a sua introdução no consumo faz recair. Como também se não pode afirmar que o sistema de redução do imposto por oito escalões, de 18%, 24%,
32%, 41%, 49%, 55%, 61% e 67%, aplicáveis a outros tantos patamares etários dos veículos, não conduz, em caso nenhum, a que se cobre, aquando da introdução de um veículo usado no consumo, um montante de imposto superior àquele, residual, incorporado no valor de um veículo equivalente, introduzido no consumo quando novo. Tanto mais que o valor desse veículo é influenciado, sabe-se, por uma multiplicidade de factores, alguns, quiçá, de carácter subjectivo, não sendo o tempo de uso mais do que um deles, mas nunca o único, por muito preponderante que seja na Ora, diz o TJCE, interpretando o actual artigo 90° do Tratado CE (anterior artigo 95° do Tratado de Roma), e retomando o que já afirmara no acórdão de 9 de Março de 1995, pelo acórdão recorrido considerado, que é contrária ao artigo 95° do Tratado a cobrança de um imposto, em caso semelhante ao dos autos, que não tome em conta a depreciação real do veículo, e exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos usados semelhantes já matriculados em Portugal. Porém, o acórdão de 22 de Fevereiro de 2001 vai mais longe do que o de 9 de Março de 1995. Enquanto no mais antigo destes arestos o TJCE só considerava haver contrariedade com aquele artigo 95° do Tratado nos casos em que o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos usados semelhantes já matriculados em Portugal fosse inferior ao cobrado aquando da importação de um veículo usado proveniente de um Estado-membro, agora, no acórdão de 22 de Fevereiro de 2001, entende que é desconforme com aquele mesmo artigo 95° uma tabela que não garanta 'que o montante do imposto devido não excede, ainda que apenas em certos casos, o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional' (sublinhado nosso). Ou seja: antes, o TJCE considerava vedada a cobrança de imposto cujo montante excedesse o residual do incorporado em veículos usados semelhantes matriculados em Portugal; agora, afirma estar proibida a aplicação de uma tabela que não garanta a cobrança, em todos e cada um dos casos em que seja chamada a aplicar-se, de um imposto não superior ao residual incorporado em veículos usados semelhantes matriculados em Portugal. E daí resulta uma diferença significativa.
É que, de acordo com a interpretação de 9 de Março de 1995 do TJCE, o acto de liquidação de imposto automóvel devido pela importação de um veículo usado só seria ilegal quando o imposto feito suportar ao contribuinte excedesse o residual incorporado em veículos usados semelhantes já matriculados em Portugal. A não se provar que tal acontecera no caso concreto, o acto de liquidação não enfermava de vício de violação de lei, uma vez que as normas em que se suportava não eram, em si mesmas, contrárias ao direito comunitário, de acordo com a interpretação que dele fazia o TJCE. Mas, nos termos da interpretação acolhida pelo TJCE no acórdão de 22 de Fevereiro de 2001, a lei nacional não pode aplicar-se, em caso algum, por desconforme com o direito comunitário, se não garantir que o imposto dela resultante não é, nunca, superior ao residual incorporado em veículos usados semelhantes matriculados em Portugal. Deste modo, já não importa verificar se o imposto apurado, em concreto, pelo acto de liquidação impugnado, é ou não superior ao residual incorporado em veículos usados semelhantes já matriculados em Portugal. Independentemente do resultado concreto, no caso que estiver em apreço, as normas nacionais não podem ser aplicadas, por desconformes com o direito comunitário, se não garantirem que nunca, em nenhum caso, independentemente do que aconteça no sub judice, o imposto resultante da sua aplicação é superior ao residual incorporado em veículos usados semelhantes matriculados em Portugal. Ora, a tabela do nº 7 do artigo 1º do Decreto-Lei n° 40/93, de 18 de Fevereiro, atendendo a um critério de depreciação único – o número de anos de uso do veículo – não assegura que o imposto devido pela importação de um veículo usado proveniente de outro Estado-membro nunca é superior ao imposto residual que integra o valor de um veículo usado, equivalente, já matriculado em Portugal. Ou seja, não está excluído que da aplicação da tabela em causa possa resultar, para um veículo usado importado de um Estado-membro, um tratamento fiscal desfavorável, relativamente àquele que é dado aos veículos usados nacionais.
Assim sendo, a falada tabela não é conforme com o artigo 95°, primeiro parágrafo, do Tratado, não podendo subsistir o acto de liquidação que, tendo-a aplicado, por isso enferma de vício de violação de lei. O que, prejudicando a apreciação da outra questão suscitada nas conclusões das alegações de recurso, reclama a insubsistência do acórdão que, confirmando a sentença da 1ª instância, manteve tal liquidação.
3. Termos em que acordam, em conferência, os juizes da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, e julgando procedente a impugnação, mais declarando o direito da impugnante a juros indemnizatórios, nos termos do disposto no artigo 24° do Código de Processo Tributário.»
A FAZENDA PÚBLICA arguiu a nulidade deste acórdão, mas a arguição foi desatendida pelo acórdão de 28 de Novembro de 2001, de fls. 293.
3. Inconformada, veio a FAZENDA PÚBLICA recorrer para o Tribunal Constitucional, indicando, no requerimento de interposição de recurso, que
«- Pretende(...) ver apreciada a inconstitucionatidade do(s) acórdão(s) que recusa(m), em abstracto, a aplicação da tabela de reduções constante do n° 7 do artº 1° do D.L. n° 40/93, de 18 de Fevereiro (relativa à tributação em imposto automóvel dos automóveis usados admitidos da União Europeia) por alegada contrariedade com o direito comunitário (art. 95°- actual artº 90° - do Tratado CE) na interpretação que, segundo o acórdão recorrido, dele fez o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) no acórdão de 22 de Fevereiro de 2001, proferido no processo C393/98.
- Por considerar a Fazenda Pública, sem prejuízo de reconhecer alguma ambiguidade no supra referido acórdão comunitário, que o TJCE não se pronunciou
(nem podia pronunciar-se em sede de pedido de decisão prejudicial ao abrigo do artº 177°, actual artigo 234°, do Tratado CE) pela incompatibilidade com o direito comunitário da referida legislação sobre imposto automóvel, tendo, pelo contrário, admitido que um método que calcula a depreciação dos veículos com base num critério legal e abstracto, como é o da tabela de reduções constante do n° 7 do art. 1° do D.L. n°40/93, de 18 de Fevereiro, não é em si contrário ao direito comunitário,
- vem o presente recurso interposto ao abrigo da alínea c) do art.70º da Lei n°
28/92 de 15 de Novembro na redacção da Lei n° 85/89, de 7/9, por ter o acórdão recorrido recusado a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado (aqui se incluindo neste conceito o art. 95°- actual art.90º - do Tratado CE, por se tratar de uma norma de direito comunitário constitucionalmente imposta ao Estado Português nos termos do art. 8° da CRP).
- Caso assim se não entenda, se requer seja este recurso considerado interposto nos termos da alínea i) do mesmo art. 70º.
- Considerando ainda que a desaplicação da supra referida legislação relativa à tributação automóvel, com a consequente restituição de todo o imposto pago pelos automóveis usados admitidos na União Europeia, cria uma desigualdade entre os demais veículos nacionais que pagaram o imposto, o que é contrário ao art. 13° da CRP e tal foi invocado em sede de contra-alegações do R.F.P. junto do STA, julga-se que este recurso poderá integrar ainda a alínea b) do referido art.
70º, considerando para este efeito que a verificar-se a inconstitucionalidade se reporta esta não à aplicação de uma norma, mas à sua desaplicação.»
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
4. A fls. 305, foi proferido o seguinte despacho, devidamente notificado às partes:
«1. Para alegações.
2. Convido as partes a pronunciarem-se, querendo, sobre as seguintes questões, que podem levar ao não conhecimento do recurso:
1ª) Não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar a constitucionalidade de decisões judiciais, pelo que não poderá conhecer da invocada inconstitucionalidade de acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo.
2ª) O Tratado CEE não se inclui entre as “leis de valor reforçado” previstas na alínea c) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
3ª) Não parece caber na competência do Tribunal Constitucional prevista na alínea i) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 a apreciação da compatibilidade de actos legislativos com o direito comunitário originário.
4ª) O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional não se destina a controlar a inconstitucionalidade normas cuja aplicação foi recusada.»
Ambas as partes responderam.
Quanto à FAZENDA PÚBLICA, veio sustentar a admissibilidade do “recurso interposto com fundamento da alínea i) do n.º 1 do art. 70º” da Lei nº 28/82, pronunciando-se sobre os pontos 1º) e 3º) do despacho, e apresentou as suas alegações, que concluiu da seguinte forma:
«CONCLUSÕES:
1ª) Considerando que o Tribunal a quo recusou a aplicação da tabela de reduções anexa à norma constante do n° 7 do art. 1° do D.L. n° 40/93, de 18 de Fevereiro
(relativa à tributação em imposto automóvel dos automóveis usados admitidos da União Europeia) com alegado fundamento na sua contrariedade com o direito comunitário (art. 95°- actual art. 90º - do Tratado CE) na interpretação que, segundo o acórdão recorrido, dele fez o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) no acórdão de 22 de Fevereiro de 2001, proferido no processo C-393/98, julga-se, pelas razões previamente invocadas em resposta às 1ª e 3ª questões identificadas no n° 2 do despacho, de 2/4/2002, da Exma. Sra. Juíza Relatora e, que aqui se dão por reproduzidas, que se encontram reunidos os pressupostos necessários ao conhecimento do presente recurso, com fundamento no art.70º, n° 1, alínea i) e no n° 2 do art. 71° da LTC.
2ª) Com efeito, sem prejuízo de se reconhecer alguma ambiguidade ao supra identificado acórdão comunitário, considera a Fazenda Pública que o TJCE não se pronunciou (nem podia pronunciar-se em sede de pedido de decisão prejudicial ao abrigo do art. 177°, actual artigo 234°, do Tratado CE) pela incompatibilidade com o direito comunitário da referida legislação sobre imposto automóvel, tendo, pelo contrário, admitido que um método que calcula a depreciação dos veículos com base num critério legal e abstracto, como é o da tabela de reduções constante do n° 7 do art. 1° do D.L. n° 40/93, de 18 de Fevereiro, não é em si contrário ao direito comunitário.
3ª) Na verdade, em termos formais e de interpretação abstracta do Direito comunitário, o acórdão do T JCE, de 22/2/2002, nada acrescenta ao acórdão proferido em 9 de Março de 1995, Proc. ------------ (C/345/93), quer em termos da interpretação que deve ser dada ao art. 95° do Tratado, quer em termos de fixação do critério do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares nacionais, quer ainda, porque admite (agora de forma mais expressa) um sistema de tributação abstracto aplicável com base em tabelas fixas como é o sistema português .
4ª) No entanto, considerando que o acórdão é aparentemente contraditório nos seus fundamentos e conclusões, apresenta cálculos que evidenciam a violação do próprio critério do imposto incorporado fixado por aquele Tribunal e suporta a sua fundamentação em matéria de facto que não corresponde à matéria de facto fixada pelo tribunal nacional, admite-se que o mesmo possa suscitar dúvidas de interpretação e aplicação que terão influenciado também a decisão do Tribunal a quo.
5ª) Com efeito, a única interpretação susceptível de reconhecer efeito útil ao acórdão (para efeitos da sua aplicação no âmbito do processo em que foi suscitado e de outros, como o presente, em que se discuta igual questão) é a de que se admite que o sistema em vigor é válido e está conforme com o Direito comunitário até que seja demonstrado em sede própria (entre nós, pelo menos por enquanto, apenas em sede de recurso junto dos tribunais competentes) que, em um qualquer caso concreto houve discriminação efectiva e, por conseguinte, violação do art. 95° do Tratado, caso se prove que o imposto pago pelo veículo usado admitido é superior ao montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares matriculados no território nacional no ano da 1ª matrícula do veículo admitido.
6ª) E esta prova nunca foi efectuada nem neste nem em nenhum processo no âmbito da vigência do actual sistema de tributação dos veículos usados! Nem se diga que tais elementos não estariam à disponibilidade de um eventual recorrente inconformado com a tributação que lhe foi aplicada, pois os critérios fixados pela jurisprudência do TJCE estão acessíveis a qualquer particular que o queira provar em juízo.
7ª) O que não pode admitir-se é a conclusão de que o TJCE, no âmbito do art.
177° do Tratado da EU, pode substituir-se ao Juiz nacional na apreciação que faz da matéria de facto e das conclusões que pretende extrair dessa apreciação, sobretudo quando para além disso ainda incorre em erros de interpretação acerca do sistema de tributação vigente em Portugal e sugere uma operação para aplicação da taxa de depreciação do valor do veículo ao imposto a pagar que não corresponde ao critério que é fixado pelo mesmo Tribunal Comunitário.
8ª) Não é pois verdade que no sistema de tributação português o coeficiente de redução seja aplicado ao imposto automóvel calculado sobre o preço do veículo novo (como resulta do ponto 40 do acórdão) mas sim, ao imposto efectivamente pago por um veículo novo com a mesma cilindrada (pois o imposto não é ad valorem, baseado no preço do veículo, sendo antes de natureza específica e apenas variável em função da cilindrada.
9ª) Talvez também por isso (baseando-se num erro de leitura do sistema de tributação vigente) o Tribunal pareça sugerir que a taxa de depreciação do valor do veículo se deva aplicar ao valor do veículo enquanto usado e não ao imposto nele incorporado, como manda o critério fixado pela própria jurisprudência do TJCE também confirmada no presente acórdão.
10ª) De acordo com esse critério o montante máximo do imposto aplicável aos veículos usados importados deve ser determinado pelo imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional, considerando-se ainda que a redução do imposto deve ser directamente proporcional à perda de valor do veículo.
11ª) E aplicando tal critério aos valores apresentados pelo Governo Português e utilizados pelo TJCE, os quais só podem ser entendidos como variantes de um exercício académico sem correspondência na matéria de facto fixada nos autos do litígio nacional, o recorrente ainda pagou menos do que devia ter pago, considerando ainda que a taxa desceu entre a data da 1ª matrícula e a data da admissão, pelo que nunca poderia ser o outro o resultado apurado.
12ª) Por maioria de razão, porque os números apresentados nem sequer dizem respeito ao processo em que ora recorre a F.P. (mas sim, embora com as reservas referidas, ao Recurso 22 364 do STA, -------------, no qual foi suscitado o reenvio), não deveria qualquer apreciação de facto sugerida pelo TJCE ser admitida directa ou indirectamente pelo tribunal nacional, a quem compete, em regime de exclusividade, a aplicação do acórdão comunitário ao caso concreto.
13ª) Admiti-lo significaria admitir a ingerência do Tribunal Comunitário nas competências do Juiz nacional, significaria admitir a fixação de uma outra matéria de facto que não a fixada nos autos pelo tribunal nacional, seria permitir ao TJCE que fizesse (numa operação dois em um) a interpretação do Direito comunitário e a sua aplicação ao caso concreto!
14ª) O que não é conforme a própria jurisprudência daquele Tribunal que sempre tem defendido a separação de competências entre os dois tribunais (ex. Acórdão de 27.3.1963 - Proc.28-30/63, Col. P.59 - onde o Tribunal afirmou que se limitava a deduzir da letra e do espírito do tratado o sentido e alcance das regras comunitárias “estando reservada para o juiz nacional a aplicação das regras assim interpretadas ao caso concreto”, bem como, toda a doutrina que nela se baseia, como é exemplo o Prof. Mota Campos, a pags. 488 e 489 do seu Manual de Direito comunitário, vol.II, onde diz o seguinte: “(...) No quadro do art.
177° o Tribunal ocupa-se apenas da interpretação do direito comunitário(...)' e ainda “A interpretação abstracta dada pelo Tribunal ao abrigo do art. 177° não comporta nunca uma aplicação do direito comunitário a um caso determinado'. Também confirmando uma jurisprudência constante, o TJCE considera que “ no
âmbito da aplicação do art. 177° do Tratado CEE não é competente para se pronunciar sobre a compatibilidade de uma disposição nacional com o direito comunitário' (cf. por ex., os Acs. de 11/6/87, Proc. 14/86 e de 22/9/88, proc.
228/87).
15ª) Pelo que, não tendo sido apresentada em sede adequada junto do tribunal nacional competente, prova bastante de que o imposto liquidado no caso dos autos era efectivamente superior ao imposto residual incorporado nos veículos semelhantes nacionais, com o mesmo ano de matrícula, não existe qualquer violação do artigo 95.º, do Tratado de Roma. Pelo que não poderia ter decidido como decidiu o Tribunal a quo.
16ª) Com efeito, o douto acórdão a quo, além de assentar no falso pressuposto de que o n° 7 do artigo 1° do D.L. n° 40/93 foi declarado contrário ao Direito Comunitário pelo TJCE, não se pronunciou sobre uma questão que devia ter apreciado (se no caso 'sub judice' estava ou não provado que o montante do imposto liquidado excede o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares matriculados no território nacional à data da primeira matrícula do veículo em causa), apreciação que, estando já fora da sua competência, se deveria limitar à constatação de que tal prova não constava dos autos, tal como resultava da matéria de facto fixada pelo tribunal competente.
17ª) Como, aliás, sempre o fez o STA, em jurisprudência anterior ao acórdão do TJCE, de 22/2/2002 (de que é exemplo o Acórdão de 1/4/98 daquele Venerando Tribunal, 2ª secção, Proc. n° 22 371, caso '------------'), como assim resultava também da própria jurisprudência do TJCE referida nos pontos 21 e 23 daquele acórdão comunitário, o qual, no que concerne à conclusão de princípio e de interpretação abstracta do Direito comunitário em que deve esgotar-se a competência do Tribunal Comunitário, em nada a acrescenta.
18ª) Com efeito, para apreciar da pretensa ilegalidade do acto de liquidação impugnado, por alegada contrariedade com o direito comunitário, não poderia o Tribunal a quo ter deixado de indagar se no caso 'sub judice' o montante do imposto liquidado excedia o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares matriculados no território nacional no ano da 1ª matrícula do veículo admitido. E não podia partir do pressuposto de que era contrário ao Direito Comunitário e, consequentemente, inaplicável um preceito legal, o n° 7 do art. 1° do D.L. n° 40/93, que pelo TJCE não foi julgado como tal. E apesar de arguida, pelo RFF, a nulidade por omissão de pronúncia nos termos do art. 668° n°1 d) do C PC, viria o Tribunal a quo a indeferi-la e a confirmar, por acórdão de 26/6/2001, o seu primeiro acórdão de 28/11/2001.
19ª) Tal decisão que, aliás, o STA tem repetido nos demais casos idênticos, ao determinar a desaplicação da supra referida legislação relativa à tributação automóvel, com a consequente restituição de todo o imposto pago pelos automóveis usados admitidos da União Europeia, mais juros indemnizatórios, configura uma manifesta desigualdade para com os demais veículos nacionais que pagaram o imposto, o que é contrário ao art.13º da CRP (e tal foi invocado também em sede de contra-alegações do R.F.P. junto do STA, no âmbito do presente processo).
20ª) O não pagamento do imposto por tais veículos implicaria ainda, em última análise, o respectivo cancelamento da matrícula, com fundamento legal nos arts
3° n° 1 e 19° n° 2 do DL n° 40/93, de 18/2, dos quais decorre a impossibilidade de circulação em Portugal de um qualquer veículo que seja portador de matrícula nacional, sem que se mostre pago o imposto automóvel. Nestes termos e nos demais de Direito doutamente supridos por V. Ex.as, deve o presente recurso ser julgado procedente, proferindo-se sentença que declare que não sendo a norma constante do n° 7 do art. 1° do DL 40/93, de 18/2, contrária ao art. 95° (actual art. 90°) do Tratado da UE, não pode ser desaplicada com tal fundamento, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!»
Diferentemente, A. pronunciou-se no sentido do não conhecimento do recurso pelo Tribunal Constitucional, porque
«a) não tem cabimento legal face ao elenco previsto na art. 70º/1 da Lei do TC;
b) os efeitos pretendidos excedem o âmbito legal previsto no art.
71º do mesmo diploma;
c) o TC é, claramente, incompetente para se pronunciar.»
Igualmente apresentou alegações, com o seguinte texto:
«A. A Recorrida considera que o presente recurso tem objectivos meramente dilatórios. B. Como resulta das alegações apresentadas pela Recorrente, não só o presente recurso deve ser apreciado, como deverá ser proferida 'sentença que declare que não sendo a norma constante do art. 1°, n° 7 do DL 40/93 de 18.02, contrária ao art. 95° (actual art. 90º) do Tratado da U.E., não pode ser desaplicada com tal fundamento...'. C. Ora, no fundo, o que se pretende é que o TC se substitua ao TJCE e declare que se aplica o que foi 'desaplicado'! D. Ora, por todo o exposto, tal é absolutamente ilegal. E. Não é apresentada qualquer fundamentação legal para obter tal desiderato, nem poderia ser porque não há base legal que sustente tal objectivo.
F. Desde logo, o TC não se encontra hierarquicamente acima do TJCE, têm âmbitos de actuação distintos; não se entende porque é que a Recorrida insiste em apresentar a questão como se de uma 'relação de má vizinhança” se tratasse. G. Ao contrário do que a Recorrente persiste em referir, o Governo português, ouvido em sede própria, no TJCE, não conseguiu convencer os juízes quanto ao sistema instituído no DL 40/93.
Nestes termos, requer-se a V. Exas. que seja declarada a incompetência do Digº Tribunal para apreciar a questão em apreço, mantendo-se o já decidido.»
5. Cumpre verificar se estão reunidas as condições para que o Tribunal Constitucional aprecie o presente recurso.
Ora, antes de mais, pode excluir-se, desde já, a admissibilidade do recurso na medida em que é interposto ao abrigo, quer da alínea c), quer da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82. Tal como se indicara no despacho de fls.
305, a recorrente não aponta qualquer “lei com valor reforçado” que tenha sido invocada pelo acórdão recorrido para justificar a recusa de aplicação de qualquer norma (alínea c) citada); e o recurso previsto na alínea b) referida
“não se destina a controlar a inconstitucionalidade de normas cuja aplicação foi recusada”, como igualmente se escreveu no mesmo despacho.
6. Para além disso, não estão preenchidos os pressupostos exigidos para que o Tribunal Constitucional conheça de um recurso ao abrigo do disposto na alínea i) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
Como o requerimento de interposição de recurso já indiciava e as alegações apresentadas neste Tribunal vieram demonstrar, o que a recorrente pretende com o recurso que interpôs, verdadeiramente, é que o Tribunal Constitucional reconheça que o acórdão recorrido, em primeiro lugar, não interpretou devidamente a apreciação que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias fez, no seu acórdão de 22 de Fevereiro de 2001, sobre a questão da conformidade entre a tabela de reduções constante do n.º 7 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º
40/93 e o artigo 95º (actual artigo 90º) do Tratado; é que, em seu entender, o Tribunal de Justiça não se pronunciou no sentido da desconformidade; e, em segundo lugar, que é nulo – como, aliás, a recorrente já sustentara perante o Supremo Tribunal Administrativo.
É neste contexto que, no requerimento de interposição de recurso – como também se observa no despacho de fls. 305 – se acusa de inconstitucionalidade o acórdão recorrido.
Ora, como se sabe, o Tribunal Constitucional não pode conhecer, nem de inconstitucionalidades atribuídas às próprias decisões de que se interpôs recurso, nem de eventuais nulidades que se lhes possam apontar.
7. Admite-se, todavia, que se possa considerar que o objecto do presente recurso seja, já não a apreciação de vícios do acórdão recorrido, mas a própria norma constante do n.º 7 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 40/93, de 18 de Fevereiro (na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 75/93, de 20 de Dezembro), norma cuja aplicação foi efectivamente recusada com fundamento em contradição com o citado artigo 95º (posterior artigo 90º) do Tratado, como se viu.
Ainda assim, não poderia o Tribunal Constitucional efectuar o controlo que a recorrente pretende, e que se traduziria, por um lado, em verificar, como se disse, que o Supremo Tribunal Administrativo não interpretou devidamente o citado acórdão do Tribunal de Justiça e, por outro, em analisar a correcção da interpretação feita pelo Tribunal de Justiça “do sistema de tributação português”.
Ora tal apreciação não pode ser feita pelo Tribunal Constitucional.
8. À mesa conclusão se chegaria se a recorrente tivesse requerido, directamente, que o Tribunal Constitucional apreciasse da conformidade entre a norma constante da referida tabela e o artigo 95º do Tratado (actual artigo 90º).
Como se escreveu, por exemplo, no Acórdão n.º 405/93 (Diário da República, II série, de 19 de Janeiro de 1994), «Os casos de contrariedade de norma constante de acto legislativo com uma convenção internacional só podem ser objecto de recurso para o Tribunal Constitucional - recurso que 'é restrito às questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida' (cf. nº 2 do artigo 71º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) - na hipótese prevista na alínea i) do nº 1 do artigo 70º da mesma Lei. Ou seja: só pode recorrer-se para este Tribunal das decisões 'que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional'.
O aditamento da alínea i) ao nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, feito pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, tem, justamente, o sentido de - como se sublinhou no Acórdão nº 162/93, da 1ª Secção (por publicar)
- enunciar 'um específico pressuposto que tem que ver com a competência deste Tribunal para apreciar a questão da contrariedade de acto legislativo com convenção internacional, nas dimensões jurídico-constitucional e jurídico-internacional'. Ou seja: após a publicação da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, deixou de poder questionar-se a competência do Tribunal Constitucional para o conhecimento da eventual contrariedade de norma constante de acto legislativo com convenção internacional. Essa competência é, no entanto, restrita ao julgamento das 'questões de natureza juirídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida', devendo o Tribunal exercê-la, quando para si se recorrer das decisões de outros tribunais ao abrigo da citada alínea i) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção da mencionada Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, nos precisos casos e termos enunciados nessa alínea i).» Por sua vez, no Acórdão n.º 290/2002 (não publicado), o Tribunal Constitucional explicitou o significado da restrição a tais questões:
“Com efeito, nos termos desta última disposição legal, nestes casos, «o recurso
é restrito às questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicados na decisão recorrida». Sobre a natureza destas questões, assinala José Manuel M. Cardoso da Costa (A Jurisdição Constitucional em Portugal, 2ª ed. rev. e act., Coimbra, 1992, pág.
27, nota 27):
Note-se que, no seu desenho legal, a competência agora reconhecida ao Tribunal não apresenta inteira homologia com a do controlo da constitucionalidade (ou da «legalidade»): não só porque apenas é contemplada em sede de controlo concreto, como ainda porque é limitada aos casos, referidos no art. 70º, nº 1, alínea i), cit., de desaplicação da lei interna pelos tribunais ou, então, de decisão destes contrária a orientação anterior do Tribunal Constitucional; e sublinhe-se, por outro lado, que o legislador se absteve intencionalmente de qualificar a situação, assim, e desde logo, não tomando posição sobre o controverso problema da primazia do direito convencional. Este, justamente, será um ponto a decidir pelo Tribunal, nele residindo o núcleo da questão ou das questões «jurídico-internacionais» que entram na sua competência; quando às questões «jurídico-internacionais», nelas caberá antes de mais, certamente, a da vigência e validade da convenção como instrumento jurídico-internacionalmente vínculante (cfr. cit. art. 71º, nº 2). Face a uma sua tal configuração, bem se poderá dizer que esta competência do Tribunal se aproxima de (se não rigorosamente se identifica com) uma competência de
«qualificação normativa» (à semelhança de certa competência do Tribunal Constitucional Federal alemão, por vezes assim catalogada).
E, no mesmo sentido, sublinha J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., Almedina, págs. 1031 e segs.):
São questões jurídico-constitucionais as que se localizam em sede de direito constitucional (cfr. art. 8º), devendo ser analisadas e resolvidas segundo as normas e princípios constitucionais consagrados e de acordo com os instrumentos hermenêuticos de interpretação e concretização específicos deste ramo de direito. Estão neste caso, por ex., as questões referentes ao sistema de
«incorporação» das normas internacionais no direito interno (recepção plena, recepção condicionada), os problemas referentes à posição hierárquica das normas de direito internacional (valor supraconstitucional, valor constitucional, valor infraconstitucional mas supralegal, valor de lei) e os problemas relacionados com a qualificação de normas reguladoras de actos ou relações internacionais
(ex.: exclusão do carácter jurídico-constitucional do direito diplomático).
Serão questões jurídico-internacionais as que se localizam no plano do direito internacional, geral, convencional e consuetudinário, cabendo discuti-las e analísá-las à face dos princípios e normas deste direito e segundo as suas regras de interpretação e concretização específicas. Estarão, porventura, neste caso, as questões relativas às relações entre o direito internacional e o direito interno (monismo, dualismo), ao campo de aplicação das normas internacionais (relação entre os estados, criação de direitos e deveres também para particulares), ao problema da vigência do direito internacional e aos conflitos entre as normas internacionais e as leis internas do estado
(cumprimento de obrigações, responsabilidade internacional dos Estados).
[...]
Diferentemente, porém, dos processos de fiscalização concreta de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, não se trata de um verdadeiro processo de controlo de normas mas de um processo de verificação das questões jurídico-constitucionais ou jurídico-internacionais implicadas na decisão. Assim, por exemplo, num recurso motivado pela recusa de aplicação de uma norma legal contrária ao direito internacional convencional, o Tribunal Constitucional verifica se se trata de um tratado solene, caso em que admitirá porventura a superioridade hierárquica em relação a actos legislativos internos em contradição com ele, ou de um acordo em forma simplificada, hipótese em que poderá porventura julgar constitucionalmente mais correcto a decisão da questão partindo do princípio da igualdade hierárquica entre lei e acordo internacional ou até do princípio de supremacia do direito interno quando estejam em causa leis com valor reforçado. Da mesma forma, o recurso para o Tribunal Constitucional permitirá a verificação e qualificação das regras de direito internacional. Assim, por exemplo, o Tribunal averiguará se a questão de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional relativa ao valor normativo de tratado-contrato deve, no caso concreto, ser decidida no sentido de o tratado-contrato ser um acto normativo, com possibilidade de fiscalização da constitucionalidade, ou se ele não reúne as características de uma norma, caso em que será arredado o «controlo de normas» (cfr., Ac 494/99 – Caso do Acordo de Segurança Social com o Chile).
O recurso para o Tribunal Constitucional permitirá ainda a este verificar, por exemplo, a vigência ou não de uma norma convencional ou se esta deixou de vincular o Estado português pela ocorrência da cláusula rebus sic stantibus (questão de natureza jurídico-internacional).
A LTC eleva, deste modo, o Tribunal Constitucional a intérprete qualificado (cfr. LTC, art. 70º/1/i, 2ª parte, e 72º/4) das questões jurídico-constitucionais (cfr. CRP, art. 221º) e jurídico-internacionais implicadas num processo concreto (cfr., sobretudo, LTC, art. 70º/1/i, 2ª parte) e a «guardião do valor paramétrico do direito internacional convencional» nos casos onde a parametricidade deste direito em relação ao direito interno se revelou justificada através da interpretação/concretização de normas constitucionais e normas internacionais. O processo de verificação consagrado nos art. 70º/1/i e 71º/2 da LTC converte-se, assim, no instrumento processual de concretização das normas constitucionais, em especial do art. 8º da CRP. Ao mesmo tempo, o processo de verificação de contrariedade de normas do direito interno com normas de direito internacional ou da desconformidade de decisões dos tribunais incidentes sobre o mesmo problema em relação a anteriores decisões do Tribunal Constitucional, abre o caminho para uma espécie de processo de qualificação de normas. Com efeito, se por qualificação de normas se entender a determinação da hierarquia de normas de direito internacional, então o TC tem um meio processual de, caso a caso, proceder a essa qualificação. Em conclusão: o TC verifica se uma norma convencional internacional faz parte do direito interno, se ela cria direitos e deveres para os particulares e qualifica essa norma para efeitos de inserção no plano da hierarquia das fontes de direito
(cfr. CRP, art. 119º/1/b).»
9. Acresce que, no caso presente, está em causa uma alegada incompatibilidade com uma norma constante de um tratado comunitário.
Como escreveu JOSÉ MANUEL CARDOSO DA COSTA (O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, in Ab uno ad omnes, Coimbra,
1998. p.1363 e segs., pág 1371, há “(...) uma circunstância específica que nesta
última” hipótese “ocorre e que, mais facilmente (ou com maior razão) do que na hipótese de contrariedade de uma norma interna com uma qualquer convenção internacional, pode (ou mesmo deve) conduzir a que se rejeite a qualificação da incompatibilidade do direito interno com o direito comunitário como uma situação de ‘inconstitucionalidade’ que ao Tribunal Constitucional caiba apreciar. Reside essa circunstância no facto de que, diferentemente (ou para além) do que sucede na recepção interna do direito internacional convencional em geral, a recepção do direito comunitário envolve (ou envolveu) também a dos mecanismos institucionais que visam especificamente garantir a sua aplicação. Ora, compreendendo a ordem jurídica comunitária – recebida nestes termos
‘compreensivos’ e globais pelo direito português, logo por via de uma cláusula da própria Constituição – uma instância jurisdicional precipuamente vocacionada para a sua mesma tutela (e não só no plano das relações interestaduais ou governamentais), e concentrando ela nessa instância a competência para velar pela aplicação uniforme e pela prevalência das suas normas, seria algo incongruente que se fizesse intervir para o mesmo efeito, e no plano interno, uma outra instância do mesmo ou semelhante tipo (como seria o Tribunal Constitucional). Dir-se-á, assim, que não deverá reconduzir-se a contrariedade de uma norma interna com outra de direito comunitário a uma categoria ou a um conceito dogmático cuja utilização ou aplicação na hipótese (embora possível num certo entendimento dele) implicaria retirar aos tribunais internos comuns a decisão definitiva daquela questão, na correspondente esfera”.
Ora, também no recurso de que agora se trata se verifica que “não é esta verificação e qualificação que se pretende que o Tribunal Constitucional efectue” (mesmo Acórdão n.º 290/2002), como já se observou.
10. Nestes termos, decide-se não conhecer do recurso.
Lisboa, 14 de Outubro de 2003 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Gil Galvão
Luís Nunes de Almeida