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Proc. nº 273/03
1ª Secção Cons. Rel.: Rui Moura Ramos
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
No Tribunal Tributário de 1ª Instância de Coimbra, A. impugnou a liquidação do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, no valor de Esc. 49.221.847$, relativo ao ano de 1990.
Por decisão de 24 de Maio de 2001, o juiz do Tribunal Tributário de
1ª Instância de Coimbra julgou a impugnação procedente e anulou a liquidação em causa.
O Representante da Fazenda Pública naquele Tribunal interpôs recurso para a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo, a qual, em 26 de Fevereiro de 2002, concedeu provimento ao recurso e manteve a liquidação impugnada. Para o efeito, o Tribunal Central Administrativo baseou-se no artigo 7º, nº 4, do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), que, na redacção anterior à Lei nº 30-G/2000, de 29 de Dezembro, dispunha que os “lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, de prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, se presumem feitos a título de lucros ou adiantamentos”. Tal presunção só poderia ser ilidida, nos termos do nº 5 do citado artigo 7º do CIRS, com base em decisão judicial, acto administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento da Direcção-Geral dos Impostos, não sendo admissíveis outros meios de prova, como a prova documental ou testemunhal. Tendo em conta estas normas, concluiu-se: “se aquela elisão pudesse ser efectuada por qualquer meio de prova admissível em direito, então não fazia sentido aquele normativo, já que não teria qualquer utilidade porque bastaria aplicar os princípios sobre a prova constantes do Código Civil. O que acontece é que o legislador quis estabelecer taxativamente meios de prova especiais e mais rigorosos tendo em vista acautelar o cumprimento das normas fiscais e evitar a fuga ao fisco o que, através de simples prova testemunhal ou documental, seria mais fácil”.
A impugnante recorreu, então, para o Supremo Tribunal Administrativo, alegando que a presunção a que se refere o nº 4 do artigo 7º do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) é uma presunção juris tantum, e não uma presunção juris et de jure, e que a não admissão de outros meios de prova, além dos que se referem no nº 5 do mesmo artigo 7º do CIRS (designadamente, prova documental ou testemunhal), configura uma restrição do direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20º da Constituição. Tal restrição carece de um fundamento material para ser legítima e deve estar prevista na lei, nos termos do artigo 18º da Constituição. Além disso, a interpretação do acórdão recorrido violaria o princípio da capacidade contributiva, consignado nos artigos 104º, 12º e 13º, nº 1, da Lei Fundamental. Nas respectivas alegações, concluiu assim:
« a) O acórdão recorrido padece de erro de julgamento por errada interpretação e aplicação da lei; b) Ao contrário do que entendeu, a impugnante poderia fazer a prova dos factos que levaram a sentença da 1ª instância a considerar afastada a presunção estabelecida no nº 4 do artº 7º do CIRS através de testemunhas e de documentos; c) Na verdade, a restrição ao uso dos meios gerais de prova, como restrição que é ao direito de acesso aos tribunais e de fazer valer aí os seus direitos, consagrado como garantia constitucional do artº 20º da CRP, precisa de ter fundamento materialmente bastante para ser legítima, e, por isso, carece também de estar prevista expressamente na lei, seja na lei reguladora do processo judicial de tornar efectivos os direitos substantivos, seja na lei reguladora do regime substantivo desses direitos, por força do disposto no artº 18º nºs. 2 e 3 da CRP; d) Ora, os nºs 4 e 5 do artº 7º do CIRS ou os artºs 120º e segs. do CPT, vigente ao tempo da impugnação judicial, não previam qualquer restrição ao uso daqueles meios de prova (testemunhas e documentos); e) A presunção estabelecida no nº 4 do artº 7º do CIRS é uma simples presunção legal juris tantum e que, por si própria é também um meio de prova
(artº 349º do CC) que, como tal, pode ser ilidida pelos meios previstos no nº 5 do mesmo artigo e nesses meios o contribuinte pode lançar mão dos meios gerais de prova, entre eles se contando as testemunhas e documentos, perante o respectivo órgão decidente, seja ele judicial ou administrativo; f) A previsão legal das presunções é independente dos meios judiciais, processos ou tipo de acções em que sejam apreciados os direitos a que elas respeitam, nada contendendo, no caso, com os meios de ilisão da presunção definida no nº 4 que constam do nº 5, ambos os números do artº 7º do CIRS; g) A interpretação feita pelo acórdão recorrido leva a configurar a presunção aí estabelecida como uma espécie de presunção juris et de jure, pelo menos no domínio em que não admitiu a prova com base em testemunhas e documentos, em matéria de incidência de impostos, e, como tal, ela é inconstitucional por ofensa do princípio da capacidade contributiva com assento nos artºs 104º, 12º, 13º e 1º da CRP (hoje, também explicitada no artº 73º da LGT) (Cfr. Acórdão do T.C. Nº 348/97, de 29/4/97, D. R. II Série, de 25/7/97, precisamente a propósito do § 2º do artº 14º do C. I. Capitais); h) Ao contrário do que o acórdão parece pressupor, a presunção estabelecida no nº 4 do artº 7º do CIRS pode ser ilidida no processo de impugnação judicial, ao contrário do que se passava quanto à presunção prevista no § 2º do artº 14º do C. I. Capitais».
O Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 18 de Dezembro de
2002, negou provimento ao recurso. Nessa decisão, sublinhou-se: “as presunções juris tantum admitem prova em contrário. Todavia não pode daí inferir-se que tal prova poderá ser feita por qualquer meio quando a lei específica ao caso aplicável explicita quais os meios de prova que poderão ser usados para afastar tal presunção. A ser assim teria de considerar-se como não escrito o nº 5 do artigo 7º do CIRS, cabendo perguntar quais os motivos pelos quais o legislador o elaborou. Se o legislador elaborou uma norma específica para o efeito tal não pode deixar de ser entendido no sentido de não pretender que a ilisão se fizesse por qualquer meio de prova”. E, depois, quanto à pretensa inconstitucionalidade das normas do artigo 7º, nºs. 4 e 5 do CIRS, o Supremo Tribunal Administrativo concluiu que as mesmas não violavam os artigos 12º, 13º, 18º, 20º e 104º da Constituição da República.
A recorrente veio, então, solicitar a reforma do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo ou, em alternativa, a sua anulação, o que foi indeferido por aquele Supremo Tribunal, em acórdão de 19 de Fevereiro de 2003.
Foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82.
O respectivo objecto é delimitado pela recorrente nas normas dos nºs 4 e 5 do artigo 7º do CIRS, “na interpretação (...) de vedar a produção de prova testemunhal e documental no processo de impugnação judicial, interpretação que se considera violadora do artigo 20º, em conjugação com o artigo 18º, nºs. 2 e
3, da Constituição”.
A recorrente coloca ainda aquilo que, supostamente, é uma outra questão de constitucionalidade: “[P]retende, ainda, que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade do sentido interpretativo tirado pelo mesmo Supremo Tribunal [o Supremo Tribunal Administrativo] relativamente aos mesmos nºs. 4 e 5 do artº 7º do CIRS enquanto ao não admitir a produção de prova testemunhal dentro dos meios processuais indicados no nº 5 do mesmo artigo, e entre os quais cabe o processo de impugnação judicial (artºs. 120º do Código de Processo Tributário e 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário), converte a presunção juris tantum estabelecida no nº 4 numa presunção juris et de jure, e viola o princípio da capacidade contributiva com assento nos artºs. 104º, 12º,
13º e 1º da CRP”.
Em alegações, veio reiterar esse entendimento. Afirmou, designadamente, que a Constituição adoptou, como figurino da tributação do rendimento, a tributação do rendimento real; nesse sentido, sempre que optar pela tributação dos rendimentos presumidos - opção constitucionalmente admissível -, está o legislador obrigado, em nome do princípio da capacidade contributiva, a permitir ao contribuinte a prova da inexistência de tais rendimentos. Assim, ao não admitirem o recurso aos meios de prova testemunhal e documental, as normas impugnadas afrontam o princípio da capacidade contributiva e, bem assim, a garantia de acesso aos tribunais, na sua vertente de proibição da indefesa.
Por seu turno, a Fazenda Pública, em contra-alegações, sustentou que “o leque de meios de ilisão da presunção – decisão judicial, acto administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos –, permitidos pelo nº 5 do artigo 7º do CIRS, tem uma amplitude que proporciona sempre ao contribuinte uma via adequada a fazer prova idónea da não percepção dos rendimentos presumidos. Nomeadamente, no que se refere a decisão judicial, o contribuinte na competente acção, pode socorrer-se de todos os meios de prova e nessa acção apresentar as suas testemunhas. O que não pode é trazer ao processo de impugnação da liquidação do rendimento presumido os meios de prova que poderia ter produzido na acção própria. Sendo que, para obtenção de acto administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela DGCI, também pode usar dos meios de prova legalmente admitidos para o efeito. Face aos meios para afastar a presunção permitidos pelo nº 5 do artigo 7º do CIRS resulta evidente que a presunção de rendimentos do artigo 7º do CIRS não pode ter-se por convertida em presunção juris et de jure”.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Objecto do recurso
As normas do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na redacção anterior à Lei nº 30-G/2000, de 29 de Dezembro, e cuja constitucionalidade a recorrente pretende ver apreciada dispõem o seguinte:
Artigo 7º
4 – Os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, de prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamentos.
5 – As presunções estabelecidas no presente artigo podem ser ilididas com base em decisão judicial, acto administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos.
III. Fundamentação
1. O Tribunal Constitucional já debateu na sua jurisprudência o problema da articulação entre as presunções estabelecidas em matéria tributária e o princípio da capacidade contributiva (sobre aquelas presunções, cf., na doutrina, Francisco Rodrigues Pardal, “O Uso das Presunções no Direito Tributário”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº. 325/327, 1986, pp. 20ss).
Tem sido assumido – ponto que, aliás, não é contestado pela recorrente – que, sem embargo de se considerar a fixação da matéria colectável “um elemento estruturante da obrigação tributária, integrando, nessa medida, o núcleo fundamental do conjunto de matérias cobertas pelas normas constitucionais de
âmbito fiscal”, não é constitucionalmente vedado tributar rendimentos presumidos
(cf., por exemplo, o Acórdão nº 26/92, in AcTC, 21º vol., pp. 151ss, e, no concreto domínio da determinação da base tributável, os Acórdãos nºs. 620/99 e
621/99, in AcTC, 45º vol., pp. 345ss e pp. 353ss, respectivamente).
Nesta perspectiva, o Acórdão nº 348/97 (in AcTC, 36º vol., pp.
911ss) admitiu a técnica da presunção desde que permitida a ilisão, situando-se em parâmetros moldados pelo princípio constitucional da igualdade – ou seja, colocando a questão da conformidade jurídico-constitucional da tributação de rendimentos presumidos por forma a confrontá-la com outras situações de tributação, assim ponderando que “a generalidade do dever de pagar impostos significa o seu carácter universal (não discriminatório) e a uniformidade
(igualdade) significa que a repartição dos impostos pelos cidadãos há-de obedecer a um critério idêntico para todos”. Uma presunção juris et de jure, escreveu-se então, “veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria colectável fixada à revelia do princípio tributário”.
No mesmo sentido – e mais recentemente –, o Acórdão nº 84/03 (in D.R., II Série, nº 124, de 29-5-2003, pp. 8338ss) articulou o princípio da capacidade contributiva com a possibilidade de o contribuinte dispor de meios para ilidir os resultados de determinadas formas de tributação:
«O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de “uniformidade” – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação. Consiste este critério em que a incidência e a repartição dos impostos – dos
“impostos fiscais” mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou “capacidade de gastar” (na formulação clássica portuguesa, de Teixeira Ribeiro, “A justiça na tributação” in “Boletim de Ciências Económicas”, vol. XXX, Coimbra 1987, n.º 6, autor que também se lhe refere como “capacidade para pagar”) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício). A actual Constituição da República não consagra expressamente este princípio com longa tradição no direito constitucional português - a Carta Constitucional de
1826 expressa-o na fórmula de tributação “conforme os haveres” dos cidadãos e, na Constituição de 33, o artigo 28º consigna-o na obrigação imposta a todos os cidadãos de contribuir para os encargos públicos “conforme os seus haveres”). Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um critério básico da nossa
“Constituição fiscal” sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artigos 103º e 104º da CRP (cfr. Casalta Nabais “O dever fundamental de pagar impostos”, págs. 445 e segs., onde, no entanto, se defende que, embora o princípio não careça – para ter suporte constitucional – de preceito específico e directo, não é de todo inútil ou indiferente a sua consagração expressa). Autores há, porém, que contestam a operatividade jurídica prática ao princípio da capacidade contributiva, em razão, nomeadamente, da sua acentuada e indiscutível indeterminabilidade, não se estando aí senão perante uma “fórmula passe-partout” imprestável para um teste jurídico-constitucional dos impostos, quer porque se limitaria a “estabelecer que “deve pagar-se o que se pode pagar” sem definir o “poder pagar”, quer porque “não forneceria nenhum critério concreto para a repartição justa dos encargos fiscais por todos os contribuintes”, quer ainda porque “diria muito pouco sobre as taxas a considerar correctas dos impostos ou sobre a sua exacta progressão, caso esta, em alguma medida possa resultar de um tal princípio” (cfr. Casalta Nabais ob. cit. págs. 459 e 461). Diferentemente, outros autores, como é o caso do próprio Casalta Nabais reconhecem ainda “importantes préstimos” ao princípio, o qual “afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que, na selecção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja erija em objecto ou matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto” e tem “especial densidade no concernente ao(s) imposto(s) sobre o rendimento” exigindo “um conceito de rendimento mais amplo do que o rendimento-produto” e implicando “quer o princípio do rendimento líquido (...) quer o princípio do rendimento disponível
(...)” (“Direito Fiscal”, págs. 157/168). De todo o modo, deve reconhecer-se não ser fácil retirar consequências jurídicas muito líquidas e seguras do princípio da capacidade contributiva, traduzidas num juízo de inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal.
[...] certos métodos de tributação, pela sua mesma estrutura, podem, afinal, acabar por conduzir à imposição de situações ou realidades em que falece, de todo, a capacidade contributiva, ou (e com maior probabilidade) em que a medida do imposto exigido não tem efectiva correspondência com essa capacidade, indo além (e, porventura, bastante além) dela; é o que ainda Casalta Nabais (“O dever fundamental...”, págs. 497/498 e 501/502) considera, quando se refere a
“soluções tradicionais do direito dos impostos” com suporte no “interesse fiscal”, em particular as “presunções”, considerando esta técnica legislativa
“movida por legítimas preocupações de simplificação de praticabilidade das leis fiscais”, mas que “tem de compatibilizar-se com o princípio da capacidade contributiva, o que passa, quer pela ilegitimidade das presunções absolutas, na medida em que obstam à prova da inexistência da capacidade contributiva visada na respectiva lei, quer pela idoneidade das presunções relativas para traduzirem o correspondente pressuposto económico do imposto” e, mais adiante, aludindo ao
“rendimento normal”, quando sustenta que ele “apenas poderá ser contestado nos casos em que a tributação conduza a situações de intolerável iniquidade”. Mas, se nos ativermos ao que aquele autor escreve na obra citada [...], não pode deixar de se concluir que a solução em causa se compatibiliza com o princípio da capacidade contributiva. É que, a admitir-se que na hipótese em apreço se está perante uma “presunção”, ela admite prova em contrário e, a considerar-se que se trata de uma tributação pelo “rendimento normal”, não pode dizer-se que ela necessariamente conduza a “situações de intolerável iniquidade”. Não se desconhece que, em escrito posterior, o mesmo autor veio sustentar a desconformidade constitucional da norma ínsita na alínea c) do artigo 87º da LGT
(“O quadro constitucional da tributação das empresas”, in Nos 25 anos da Constituição da República Portuguesa de 1976, ed. AAFDL, 2001). Simplesmente, aí, o fundamento do juízo de inconstitucionalidade situa-se já num plano diferente do das considerações gerais a que atrás se fez referência; embora tendo a ver com elas, ele assenta na equiparação a uma inadmissível
“presunção absoluta de rendimentos” da eventual situação (“situação limite”) em que a tributação do rendimento normal não admita prova em contrário. Mas, no caso, não terá cabimento pôr as coisas nesses termos já que ao contribuinte começa por ser dada a possibilidade de justificar o afastamento da sua matéria tributável dos indicadores-padrão (assim podendo evitar a aplicação destes), o que é afinal menos do que exigir-lhe a prova de que não obteve o rendimento correspondente a tais indicadores».
Mais recentemente, no Acórdão nº 211/03 (in D.R., II Série, nº 141, de 21-6-2003, pp. 9240ss), o Tribunal decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo 26º do Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 41 969, de 24 de Novembro de
1958, na redacção que lhe foi dada pelo nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº
308/91, de 17 de Agosto, ao estabelecer, nas transmissões por morte, não ocorrendo “arrolamento judicial dos [bens] mobiliários”, uma presunção sem admissão de prova em contrário da existência de uma determinada quota de
“mobílias, dinheiro, jóias, e mais objectos de uso pessoal ou doméstico”, por se considerar que uma presunção inilidível, neste domínio, violava o princípio constitucional da igualdade, conexionado com o da capacidade contributiva, contidos nos artigos 13º, nº 1, e 104º, nº 3, da Constituição da República. Recorde-se a redacção da norma aí julgada inconstitucional: “Nas transmissões por morte, quando não houver arrolamento judicial dos mobiliários, presumir-se-á, sem admissão de prova em contrário, a existência de mobílias, dinheiro, jóias e mais objectos de uso pessoal ou doméstico, necessários para perfazer, com os bens da mesma espécie que foram relacionados, um valor mínimo equivalente às seguintes percentagens do activo restante da sucessão [...]”
[itálico acrescentado].
Como se referiu neste Acórdão nº 211/93, citando anterior jurisprudência do Tribunal:
«(...) o princípio da tributação do rendimento real exprime uma exigência constitucional mais vasta que se alarga a toda a tributação do rendimento que, no entanto, exclui o recurso à técnica das presunções absolutas para a definição da incidência ou a determinação da matéria colectável do imposto (cfr. J.M. Cardoso da Costa, “O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal: A Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, in Perspectivas Constitucionais. Nos 20 Anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra, 1997, pág. 425, nota 19). A entender-se diferentemente, surpreender-se-ia desigualdade de regimes para situações análogas, quanto à questão da tributação em si mesma considerada, sujeitando a critérios não idênticos a articulação entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado pelo legislador para objecto do imposto, o que tem a ver com o conceito de capacidade contributiva que, não obstante a sua não consagração constitucional, mais não será do que “a expressão
(qualificada) do princípio da igualdade, entendido em sentido material, no domínio dos impostos, ou seja, a igualdade no imposto” (José Casalta Nabais,
“Jurisprudência do Tribunal Constitucional em Matéria Fiscal”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXIX, 1993, pág. 417. Cfr., igualmente, a anotação do mesmo autor no mencionado Acórdão nº 348/97 na revista Fisco, ano IX, nºs. 84/85, págs. 93 e segs. e Clotilde Celorico Palma,
“Da Evolução do Conceito de Capacidade Contributiva”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 402, pág. 134, nota 34)».
2. Aplicando este parâmetro jurisprudencial ao caso em apreço, regista-se desde logo que, ao contrário do que sustenta a recorrente, a presunção que se estabelece no nº 4 do artigo 7º do CIRS, na redacção anterior à Lei nº 30-G/2000, não é uma presunção inilidível. A comprová-lo está o facto de o nº 5 do mesmo artigo vir definir os meios pelos quais tal presunção poderá ser ilidida. E a circunstância de entre esses meios não estarem todos os “meios em Direito admissíveis” não converte a presunção numa presunção juris et de jure. Esta última é uma presunção que se estatui sem possibilidade de prova em contrário (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 1987, pp. 312-313; J. de Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e teoria geral, 6ª ed., Coimbra, 1991, p. 526). Manifestamente, não é o que sucede no caso em apreço, em que a ilisão da presunção pode ser alcançada através de um amplo e diversificado conjunto de meios: decisão judicial, acto administrativo, declaração do Banco de Portugal, reconhecimento pela Direcção-Geral dos Impostos.
De facto, este conjunto de meios probatórios à disposição do impugnante é suficientemente amplo para que se não possa falar numa restrição desproporcionada ou irrazoável de instrumentos de prova, susceptível de, na prática, converter uma presunção juris tantum numa presunção juris et de jure. Mais ainda e contrariamente ao que parece ser pretendido pela recorrente, a garantia de acesso ao Direito e aos tribunais prevista no artigo 20º da Constituição não contempla a possibilidade de utilização irrestrita de todos os meios de prova em qualquer processo judicial (no caso, num processo de impugnação da liquidação tributária), nem proíbe o legislador de restringir o uso de certos instrumentos probatórios, desde que tal restrição não se configure como desproporcionada ou irrazoável. Ora, no caso em apreço pode o impugnante dispor de uma decisão judicial (na qual o requerente pode utilizar todos os meios de prova em geral admissíveis), um acto administrativo, uma declaração do Banco de Portugal ou um reconhecimento pela Direcção-Geral dos Impostos, tudo meios probatórios idóneos para proceder à impugnação judicial de uma liquidação tributária. Finalmente, havendo a possibilidade de ilisão da presunção definida no nº 4 do artigo 7º do CIRS, não fica postergado o princípio constitucional da capacidade contributiva, tal como este Tribunal vem assinalando na reiterada jurisprudência que atrás se sumariou.
Nestes termos, é forçoso concluir que as normas em apreço não restringem o direito de acesso aos tribunais, previsto no artigo 20º da Constituição da República, como não ofendem o princípio constitucional da capacidade contributiva.
3. A recorrente coloca ainda à apreciação do Tribunal uma questão aparentemente diversa, que é a da admissibilidade constitucional da exclusão, no próprio processo de impugnação judicial de uma liquidação, do recurso a meios de prova não previstos no nº 5 do artigo 7º.
Não é necessário o Tribunal indagar se, quanto a essa questão, se encontram reunidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, sabendo, nomeadamente, se a recorrente suscitou o problema de inconstitucionalidade no modo e no tempo processualmente adequados – isto é, com suficiente clareza para que o tribunal a quo percebesse que haveria de conhecer desse problema e antes de esgotado o poder jurisdicional sobre a matéria em causa.
E não é necessário fazê-lo porque não se trata em rigor de uma questão de constitucionalidade distinta daqueloutra que atrás se referiu. Na verdade, tudo se reconduz, ao cabo e ao resto, ao problema de saber se é constitucionalmente admissível vedar o recurso à prova testemunhal ou documental para ilidir a presunção que se estabelece no artigo 7º, nº 4, do CIRS. Tendo a questão sido colocada no âmbito de um processo de impugnação da liquidação tributária, tudo se reconduz a uma – e só uma – dimensão interpretativa: aquela que, procedendo a uma interpretação literal das normas conjugadas dos nºs 4 e 5 do artigo 7º do CIRS, veda o recurso a meios de prova diversos dos que aí se deixam taxativamente elencados.
IV. Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 14 de Outubro de 2003
Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida