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Processo n.º 450/02
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A. interpôs no Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto recurso contencioso de anulação do despacho do Director da Alfândega do ----------, proferido em 22 de Janeiro de 1998, que declarou abandonado a favor da Fazenda Nacional o veículo automóvel pertencente ao recorrente, nos termos do disposto na al. a) do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 31/85, de 25 de Janeiro, com a redacção decorrente do Decreto-Lei n.º 26/97, de 23 de Janeiro.
Por sentença de 15 de Julho de 1999, de fls. 50 e seguintes, foi julgado improcedente o recurso. Disse-se então na sentença:
“O recorrente pretendia importar definitivamente o seu veículo automóvel com isenção de IA. Não lhe tendo sido concedida essa isenção dispunha de três alternativas: introduzir o bem no consumo para o que era necessário proceder ao pagamento dos direitos devidos, nos quais se incluía o IA, reexportar o veículo, ou declará-lo abandonado a favor da Fazenda nacional.
Escolheu reexportá-lo mas não cumpriu as formalidades aduaneiras necessárias para o efeito. Deixou assim de parte as duas outras alternativas.
(...) Não cumpriu as formalidades para a reexportação, tornando-se passível, de acordo com o direito nacional, nesta medida (...) absolutamente compatível com o direito comunitário, de ser o seu veículo declarado abandonado a favor da fazenda nacional, como sanção pela não atribuição oportuna de um destino aduaneiro à mercadoria.
(...) Do mesmo modo a declaração de abandono do bem a favor da Fazenda nacional, nas condições em que foi declarada tem não só suporte legal como em nada contraria a garantia constitucional do direito à propriedade privada, tal como a venda dos bens do devedor em processo executivo não põe em causa essa mesma garantia do direito à propriedade privada dos cidadãos. Não estamos nem face a uma requisição, nem face a uma expropriação por utilidade pública, nem face a um confisco. Tão pouco se verifica uma atitude abusiva do estado em se apropriar dos bens de um cidadão”.
Inconformado, recorreu para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, o qual, por acórdão de 20 de Março de 2002, constante de fls. 143 e seguintes, negou provimento ao recurso. Para o que agora releva, o Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se nos seguintes termos:
“Apreciemos agora a alegada inconstitucionalidade material do artº
6º n.º 1 al. a) do D.L. 31/85, por violação do artº 62º da Lei Fundamental.
Como referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, C.R.P, anot., 3ª edição, pág. 333, ‘elemento essencial do direito de propriedade consiste no direito de não ser privado dela. Este direito, porém, não goza de protecção constitucional em termos absolutos, estando garantido apenas um direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade...’.
Ora, o abandono a que tal norma se refere não só não é uma medida arbitrária como é aquela que se afigura mais adequada face à inércia do importador que, como no caso dos autos, não se apressa a regularizar a situação aduaneira do veículo, quer iniciando as formalidades relativas à sua importação quer solicitando a sua reexportação.
Daí que a norma em análise não viole o artº 62º da C.R.P. E também não viola o artº 32º da C.R.P., que trata das garantias do processo criminal e também do de contra-ordenação. Na verdade, o abandono de que trata a dita norma assume a natureza de uma medida administrativa compulsória visando-se com ela a regularização dos veículos importados, promovendo o respeito, pelos interessados, dos prazos de desalfandegamento, ou da sua reexportação. De qualquer forma, apesar de, na situação presente, não estarmos em presença de um processo criminal ou contra-ordenacional, nem, por isso, os actos administrativos a praticar pelas autoridades aduaneiras estão subtraídos à tutela jurisdicional efectiva, sendo disso exemplo o recurso contencioso e o presente, ambos interpostos pelo recorrente. Apreciemos agora os vícios de inconstitucionalidade formal. As conclusões atinentes a esta matéria partem do princípio de que o Governo, ao editar o artº 6º n.º 1 al. a) do D.L. 31/85, invadiu a reserva relativa de competência legislativa da AR.. Acontece que, quer o D.L. 31/85, de 25/1, quer D.L. 26/97, de 23/1, foram também aditados ao abrigo do artigo 201º da C.R.P., norma essa expressamente referida em cada um deles, que trata da competência legislativa do Governo. Será que o Governo, desprovido da credencial parlamentar, o podia fazer? Como atrás dissemos, o abandono de veículos constitui uma medida administrativa compulsória e, nessa matéria, pode o Governo legislar sem autorização da AR, nos termos do artº 201º da C.R.P. Não ocorrem, pois, os vícios de inconstitucionalidade formal invocados pelo recorrente.”
2. Novamente inconformado, o recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, “com fundamento da alínea b) do artigo 70º da Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro”, invocando “a inconstitucionalidade material do artigo 6º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 31/85, de 25 de Janeiro, por violação dos artigos 32º, 62º da CRP e a inconstitucionalidade formal do Decreto-Lei n.º 31/85, de 25 de Janeiro, assim como do Decreto-Lei n.º 26/97, de
23 de Janeiro, que alterou o primeiro, por violação dos artigos 168º, n.º 1, alínea a), 164º, alínea e), 201º, alíneas a) e b), e 62º da CRP, dado que as respectivas autorizações legislativas – Lei n.º 35/84, de 27 de Dezembro, e 37º, n.º 4, da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março – autorizaram o Governo a legislar exclusivamente sobre normas de utilização de veículos automóveis apreendidos e declarados perdidos a favor do Estado, e já não para legislar ex novo quanto ao regime substantivo do perdimento ou do abandono de veículos em favor do Estado, pelo que os diplomas extravasam, largamente, as respectivas autorizações legislativas”.
Admitido o recurso, as partes foram notificadas para alegar.
3. O recorrente apresentou as suas alegações, concluindo nos seguintes termos:
“I O artigo 6º da Lei n.º 31/85 é materialmente inconstitucional por violação do artigo 62º da Lei Fundamental, ao permitir a declaração de perda e abandono de uma viatura a favor do Estado como forma de satisfação de uma dívida aduaneira.
II A execução do património do devedor para pagamento de dívida só é admissível na medida da satisfação do crédito. Só nessa medida merecem acolhimento no ordenamento nacional, por via do artigo 8º da CRP, as disposições do CAC, no seu artigo 53º quando admite a venda de mercadoria como forma de execução do património do devedor.
III O artigo 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 31/85 é inconstitucional ao consagrar uma forma arbitrária, definitiva, sem contraditório e atentatória do direito de propriedade privada, determinando a apropriação pura e simples de um bem do particular pelo Estado, sem que haja um fim em vista com a mesma, pois não é para pagamento do imposto devido. Tem mero intuito sancionatório.
IV Entender o perdimento do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 31/85 como sanção administrativa, importa ainda a inconstitucionalidade material por violação do artigo 32º da CRP, ao admitir a aplicação de sanções atentatórias de direitos fundamentais sem a existência de qualquer controlo judicial de avaliação do bem e sem que essa sanção seja baseada na culpa do agente, como se exige em caso de aplicação de sanções.
V O Decreto-Lei n.º 31/85, de 25 de Janeiro, assim como o Decreto-Lei n.º 26/97, de 23 de Janeiro, são formalmente inconstitucionais por violação dos artigos
168º, n.º 1, alínea c), 164º, alínea e), 201, alíneas a) e b), e 62º da CRP. Porquanto, aquelas leis de autorização limitaram o governo a legislar apenas em matéria adjectiva e não a legislar ex novo em matéria substantiva como aconteceu.
VI A Lei n.º 35/84 autorizou o Governo nos termos dos artigos 164º, alínea e), e
168º, n.º 1, alíneas c) e d), da CRP, e não nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 168º, já que o perdimento implica o sacrifício de um direito fundamental e só munido de autorização em matéria de direitos fundamentais poderia o Governo ter legislado inovadoramente.
VII O Decreto-Lei n.º 31/85 padece de (dupla!) inconstitucionalidade formal, por violação dos artigos 168º, n.º 1, alínea c), 164º, alínea e), 201º, alíneas a) e b), e 62º da CRP, pois excede manifestamente o sentido e alcance da referida autorização.
VIII O vício de inconstitucionalidade formal estende-se à Lei n.º 10-B/96, por violação do preceituado nos números 2 e 5 do artigo 168º da CRP, dado que a autorização contida no artigo 37º, n.º 4, não obedece aos requisitos formais de definição do objecto, extensão, sentido (v. g., não refere ao abrigo de que alínea do artigo 168º é concedida a autorização). Também aqui não concedeu a Assembleia autorização ao Governo para legislar em termos substantivos.
IX Sendo inconstitucional a lei de autorização reflexamente o será o Decreto-Lei n.º 26/97, que de qualquer modo sempre estaria ferido de inconstitucionalidade formal e material por violação dos artigos 168º, n.º 1, alínea c), 164º, alínea e), 201º, alíneas a) e b), e 62º da CRP.”
A Fazenda Pública não apresentou alegações.
4. Cabe começar por fixar o objecto do recurso.
A este propósito importa, desde logo, começar por referir que o recorrente invoca no requerimento de interposição do recurso a
“inconstitucionalidade material do artigo 6º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 31/85, de 25 de Janeiro” e ainda “a inconstitucionalidade formal do Decreto-Lei n.º 31/85, de 25 de Janeiro, assim como do Decreto-Lei n.º 26/97, de
23 de Janeiro, que alterou o primeiro”.
Muito embora o recorrente pareça assim suscitar a questão da inconstitucionalidade “formal” de todas as normas do Decreto-Lei n.º 31/85 e do Decreto-Lei n.º 26/97, a verdade é que a decisão recorrida apenas aplicou o artigo 6º, n.º 1, alínea a), do primeiro diploma, razão pela qual a questão apenas será analisada relativamente a esse preceito.
Por outro lado, e muito embora o recorrente tenha tido o cuidado de invocar a inconstitucionalidade “formal”, quer do Decreto-Lei n.º 31/85, quer do Decreto-Lei n.º 26/97, que alterou o primeiro, já não observou semelhante cautela a propósito da questão de inconstitucionalidade material por si invocada. Resulta, no entanto, suficientemente do requerimento de interposição de recurso, interpretado no seu conjunto, que o recorrente pretende ver apreciada a questão da alegada inconstitucionalidade material do artigo 6º, n.º
1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 31/85, quer na redacção original, quer na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 26/97.
Sucede, porém, que o preceito efectivamente aplicado pela decisão recorrida foi a alínea a) do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 31/85, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei n.º 26/97. Assim sendo, só na eventualidade de se chegar a um juízo de inconstitucionalidade relativamente a esta norma é que se irá conhecer da norma na sua redação primitiva.
Para além disso, o Tribunal Constitucional não vai conhecer da
“inconstitucionalidade formal” atribuída nas alegações de recurso à “própria Lei
10-B/96, por violação do preceituado nos números 2 e 5 do art. 168º da CRP', desde logo por não constar do requerimento de interposição de recurso. Com efeito, o objecto ali definido não pode ser ampliado nas alegações, como se sabe
(cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 589/99, Diário da República, II série, de 20 de Março de 2000).
5. É o seguinte o texto da norma do artigo 6º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 31/85, de 25 de Janeiro (redacção primitiva):
Artigo 6º Outro casos de abandono a favor do Estado
1 – Uma vez cumpridas as disposições legais aplicáveis, consideram-se igualmente abandonados a favor do Estado: a) Os veículos automóveis cujos proprietários não tenham efectuado o pagamento dos direitos aduaneiros e demais disposições no prazo de
90 dias contados da data da pose do veículo pelo Estado, sem prejuízo do prazo mais curto fixado em lei especial;
(...)
Por seu turno, após o Decreto-Lei n.º 26/97, de 23 de Janeiro, o mesmo preceito passou a ter a seguinte redacção:
Artigo 6º Outros casos de abandono e perda a favor do Estado
1 – Uma vez cumpridas as disposições legais aplicáveis, consideram-se igualmente abandonados a favor do Estado: a) Os veículos automóveis apreendidos ou colocados à ordem das alfândegas quando, após decisão da autoridade competente, não forem iniciadas as formalidades relativas à admissão/importação, no prazo de 60 dias seguidos, ou não forem pagos ou garantidos os direitos e demais imposições em dívida no prazo de 10 dias, contados em ambos os casos a partir da respectiva notificação, se dentro do mesmo prazo não for solicitada a sua reexpedição/reexportação;
(...)”
6. Começar-se-á pela inconstitucionalidade orgânica (e não formal) apontada pelo recorrente, com fundamento na violação da alínea c) do n.º 1 do artigo 168º, na alínea e) do artigo 164º e nas alíneas a) e b) do artigo 201º (na versão aplicável, a anterior à actual; os preceitos hoje correspondentes são, respectivamente, a alínea c) do n.º 1 do artigo 165º, a alínea d) do artigo 161º e as alíneas a) e b) do artigo 198º da Constituição), à alínea a) do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 31/85, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei n.º 26/97.
Na perspectiva do recorrente, estaríamos perante uma norma relativa à “definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal”; isso não é, porém, exacto, já que, como é manifesto, a norma impugnada não versa sobre nenhuma dessas matérias.
Parece também manifesto que a norma em causa não está abrangida pela autorização legislativa conferida pelo n.º 4 do artigo 37º da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março; mas a verdade é que, no ponto em que o preceito em apreciação inova, não se está perante matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República.
Poder-se-ia, com efeito, questionar a possibilidade de o Governo, sem a correspondente autorização legislativa, e independentemente de saber qual seria a qualificação mais adequada à consequência em causa, determinar a perda do veículo a favor do Estado.
A verdade, todavia, é que tal consequência não foi introduzida na ordem jurídica pelo preceito de que nos ocupamos; nesta medida, o Decreto-Lei n.º 26/97 – tal como, aliás, o Decreto-Lei n.º 31/85 – não inovaram, limitando-se a disciplinar os prazos em que devem ser cumpridas obrigações decorrentes de outros diplomas legais; em particular, já constava do regime que o Decreto-Lei n.º 31/85 veio substituir, o que fora definido pela Lei n.º 25/81, de 21 de Agosto.
A regulamentação do imposto automóvel (cuja história se fez no Acórdão n.º 188/2003, Diário da República, II série, de 27 de Maio de 2003) consta, hoje, do Decreto-Lei n.º 40/93, de 18 de Fevereiro, diploma já por diversas vezes alterado.
A isenção que era pretendida pelo ora recorrente foi requerida e negada ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 471/88, de 22 de Dezembro
(também já alterado por duas vezes).
A declaração de abandono foi, efectivamente, proferida com base na al. a) do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 21/97; como se viu, não foi, porém, introduzida na ordem jurídica por este diploma.
Ora o Tribunal Constitucional tem considerado que a falta de natureza inovatória de uma norma que, eventualmente, incida sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República justifica um julgamento de não inconstitucionalidade, quando é a questão da competência legislativa do Governo que está em causa (cfr. Acórdãos n.ºs 502/97, 589/99,
377/02 e 414/02, publicados no Diário da República, II Série, de 4 de Novembro de 1998, de 20 de Março de 2000, de 14 de Fevereiro de 2002 e de 17 de Dezembro de 2002, respectivamente).
Não procede, pois, a acusação de inconstitucionalidade orgânica da norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 31/85, na redacção resultante do Decreto-Lei n.º 27/97. Torna-se, assim, desnecessário conhecer da questão relativamente à redacção inicial do mesmo preceito.
7. E também não procede a invocação de inconstitucionalidade material, que o recorrente funda na violação do disposto nos artigos 32º e 62º da Constituição.
Note-se, antes de mais, que a competência do Tribunal Constitucional apenas lhe permite o confronto com a Constituição da norma aplicada pelo tribunal recorrido, para julgar o recurso contra a decisão de declarar abandonado o automóvel; não pode, assim, avaliar em que medida é que deveria ou não ter sido aplicada tal norma e qual a sua relação com o Código Aduaneiro Comunitário, questão que o recorrente coloca nas alegações apresentadas neste recurso.
A norma viola, no entender do recorrente, o disposto no artigo 62º da Constituição na medida em que admite “uma forma arbitrária, definitiva, sem contraditório e atentatória do direito de propriedade privada, determinando a apropriação pura e simples de um bem do particular pelo Estado, sem que haja um fim em vista com a mesma, pois não é para pagamento do imposto devido”.
Coloca-se neste recurso uma questão que, no essencial, é semelhante a uma outra que foi já apreciada por este Tribunal. Com efeito, no Acórdão n.º 26/02
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt), em que estava em causa a norma do artigo 14º do Decreto-Lei n.º 12 487, de 14 de Outubro de 1926, que impõe como condição da restituição dos bens apreendidos ao arguido em processo penal, restituição ordenada pela decisão que o condenou, que os mesmos sejam reclamados pelo interessado, sob pena de serem declarados perdidos a favos do Estado, foi decidido que a mesma não põe em causa a garantia constitucional do direito de propriedade.
Nesse Acórdão afirmou-se, com interesse para o caso dos autos, o seguinte:
“a causa da perda dos bens é uma inactividade do interessado, que, podendo reclamar os bens, não os reclama; a lei limita-se a ligar a esta atitude a consequência da sua perda, estabelecendo, no fundo, uma presunção – cuja natureza não cabe agora averiguar – de abandono.
Não ocorre, consequentemente, nenhuma violação do direito de propriedade privada. (...)
A concluir, cabe observar que também se não vê que seja violado qualquer outra regra ou princípio constitucional; em particular, que seja infringido o princípio da proporcionalidade, ou da proibição do excesso, pois que, como já se observou, as circunstâncias em que a lei impõe o ónus de reclamar os bens não permitem considerá-lo excessivamente oneroso.”
Ora as considerações tecidas no citado Acórdão n.º 26/02 são aplicáveis, com as devidas adaptações, ao caso dos autos. Também aqui a causa da perda do veículo automóvel é uma inactividade do interessado, que podendo impedi-la, não o faz. Note-se, aliás, que o recorrente, nos termos do regime aplicável, teve várias oportunidades de a evitar: em primeiro lugar, formulou, na sequência do indeferimento do pedido de importação definitiva com isenção de imposto automóvel, o pedido de reexportação, que foi deferido; não se tendo apresentado, no prazo legal, para efectuar as correspondentes formalidades, e sempre depois de realizadas as notificações correspondentes, é que foi proferido o despacho que declarou abandonado a favor da Fazenda Nacional o veículo.
Ainda depois, o recorrente requereu e obteve a reversão da propriedade do veículo, por despacho de 23 de Fevereiro de 1998; ainda assim, não efectuou o pagamento que, então, se tornava necessário.
Não está, pois, em causa qualquer execução do património do devedor para satisfação de uma dívida de imposto, nem qualquer dação em pagamento, o que, desde logo, justifica que não haja controlo judicial do “valor do bem perdido”; nem se trata de nenhum regime que estabeleça o abandono de bens “ao arrepio total da vontade” do proprietário.
Ora a circunstância de a perda do bem resultar de inactividade do interessado, inactividade essa que o recorrente nunca questionou, justifica que se afaste qualquer violação da garantia constitucional da propriedade privada por parte da norma impugnada. E cabe igualmente referir que no caso dos autos, à semelhança daquele sobre que versou o Acórdão n.º 26/02, não ocorre também qualquer violação do princípio da proporcionalidade, uma vez que ao recorrente foi assegurada a possibilidade de, por mais de uma via, e em prazo razoável, obstar à verificação da medida de abandono do veículo.
Finalmente, existe controlo judicial quanto à verificação das condições do abandono – o recurso contencioso de anulação, interposto pelo recorrente, assim o demonstra.
8. Quanto à norma do artigo 32º da Constituição, a mesma seria violada porquanto, no entendimento do recorrente, o preceito em questão admite
“a aplicação de sanções atentatórias de direitos fundamentais sem a existência de qualquer controlo judicial de avaliação do bem e sem que essa sanção seja baseada na culpa do agente, como se exige em caso de aplicação de sanções”.
Note-se, desde já, que é claramente insuficiente, do ponto de vista da fundamentação da alegação de inconstitucionalidade, a afirmação de que a norma em causa viola o artigo 32º da Constituição. Nos 10 números deste preceito constitucional encontram-se enunciados diversos princípios relativos a processos sancionatórios, em especial ao processo criminal; era exigível ao recorrente que, no mínimo, precisasse que princípio consagrado neste artigo é que considerava violado.
Assim, haveria de ter explicado por que razão é que viola o artigo
32º da Constituição “ a [não] existência de qualquer controlo judicial de avaliação do bem”, afirmação para a qual não se vê justificação.
A mesma necessidade de explicação se exigira para a afirmação de que a perda do veículo tem de assentar em “culpa do agente”, e que essa exigência resulta do artigo 32º da Constituição.
Ora, mesmo na ausência de tais explicações, o Tribunal Constitucional entende que não ocorre qualquer violação do artigo 32º da Constituição, pela simples razão de que não estamos, no caso dos autos, perante uma sanção associada ao incumprimento de um dever ou obrigação, mas sim perante a consequência do incumprimento de um ónus por parte do interessado. E repare-se que no caso dos autos não se pode sequer dizer que o abandono do veículo a favor do Estado é uma consequência necessária do não pagamento do imposto devido pela importação, pois ao interessado é ainda assegurada a possibilidade de solicitar a reexpedição/reexportação do veículo. Ou seja, ao interessado não estava sequer apenas aberta uma via de actuação adequada a impedir a verificação de uma consequência desfavorável, mas antes lhe era conferida a possibilidade de optar entre o desalfandegamento do bem e a respectiva reexportação.
Assim, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que toca à questão da constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 14 de Outubro de 2003
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida