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Proc. n.º 547/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. (ora reclamante), executado em autos de execução ordinária que correm os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Loures, em que é exequente o B.
(ora reclamado), requereu o levantamento imediato da penhora de um seu saldo bancário, que tinha sido entretanto efectuada. O requerimento foi indeferido pelo despacho do juiz, de fls. 71, por se considerar que “se mostra efectuada a penhora e que o cumprimento do disposto no artigo 864º do CPC não tem de ser requerido pelo exequente, mas deve ser oficiosamente ordenado[...]”.
2. Inconformado, veio o ora reclamante arguir a nulidade do referido despacho, o que fez nos seguintes termos:
“[...]1º Em processo civil o impulso processual incumbe às partes, assim pacífica a doutrina e a jurisprudência, é o princípio do dispositivo.
2º “Tal princípio tem restrições decorrentes do poder atribuído ao juiz de, oficiosamente, ordenar as diligências que considere necessárias para o apuramento da verdade quanto aos factos de que pode conhecer.” (Acórdão STJ, proc. nº 078513, disponível em www. dgsi. pt).
3º Em processo executivo, como no declarativo ou nos especiais, com as ressalvas expressas na Lei, ao Tribunal '(...) cabe tão somente uma actividade complementar de ajuda ou garantia, conforme o Art.º 837°-A do CPC.” ( Acórdão TR Lisboa, proc. n.º 0057961, mesma origem).
4º Assim se adequa que 'A filosofia da livre disposição da instância implica conhecimento pelo juiz dos factos que as partes articulam; e só esses.' sublinhado nosso (idem, Acórdão TR Lisboa, proc. n.º 0034372).
5º E é assim que o ora arguinte sustenta a sua convicção de que ao Tribuna1 compete tão só fiscalizar a legalidade das promoções das artes, colocado numa posição de imparcialidade absoluta face ao pleito que lhe é colocado, cujos interesses são meramente particulares, próprios das partes litigantes.
6º Assim se impõe no espírito e na letra do Art 3°-A do CPC : 'o Tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício das faculdades, no uso dos direitos de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções ou de sanções processuais.”
sublinhado nosso.
7° O disposto no Artº 864°, CPC, cabe neste conceito de exercício de faculdades das partes é exclusivo destas.
8° Porquanto efectuada a penhora só o exequente pode decidir se pretende prosseguir os termos processuais até final.
9° Muitos e vários motivos se poderiam aqui elencar para a dilação desse trâmite processual, entre os quais a precaução face à sempre possível probalidade de decaimento em embargos deduzidos, a expectativa de outros credores conhecidos serem entretanto pagos por outros meios que não[] os penhorados nessa execução, etc.
10º Por isso a lei prevê que a execução possa estar sem impulso das partes pelo menos por três meses, após os quais os Autos são remetidos à conta, assegurando os justos interesses do Estado prestador do serviço de administração da justiça a particulares (Artº 51º n.º 2, alínea b, CCJ), o que também se mostra postergado nos presentes Autos.
11º Como prevê o espaço temporal de um ano para a paragem por negligência das partes (Artº 285°, CPC) antes de interromper a instância e mais dois para a considerar deserta (idem. Artº 291°, n.º 1)
12º O interesse perseguido numa acção executiva é, patentemente, a satisfação dos créditos do exequente, interesse acima do qual se encontra o Tribunal.
13° O normal curso dos trâmites processuais têm que ser propostos, requeridos pela parte interessada no seu curso, de outro modo não se entenderia o dispositivo do Artº 847°, n.º 1, CPC, invocado no requerimento do ora arguinte, decidido no douto despacho em apreço.
14º Ao Tribunal cabem as excepções a este princípio dispositivo que confere especificamente, cujas são as do princípio do inquisitório se de mero complemento da actividade das partes em perseguição da descoberta da verdade material (cf. Artº 837º-A e 265º, CPC).
15º Destarte, o douto despacho em apreço, conhece de matéria que não foi sujeita pelos litigantes.
16º O que constitui nulidade prevista na última parte da alínea d) do n.º 1 do Artº 668º, CPC.
17º O que aqui se argui formalmente para todos os efeitos legais.
18º E que a não ser sanada violará os princípios constitucionais da igualdade
(Artº 13º, CRP) e da equitatividade (idem, Artº 20º), o que se invoca expressamente para os efeitos contidos no Artº 72º, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional.[...].”
3. A requerida declaração de nulidade foi indeferida, nos seguintes termos: “No despacho de fls. 71 está explanado o entender deste Tribunal quanto ao âmbito de aplicação do disposto no artº 864º do CPC. Considerando o Tribunal que aquele despacho não enferma de qualquer dos vícios previstos no artigo 668º do CPC, considero que o mesmo não está ferido de nulidade ,termos em que indefiro o pedido de declaração de nulidade[...]”.
4. Novamente inconformado, o ora reclamante interpôs recurso de constitucionalidade, através de um requerimento com o seguinte teor:
“[...].- notificado dos doutos despachos fls. 71 e 87, não se conformando com a decisão proferida nos mesmos, dela vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos seguintes termos :
- o recurso é interposto ao abrigo da al. b) do nº1 do artº 70° da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro;
- pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma dos art°s. 864° n°
1 e 3°-A, ambos do C.PC., quando interpretados no sentido de que uma vez efectuada penhora em autos de execução sumária, o impulso processual para cumprimento do mesmo art° 864° é oficioso;
- tal norma viola os artigos 13° e 20° da Constituição da República Portuguesa;
- a questão de inconstitucionalidade foi suscitada nos autos no art.º 18° do requerimento de arguição de nulidade da douta decisão de fls. 71, sobre o qual recaiu o despacho de fls. 87;
- o presente recurso subirá imediatamente, já que a sua retenção o tornaria inútil (artº 734°, n° 2, C.P.C.), em separado (art° 737° C.P.C.) e com efeito meramente devolutivo (art° 740° C.P.C., a contrario sensu).[...]”.
5. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do recurso. É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
“[...]5. Cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do objecto do presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. art. 76º, n.º 3 da LTC). O recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, visa submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a constitucionalidade de norma(s) aplicada(s), como ratio decidendi, pela decisão recorrida. Acresce, que tal recurso pressupõe, designadamente, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua dimensão normativa. Ora, como vai sumariamente ver-se, é manifesto que o recorrente nunca suscitou, durante o processo e de forma processualmente adequada, qualquer questão de constitucionalidade normativa em termos de permitir que dela se viesse a conhecer no recurso de constitucionalidade que pretendeu interpor. De facto, se atentarmos no teor do requerimento de recurso para este Tribunal, verificamos que o recorrente afirma ter a questão de inconstitucionalidade sido
“suscitada nos autos no art.º 18° do requerimento de arguição de nulidade da douta decisão de fls. 71, sobre o qual recaiu o despacho de fls. 87”. Basta, porém, ler este requerimento de arguição de nulidade, que já transcrevemos integralmente, para verificar que, no artigo 18º, não se faz qualquer referência nem à norma contida no artigo 864º do Código de Processo Civil, nem a qualquer outra norma, cuja constitucionalidade pretendesse o recorrente ver apreciada, não imputando este, como devia, a violação de preceitos da Constituição ao sentido de quaisquer normas. De facto, referindo-se aí o artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, deveria o recorrente ter então suscitado de forma processualmente adequada, em termos de o tribunal que proferiu a decisão recorrida “estar obrigado a dela conhecer”, a questão de constitucionalidade normativa que pretendia ver apreciada. O que, manifestamente, não fez. Mas também não o fez em qualquer outro artigo desse mesmo requerimento, nomeadamente no artigo 7º, único onde o citado artigo 864º é mencionado. Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações, torna-se evidente que não pode conhecer-se do objecto do presente recurso, já que, não tendo o recorrente suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, como exige a alínea b) do n.º 1 do art. 70º, ao abrigo da qual recorre, qualquer questão de constitucionalidade normativa, não está presente, pelo menos, um dos pressupostos da sua admissibilidade.[...]”
6. Inconformado com esta decisão, o ora reclamante apresentou, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, n.º 3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência, que fundamenta nos seguintes termos:
“[...] A decisão reclamada apoia o não conhecimento do recurso no facto da questão da inconstitucionalidade da norma não ter sido suscitada durante o processo, nem na forma processualmente adequada. Não obstante, quanto à primeira questão, e salvo melhor opinião, entende o reclamante que a decisão, assim tomada, não levou em consideração o facto da decisão judicial violadora dos princípios constitucionais invocados – os artºs
13º e 20º da C.R.P. – ter sido absolutamente inusitada e imprevista, tal a sui generis interpretação dada ao n.º 2 do artº 864 do C.P.C.. Com efeito, a clareza da norma era – e continua a ser – cristalina, e jamais o reclamante poderia antecipar a possibilidade da mesma vir a ser interpretada como o foi na decisão recorrida, isto é, de que o impulso processual é oficioso, sem que a parte o promova. Para o reclamante é claro, e desde sempre o foi, que é ao exequente que cabe promover os termos processuais subsequentes à penhora, designadamente os previstos no artigo 864º do C.P.C.. Por outro lado, a forma processual usada, não tendo, porventura, sido a mais clara, é contudo evidente que a arguição da nulidade se reporta ao despacho de fls. 71, como vem expresso no início do respectivo requerimento. Embora seja certo que no corpo da referida peça processual não se consigne explicitamente a inconstitucionalidade da interpretação dada no despacho de fls.
71 à norma do artº 864 do C.P.C., a verdade é que do confronto do início daquele requerimento, com o teor do seu artº 7 e do artº 18, outra coisa não resulta que não seja a de que ali se pretendeu invocar a referida inconstitucionalidade. De resto, no despacho de fls. 87 o Mº Juiz a quo não teve dúvidas sobre o objecto do requerimento de nulidade e despachou-o em conformidade. Quando mais, deveria o recorrente ser convidado a aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso, nos termos em que o admite e determina a Lei do Tribunal Constitucional. [...]”.
7. Notificado para responder, o ora reclamado nada disse.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
8. Na decisão sumária reclamada considerou-se que o recorrente nunca suscitou, durante o processo e de forma processualmente adequada, qualquer questão de constitucionalidade normativa em termos de permitir que dela se viesse a conhecer no recurso de constitucionalidade que pretendeu interpor.
O ora reclamante vem reclamar desta decisão. Fá-lo, porém, em termos que não infirmam o decidido. Alega agora, na verdade, que a decisão sumária reclamada não terá tido em conta “o facto de a decisão recorrida ter sido absolutamente inusitada e imprevista” e que “deveria o recorrente ser convidado a aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso”. Com a asserção de que a decisão recorrida foi absolutamente inusitada e imprevista, parece querer o reclamante referir-se, porventura, ao despacho de fls. 71, de 2 de Outubro de 2002.
Não tem, porém, razão, como sucintamente se demonstrará.
8.1. De facto, no que se refere ao alegado facto de “a decisão recorrida ter sido absolutamente inusitada e imprevista”, importa sublinhar, em relação ao despacho de fls. 87, de 17 de Outubro de 2002, que decidiu pela inexistência de qualquer nulidade no despacho de fls. 71, que aquele despacho se limita, na parte em que se refere ao artigo 864º do CPC, a confirmar o entendimento desse preceito que já havia sido feito pelo anterior despacho de fls. 71, pelo não pode, manifestamente, considerar-se uma decisão surpresa.
Mas também em relação ao despacho de fls. 71 não pode a decisão nele contida ser tida como absolutamente inusitada e imprevista, dado que a mesma seguiu uma interpretação corrente do artigo 864º do CPC. Ora, sendo assim, poderia e deveria o ora reclamante, se entendia que uma tal interpretação do preceito violava a Constituição da República Portuguesa, ter suscitado a questão de constitucionalidade durante o processo e de forma processualmente adequada, permitindo, desse modo, que o Tribunal a quo se pronunciasse sobre a questão. Na verdade, o ora reclamante teve oportunidade processual para o fazer no requerimento em que solicitou o levantamento da penhora, sendo certo que após a penhora se segue o cumprimento do disposto no artigo 864º do CPC.
Improcede, assim, o argumento de que a decisão recorrida é inusitada e imprevista
8.2. Em relação à pretensão de que “deveria o recorrente ser convidado a aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso” também não tem razão o ora reclamante. Na verdade, o mecanismo de aperfeiçoamento previsto nos n.ºs 5 e
6 do artigo75º-A da Lei do Tribunal Constitucional visa suprir alguma mera insuficiência revelada pelo requerimento de interposição do recurso. Ora, como se pode verificar da transcrição efectuada no ponto 4. supra, o requerimento de interposição do recurso continha todos os elementos previstos no artigo 75º A da LTC, razão pela qual, em caso algum, haveria que emitir despacho de aperfeiçoamento. De facto, do ponto de vista da decisão ora reclamada, o problema não está, ao contrário do que parece crer o reclamante, num vício do requerimento de interposição do recurso, susceptível de ser corrigido na sequência de um despacho de aperfeiçoamento, mas sim num vício anterior - a não suscitação, nos termos claros e perceptíveis que vêm sendo exigidos pelo Tribunal Constitucional, antes de proferida a decisão recorrida, da questão de constitucionalidade normativa que se pretende ver apreciada -, vício esse logicamente insusceptível de ser ultrapassado pela resposta a um despacho de aperfeiçoamento do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade. É que, contrariamente ao que afirma o reclamante no requerimento de interposição do recurso, a questão de constitucionalidade não foi suscitada nos autos, quando poderia e deveria ter sido.
Nestes termos, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que o recorrente pretendeu interpor.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 29 de Outubro de 2003
Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida