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Processo n.º 518/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A., vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da decisão sumária do relator, de 15 de Setembro de 2003, que decidira, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do objecto do recurso, por inadmissibilidade do mesmo.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. Vem o presente recurso interposto por A., ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da (...) LTC, contra os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Janeiro de 2003 e de 15 de Maio de 2003, visando a apreciação da inconstitucionalidade – por pretensa violação do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP) – da norma do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil,
«na interpretação normativa que lhe foi dada nos doutos acórdãos recorridos», referindo que «aquela disposição legal foi interpretada, nas decisões mencionadas, no sentido de que o Tribunal, com base nos factos apurados, pode optar por uma construção jurídica não prevista nem debatida pelas partes e, em especial, sem previamente ouvir sobre essa solução a parte a quem a mesma prejudique», e aduzindo que a questão de inconstitucionalidade teria sido suscitada nos n.ºs 12 e 13 do requerimento apresentado em 11 de Fevereiro de
2003 (nesse requerimento, apelidado de «reclamação para a conferência», a recorrente, em rigor, argui a nulidade do acórdão de 23 de Janeiro de 2003 por alegada contradição entre os fundamentos e a decisão e por pretensa violação dos princípios do contraditório e do acesso à justiça).
O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, decisão que, porém, não vincula o Tribunal Constitucional (artigo
76.º, n.º 3, da LTC), e, efectivamente, entende-se que, no caso, o recurso é inadmissível, e, por isso, não se pode conhecer do seu objecto, o que possibilita a prolação de decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
2. Como é sabido, só podem constituir objecto do recurso de constitucionalidade questões de inconstitucionalidade normativa, isto é, objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional só pode ser a conformidade constitucional de normas ou de interpretações normativas e não a conformidade constitucional de decisões judiciais ou de actos (ou omissões) processuais em si mesmos considerados. E, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, importa ainda que a questão de inconstitucionalidade normativa haja sido suscitada durante o processo, esclarecendo o n.º 2 do artigo 72.º da LTC que tal recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer».
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve «lapso manifesto» do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações.
Só assim não será nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
3. No presente caso, ainda que se admitisse que a arguição de nulidade do acórdão de 23 de Janeiro de 2003, consubstanciada no requerimento de
11 de Fevereiro de 2003, era de considerar momento tempestivo para suscitar a questão de inconstitucionalidade de normas pertinentes àquela arguição de nulidade, o certo é que a recorrente não levantou, nesse requerimento, e em especial nos seus n.ºs 12 e 13, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
Para o constatar, basta ler o que desses n.ºs 12 e 13 (locais que a recorrente, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, expressamente refere como sendo aqueles em que a questão de constitucionalidade teria sido suscitada) consta e que é o seguinte:
«12 – O Acórdão deste Supremo Tribunal ora em questão traz ao processo uma questão nova (fundando-se num parecer junto pela recorrida em sede de contra-alegações), uma vez que concluiu pela inexistência actual do crédito da recorrida ao preço das acções, quando, até aí, tudo e todos haviam partido do pressuposto de que existia uma dívida vencida (a própria recorrida e as 1.ª e
2.ª instâncias).
Contudo, a recorrente não teve qualquer oportunidade de se pronunciar sobre essa nova questão trazida ao processo, nem sequer foi chamada para esse efeito.
Tal circunstância viola o princípio do contraditório, que preside ao nosso processo civil e se encontra expressamente consagrado no artigo 3.° do Código de Processo Civil (vide parecer ora junto em cujo teor a recorrente se louva).
Com efeito, o n.° 3 desse preceito prescreve que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
13 – A omissão da pronúncia da recorrente, além de pôr em crise o princípio do contraditório, traduz-se num processo desigual para as partes nele intervenientes, o que consubstancia uma violação do princípio constitucional do acesso à justiça, consagrado no artigo 20.° da. Constituição da República Portuguesa, designadamente daquilo que dispõe o seu n.° 4.
Na verdade, este preceito constitucional prescreve que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.
Pelo que deverá ser considerado o ora exposto pela recorrente, a qual se reserva a faculdade de, em tempo adequado e caso V. Ex.as julguem necessário, vir a aprofundar a matéria supra explicitada.»
Como se vê, nestas passagens a recorrente não suscita qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, antes imputa à própria decisão judicial questionada (o acórdão de 23 de Janeiro de 2003) a violação de uma norma de direito ordinário (o artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil) e
à omissão de um acto processual (a não notificação à recorrente do parecer junto com a contra-alegação da recorrida) a violação do direito de acesso à justiça, especialmente na dimensão de direito a um processo equitativo. Em parte alguma se questiona a conformidade constitucional de uma qualquer interpretação normativa (que, aliás, não se especifica) do referido artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, que teria sido acolhida no acórdão arguido de nulo, e muito menos em termos de o tribunal recorrido se poder aperceber de que tinha sido suscitada perante ele uma questão de constitucionalidade normativa.
E, por isso, a fundamentação do subsequente acórdão de 15 de Maio de
2003, que indeferiu o requerimento de 11 de Fevereiro de 2003, também não versa sobre qualquer questão de constitucionalidade normativa. Nesse acórdão lê-se, na parte ora pertinente:
«2. Referiu a reclamante que o Supremo Tribunal de Justiça, fundando-se em parecer jurídico junto pela recorrida na resposta do recurso, contra o pressuposto por todos aceite de que havia um crédito vencido, sem a sua audição, introduziu a questão nova da inexistência actual do crédito daquela ao preço das acções, infringindo o princípio do contraditório. No âmbito do princípio do contraditório, expressa a lei que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (artigo 3.°, n.° 3, do Código de Processo Civil). O princípio do contraditório foi cumprido ao longo de todo o processo na dupla vertente de facto e de direito, porque a reclamante foi citada para a acção para poder contestar, foi notificada da sentença proferida na 1.ª instância para dela poder recorrer e pôde alegar nos recursos de apelação e de revista em termos de poder fazer valer o seu entendimento sobre o sentido dos factos provados, as normas jurídicas aplicáveis, a interpretação destas e as respectivas consequências fáctico-jurídicas. As questões fáctico-jurídicas, que se consubstanciam nos pontos de facto e de direito estruturantes da causa de pedir, do pedido e das excepções são realidades essencialmente diversas dos argumentos sobre o sentido de decisão dessas questões, incluindo os de natureza essencialmente jurídica de qualificação no confronto com os factos provados disponíveis. Este Tribunal não introduziu no processo a questão nova da inexistência actual do crédito da reclamada ao preço das acções, porque se limitou, ao abrigo do artigo
664.° do Código de Processo Civil, na sua perspectiva, a qualificar os factos declarados provados no acórdão recorrido à luz das normas jurídicas que considerou aplicáveis e da interpretação que julgou correcta. Nem se trata de um segmento de fundamentação jurídica tipo surpresa, porque a reclamante podia, em termos de razoabilidade, face aos factos provados, extrair deles a mesma conclusão jurídica que este Tribunal extraiu, como o fez o jurista que proferiu o parecer que a reclamada juntou com a resposta no recurso de revista, entendimento que ela conheceu antes da prolação do acórdão de que reclamou, certo que a Relação já havia qualificado na espécie de promessa o contrato celebrado entre a reclamada e a reclamante. A conclusão não pode, por isso, deixar de ser no sentido de que este Tribunal não infringiu, na espécie, quer o princípio do contraditório, quer o princípio da proibição de decisões surpresa.»
Como se constata, nesta decisão o Supremo Tribunal de Justiça não se pronunciou sobre nenhuma questão de constitucionalidade normativa, nem tinha que o fazer, já que a recorrente, como se assinalou, não cumprira o ónus de suscitar tal questão “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
4. Em face do exposto, não tendo sido suscitada pela recorrente, durante o processo, nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, decide-se, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LCT, não conhecer do objecto do recurso, por inadmissibilidade do mesmo.”
1.2. A reclamação deduzida desenvolve a seguinte argumentação:
“1. A douta decisão objecto da reclamação apreciou duas questões distintas: a) questão de saber se a recorrente suscitou a questão de constitucionalidade em momento adequado, ou seja, nos termos do artigo 70.º, n.° 1, alínea b), e n.°
2 do artigo 72.° da LTC; e b) se a recorrente suscitou uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, isto é, se a inconstitucionalidade arguida se dirigiu à norma invocada ou antes à própria decisão judicial questionada.
2. No que se refere à primeira questão – a tempestividade da suscitação de inconstitucionalidade –, o Tribunal Constitucional, como se pode ver na jurisprudência citada no requerimento de interposição de recurso da recorrente e como é reconhecido na própria decisão ora reclamada, tem admitido o recurso nos casos em que, sendo a inconstitucionalidade levantada após o proferimento da decisão recorrida, se verificar que o recorrente não teve oportunidade de o fazer anteriormente.
Trata-se de situações em que não era exigível ao recorrente suscitar a questão de inconstitucionalidade antes da decisão, por não ser razoavelmente previsível que o Tribunal viesse a aplicar a norma em causa ou lhe viesse a dar uma interpretação de natureza normativa conflituante com preceitos constitucionais.
Isto sucederá, por exemplo, com as chamadas decisões-surpresa, em que a parte é surpreendida com a aplicação de uma norma ou com uma interpretação normativa da norma, com a qual, razoavelmente, não poderia contar.
3. No caso presente, cremos estar perante uma situação desse tipo. Vejamos.
3.1. Na petição inicial, a autora B. sustenta que tem um crédito sobre a ré A., desde o passado dia 31 de Dezembro de 1995, «correspondente à obrigação assumida pela ré no n.° 2 do artigo 7.° do pacto de accionistas (junto sob o doc. n.° 2 da petição inicial) ... de adquirir a participação da autora no capital social da sociedade C.» (artigo 32.° da petição).
3.2. A autora quantifica esse crédito, à data da petição, em 867 617
465$83, dos quais 720 000 000$00 de capital e 147 617 465$83 de juros (artigo
43.° da petição inicial).
3.3. Ou seja, quer a causa de pedir, quer o pedido, assentam na existência de um crédito, nascido em 1995, do montante referido.
4. Como não podia deixar de ser, a defesa da ré, ora recorrente, assentou na causa de pedir e no pedido sumariamente descritos.
5. Uma das questões suscitadas no processo foi a de saber se seria aplicável ou não ao crédito invocado pela autora o regime fixado no processo de recuperação de empresa (proc. n.° 872/97, do 2.° Juízo Cível do Tribunal de
--------------) relativo ao pagamento aos credores da A..
6. Quer a 1.ª Instância, quer a Relação consideraram que a autora era titular de um crédito pecuniário de capital no montante de 720 000 000$00; a
1.ª Instância decidiu que esse crédito se venceu em 31 de Dezembro de 1995 e a Relação em 22 de Junho de 1996.
7. Consequentemente, a Relação condenou a recorrente no pagamento de juros de mora a partir da data referida, 22 de Junho de 1996.
8. Quer a 1.ª Instância quer a Relação consideraram que a aplicação ao presente caso da decisão proferida no processo de recuperação de empresa só se colocaria na fase da execução da eventual sentença condenatória.
Assim, a 1.ª Instância, sobre esta questão, decidiu o que passa a transcrever-se:
«A questão não se coloca neste momento. (...)
O processo ainda não terminou seus legais termos. Quando e se for o caso de executar eventual sentença condenatória, então, e se ainda estiver em vigor alguma medida de recuperação ou outra, será caso de apreciar, à luz do preciso contexto então vigente.
Assim, as medidas determinadas no processo de recuperação, por ora – e é o que interessa – não sustam esta acção nem obrigam este Tribunal a qualquer ponderação.»
8.1. Por seu turno, sobre a mesma questão, o Tribunal da Relação afirmou o que se transcreve:
«2.2.2. Através do requerimento que juntou a fls. 314, invocou a ré a existência de factos modificativos do direito da autora, alegando que no processo de recuperação de empresa em que foi visada tinha sido aprovada e homologada judicialmente a medida de recuperação de gestão controlada, pelo que os créditos da autora, ainda que reconhecidos, encontrar-se-iam sempre reduzidos e alterados quanto ao seu pagamento nos termos constantes do plano.
O Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF) rege sobre os efeitos da acção de recuperação da empresa. Assim, resulta das disposições conjugadas dos artigos 29.° e 103.°, n.° 2, que, proferido o despacho de prosseguimento daquela acção, ficam imediatamente suspensas todas as execuções instauradas contra o devedor e todas as diligências de acções executivas que atinjam o seu património, suspensão que se mantém durante o período de gestão controlada.
O legislador apenas considerou necessário tomar medidas de salvaguarda do seu património e, por isso, apenas estendeu a eficácia dos efeitos da pendência do processo e da deliberação da assembleia de credores judicialmente homologada à fase executiva destinada ao pagamento coercivo. O espírito da lei é no sentido de preservar, até onde for possível, o património do devedor.
É certo que a deliberação da assembleia de credores que aprove as providências de gestão controlada, depois da homologação judicial, vale não só nas relações entre os credores e a empresa, mas também relativamente a terceiros
(artigos 102.° e 94.° do CPEREF), e que a extinção da gestão controlada pelo decurso do prazo fixado para a sua duração não afecta a validade das providências adoptadas pela assembleia de credores no processo de recuperação, nem interrompe a execução das providências duradouras já iniciadas (artigos
115.°, n.ºs 2 e 3, e 95.°, n.° 4, do CPEREF).
Considera-se, porém, que a eficácia acabada de assinalar se não reflecte em acção declarativa pendente que tem por objecto definir eventuais direitos e obrigações.
Os efeitos da deliberação da assembleia de credores que aprovou as providências de gestão controlada, cuja validade não é afectada pelo decurso do prazo fixado para a sua duração e consequente extinção da gestão controlada, só se projectarão sobre o crédito que a autora invocou nesta acção, caso venha a ser reconhecido, na fase do cumprimento da obrigação.»
9. Ao interpor recurso para o STJ do acórdão da Relação, a recorrente procurou atacar os fundamentos da decisão, sempre na óptica que até aí vinha sendo discutida, ou seja, da invocação pela autora de um crédito pecuniário de montante preciso, emergente de uma cláusula de um acordo parassocial.
Repare-se e sublinhe-se que o Tribunal da Relação qualificou expressamente a obrigação da ré como «obrigação pecuniária» (pág. 15 do acórdão).
A tese da ré, ora recorrente, era que a sentença homologatória proferida no processo de recuperação da recorrente constituía modificação do crédito pecuniário em que assentava o pedido da autora.
10. Ora, o STJ decidiu a questão de um modo inovador, não discutido previamente entre as partes com gravíssimo prejuízo para a recorrente.
Efectivamente, o STJ considerou que não se estava perante um crédito pecuniário vencido mas de um direito da autora a uma prestação de facto (o cumprimento de um contrato-promessa de compra e venda de acções contido no pacto de accionistas).
Para o STJ o crédito da autora – preço das acções a adquirir pela ré
– é um crédito futuro, o qual «... há-de ainda constituir-se quando as acções forem compradas, ou seja, quando se realizar o contrato definitivo (que será realizado, conforme se sublinhou, através da condenação da ré na aquisição das acções)».
Desta diversa qualificação jurídica resultaram consequências extremamente gravosas para a recorrente, ou seja, a não aplicação ao direito da autora do regime consagrado no processo de recuperação da recorrente.
11. É por demais evidente que a decisão do STJ constitui uma decisão-surpresa, que não poderia razoavelmente ser prevista pela recorrente, uma vez que no processo, nem a autora, nem o juiz da 1.ª Instância, nem a Relação, alguma vez tinham abordado uma tal perspectiva para as questões objecto da acção e dos recursos.
12. Isto é, a recorrente não poderia prever que o STJ viesse a conferir à norma do artigo 3.° do CPC uma interpretação de carácter normativo que dispense o Tribunal de recurso de ouvir previamente a parte afectada sobre uma qualificação jurídica dos factos, adaptada de modo diferente e original do previsto e debatido pelas partes e do decidido pelas Instâncias.
13. Consequentemente, deve considerar-se que a recorrente suscitou a questão no momento em que o poderia fazer, devendo, por isso, considerar-se, no caso, dispensada do ónus da suscitação durante o processo (Acórdão n.° 386/97, de 23 de Maio de 1997, processo n.° 63/97).
14. A segunda questão objecto da presente reclamação consiste em saber se a recorrente suscitou ou não, no seu requerimento apresentado em 11 de Fevereiro de 2003, uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Com todo o respeito pelo ilustre autor da decisão de que se reclama para a conferência, a recorrente entende que ela peca por excesso de formalismo, ao decidir esta questão apenas com base na terminologia utilizada naquele requerimento, com prejuízo da substância da argumentação nele expressa.
Vejamos.
15. É jurisprudência deste Tribunal que basta à admissibilidade do recurso que o Tribunal a quo tenha aplicado de forma implícita a norma cuja constitucionalidade é suscitada no recurso (vide, p. ex., os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.°s 155/98, 481/94 e 501/94).
No requerimento da recorrente apresentado em 11 de Fevereiro de
2003, questiona-se, justamente, a desconformidade da norma do artigo 3.°, n.º 3, do CPC com o artigo 20.°, n.º 4, da CRP, aplicada implicitamente pelo STJ no acórdão recorrido.
Ao reagir ao requerimento da recorrente, o STJ veio confirmar que conferiu à norma questionada – o artigo 3.°, n.º 3, do CPC – uma interpretação de natureza normativa, isto é, uma interpretação de «índole generalizante», aplicável com carácter geral e abstracto a todas as situações semelhantes.
Vale a pena citar o acórdão:
«Referiu a reclamante que o Supremo Tribunal de Justiça, fundando-se em parecer jurídico junto pela recorrida na resposta do recurso, contra o pressuposto por todos aceite de que havia um crédito vencido, sem a sua audição, introduziu a questão nova da inexistência actual do crédito daquela ao preço das acções, infringindo o princípio do contraditório.
No âmbito do princípio do contraditório, expressa a lei que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não se lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta necessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem
(artigo 3.°, n.° 3, do Código de Processo Civil).
O princípio do contraditório foi cumprido ao longo de todo o processo na dupla vertente de facto e de direito, porque a reclamante foi citada para a acção para poder contestar, foi notificada da sentença proferida na 1.ª instância para dela poder recorrer e pôde alegar nos recursos de apelação e de revista em termos de poder fazer valer o seu entendimento sobre o sentido dos factos provados, as normas jurídicas aplicáveis, a interpretação destas e as respectivas consequências fáctico-jurídicas.
As questões fáctico-jurídicas, que se consubstanciam nos pontos de facto e de direito estruturantes da causa de pedir, do pedido e das excepções são realidades essencialmente diversas dos argumentos sobre o sentido de decisão dessas questões, incluindo os de natureza essencialmente jurídica de qualificação no confronto com os factos provados disponíveis.
Este Tribunal não introduziu no processo a questão nova da inexistência actual do crédito da reclamada ao preço das acções, porque se limitou, ao abrigo do artigo 664.º do Código de Processo Civil, na sua perspectiva, a qualificar os factos declarados provados no acórdão recorrido à luz das normas jurídicas que considerou aplicáveis e da interpretação que julgou correcta.»
16. Parece bastante claro que o STJ interpretou o disposto no n.° 3 do artigo
3.° do CPC no sentido de que, ao abrigo do artigo 664.° do CPC, pode o Tribunal decidir o recurso mediante uma construção jurídica nova, não discutida previamente pelas partes e, em especial, sem que a parte afectada possa ter-se pronunciado sobre essa solução. No fundo, o STJ conferiu à norma um resultado interpretativo que restringe o direito das partes a pronunciarem-se previamente sobre questões de direito objecto da decisão do Tribunal, desde que elas decorram de uma qualificação dos factos diversa da discutida no processo e da adoptada pela 1.ª Instância e pela Relação.
É este resultado interpretativo que a recorrente considera violador do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição.
E foi isto, vistas as coisas na sua substância, que a recorrente suscitou. Tanto assim que, decidindo sobre o requerido pela recorrente, o STJ explicitou o seu entendimento normativo do artigo 3.°, n.º 3, do CPC.
17. A recorrente traz a este Tribunal uma questão de constitucionalidade normativa e não a inconstitucionalidade da decisão recorrida.
Do que se trata é de saber se é conforme à Constituição o entendimento conferido ao artigo 3.°, n.° 3, do CPC que restringe significativamente o direito das partes a pronunciarem-se previamente sobre as questões de direito que vão ser objecto da decisão do Tribunal.
E esta questão é muito importante, não apenas para a recorrente mas para todos os cidadãos e entidades que têm de recorrer aos Tribunais na defesa dos seus direitos.
18. Por todo o exposto, requer-se que o recurso seja admitido, seguindo-se os ulteriores termos legais.”
1.3. A recorrida – B. –, notificada da reclamação, apresentou a seguinte resposta:
“1. Não tem a reclamação ora apresentada pela reclamante A. qualquer fundamento minimamente sério que não seja o patente desespero de fazer protelar um pouco mais o cumprimento da determinação judicial em que foi condenada na 1.ª instância, confirmada pela 2.ª e no essencial ratificada – em duas ocasiões – pelo Supremo Tribunal de Justiça.
2. Acresce fundamentar-se o recurso em argumentação – violação do n.º 4 do artigo 20.º da CRP por incumprimento ou alegadamente errada interpretação pelo Supremo Tribunal de Justiça do artigo 3.º, n.º 3, do CPC –, que tanto de facto como de direito não corresponde à verdade processual, assentando, isso sim, em manifesta falsidade, que, por imperativo de justiça, importa aqui apontar para os efeitos que mais adiante se irão requerer.
Assim,
3. A alegada «questão nova» de direito a que alude a reclamante – a qualificação da contrapartida pecuniária da aquisição pela A. das acções que a B. detém no capital da sociedade C. como um crédito pecuniário futuro – será tudo o que se entender menos questão nova nestes autos!
4. Com efeito, um tal entendimento sobre a natureza das obrigações da A. – que veio em definitivo a merecer acolhimento por parte do Supremo Tribunal de Justiça através dos já citados Acórdãos –, foi expressamente invocado e fundamentado pela recorrida B. desde a 1.ª instância, pelo menos em cinco ocasiões distintas ao longo do decorrer deste processo e que seguidamente se listam:
– em 1.ª instância, na resposta da B. datada de 15 de Julho de 1999 e constante de fls. ..., junta aos autos em resposta a articulado superveniente da A. onde foi suscitada a questão de caso julgado;
– nas alegações de direito apresentadas em 1.ª instância;
– nas alegações de recurso da B. em resposta ao recurso interposto pela A., no Tribunal da Relação de Lisboa, a fls. ...;
– nas alegações de recurso da B. em resposta ao recurso interposto pela A., no Supremo Tribunal de Justiça, a fls. ...;
– nos pareceres de direito elaborados pelo Senhor Prof. Doutor D. e pelo Senhor Dr. E. e juntos pela B. às suas alegações perante o Supremo Tribunal de Justiça.
5. Em todos esses momentos – o que pode ser confirmado por simples análise das peças processuais que se acaba de mencionar –, foi a aludida questão «nova» invocada e devidamente fundamentada pela B. e em todos eles teve a recorrente A. oportunidade – e dever e interesse processual – de sobre tal problemática se pronunciar – como aliás sucedeu!
É, pois, manifestamente chocante que, contra a evidência dos próprios autos, que pode ser aferida pela simples consulta das peças em causa, venha a reclamante A. lançar mão de expediente patentemente falso e materialmente contrariado pela verdade dos factos para tentar obter uma vez mais um adiamento da justiça que à reclamada B. é devida.
6. Do que acaba de ser dito decorre naturalmente a consequência de o recurso em questão nunca poder ser admitido ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, uma vez que, sendo a questão conhecida da parte ora recorrente durante praticamente toda a duração do presente processo, nunca por esta foi invocada a questão da inconstitucionalidade – o que, aliás, teria sido de todo impossível, por motivo de, a cada passo do processo, a mesma recorrente sobre ela se ter pronunciado ou dever tê-lo feito.
7. Acresce igualmente o facto de a reclamante A. nem sequer ter suscitado de forma directa ou manifesta a questão da inconstitucionalidade na sua reclamação do Acórdão de 23 de Janeiro de 2003 do Supremo Tribunal de Justiça – e já vimos que podia ter-se pronunciado sobre tal questão em todas as instâncias anteriores –, para se excluir em definitivo a impossibilidade de aplicação da invocada norma do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, de tudo decorrendo a patente inadmissibilidade do recurso em questão.
Por outro lado,
8. Incorre naturalmente em despudorada falsidade a reclamante A. quando pretende fazer crer a este Tribunal que tanto a A. como a B. [teriam] sempre e exclusivamente abordado e concebido as obrigações discutidas nestes autos como um mero crédito pecuniário e que a decisão do STJ teria constituído absoluta surpresa por se fundamentar em construção jurídica nova e nunca abordada nas diferentes fases do processo.
Já se demonstrou, remetendo aliás para as peças processuais relevantes (cf. supra n.º 4), que a reclamada B. vem desde a 1.ª instância defendendo insistentemente a tese que mais tarde e em definitivo veio a ser sufragada pelo STJ e pelos pareceres de direito já mencionados.
Assim, ou se constata que a reclamante não leu ou não prestou a devida atenção aos articulados que desde 1996 têm vindo a integrar os presentes autos e aos quais – pasme-se! – sempre deu resposta, ou teremos em alternativa de concluir estarmos perante a escandalosa repetição de uma mentira com o mero intuito de permitir à reclamante percorrer todas as instâncias jurisdicionais possíveis como método de atrasar o cumprimento das obrigações que lhe competem.
Não nos parecem necessários mais comentários – o conteúdo destes autos dá cabal resposta à dúvida que se acaba de formular!
E, assim sendo,
9. Ao invocar situações de facto e de direito que bem sabe serem falsas e são patentemente contrariadas pela realidade material dos próprios autos, a reclamante A., age com deliberada má fé e com o único propósito de, através de expediente processual formal cuja falta de sustentação não ignora nem poderia ignorar, protelar a boa aplicação da justiça e das decisões judiciais que a estes autos correspondem.
Ficando desse modo integralmente reunidos os requisitos constantes da noção de litigância de má fé a que se reporta o n.º 2 do artigo 456.º do CPC e cuja tutela expressamente se requer.
Em conclusão:
A – Não existe qualquer decisão «surpresa» por parte do Supremo Tribunal de Justiça no seus doutos acórdãos de 23 de Janeiro e de 15 de Maio de
2003 na medida em que a não aplicação das medidas de recuperação a que a reclamante foi submetida às obrigações nestes autos reclamadas, em virtude de as mesmas se não reconduzirem a meros créditos pecuniários, foi suscitada por pelo menos cinco vezes pela B., ao longo das várias instâncias percorridas pelos presentes autos;
B – Tendo sido a questão suscitada nos autos pela B. em pelo menos cinco ocasiões anteriores aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, teve a reclamante outros tantos momentos para sobre a mesma se pronunciar (o que, aliás, fez à saciedade, chegando até a juntar aos autos parecer de Professor de Direito), donde decorre não ter havido qualquer violação do princípio do contraditório e por essa via do n.º 3 do artigo 3.º do CPC, que se mostra sobejamente cumprido;
C – Estando a reclamante A. bem ciente, desde a 1.ª instância, da aludida questão de direito – a que o STJ sempre seria livre de conferir relevância, independentemente de a mesma ter ou não sido suscitada pelas partes
–, em momento algum suscitou a tal respeito a questão da inconstitucionalidade, antes optando por sobre a mesma se pronunciar conforme era seu dever e interesse processual;
D – Motivos pelos quais se conclui pela absoluta justeza da decisão sumária reclamada, a qual considerou o recurso em questão inadmissível, tanto por em momento algum dos presentes autos ter sido suscitada a questão da inconstitucionalidade, como por ser falsa e manifestamente contrariada pela verdade dos autos a argumentação da reclamante no sentido de qualificar como de
«surpreendente» e atentatória do princípio do contraditório a decisão do Supremo Tribunal de Justiça.
Nestes termos, demais de direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser desatendida a reclamação em causa e mantida a douta decisão sumária que determinou a inadmissibilidade do recurso interposto pela A., devendo ainda ser a actuação da mesma reclamante avaliada para efeitos de apuramento de litigância de má fé, com todas as legais consequências daí decorrentes.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Deve começar por esclarecer-se que o fundamento determinante da decisão sumária ora reclamada foi a não suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, pois, quanto à tempestividade dessa suscitação, admitiu-se que a arguição de nulidade de uma decisão judicial seja o momento oportuno para levantar a questão de inconstitucionalidade quanto esta respeite a norma directamente relevante, não para a decisão de mérito da causa, mas para a nulidade decisória invocada, como ocorreria no caso presente, em que a questão da eventual inconstitucionalidade de determinada interpretação do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil se prende directamente com a nulidade do acórdão por violação do princípio do contraditório.
Ora, como se explicitou na referida decisão sumária, os termos em que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada nos n.ºs 12 e 13 da arguição de nulidade do primeiro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
(locais que a recorrente mencionou, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, como sendo aqueles em que a questão de constitucionalidade teria sido suscitada) são inidóneos para configurar uma questão de inconstitucionalidade normativa, em termos de o tribunal recorrido ficar obrigado a dela conhecer, pois nesses locais a violação da Constituição não é imputada a qualquer norma ou interpretação normativa, mas directamente a uma decisão judicial (o primeiro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que teria violado a lei ordinária: o artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil) e a uma omissão processual (a não audição da recorrente sobre pretensa “questão nova”, que teria desrespeitado o direito de acesso à justiça, especialmente na dimensão de direito a um processo equitativo). Esta razão (não suscitação de questão de inconstitucionalidade normativa) determina, só por si, a inadmissibilidade do recurso de constitucionalidade, o que tornava irrelevante apurar a verificação, ou não, do outro pressuposto desta espécie de recurso: ter a decisão recorrida aplicado efectivamente a interpretação normativa cuja conformidade constitucional a recorrente pretendia ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Sempre se dirá, no entanto, que este segundo pressuposto do recurso também não ocorre.
Na acção de que emerge o presente recurso, a autora B. alegou, além do mais, ser sócia (com 72 000 acções), com a ré A. (esta com 87
992 acções), da C., e ter-lhe sido reconhecido, por pacto celebrado em 11 de Março de 1994, o direito de saída desta sociedade, com a obrigação da ré a, nesse caso, lhe adquirir a respectiva participação, direito que ela exercitou por comunicação de 31 de Dezembro de 1995, sem que a ré cumprisse a correspondente obrigação, do que derivaria um crédito de 720 000 000$00 (valor da participação da B. na C.), acrescidos de juros de mora desde a data dessa interpelação (quantificados, na petição inicial, em 147 617 645$00); por outro lado, ao abrigo de acordo de conta-corrente, celebrado em 14 de Março de 1995, a B. adiantou à C. 185 000 000$00, dos quais já recebeu, em 31 de Janeiro de 1997,
39 699 352$00. O Tribunal da Relação de Lisboa, concedendo provimento à apelação da autora e parcial provimento à apelação da ré, condenou esta na aquisição da participação da autora na C., mediante o pagamento de 720 000 000$00, e no pagamento de 184 496 864$00, quantias a que acrescem juros de mora nos termos aí especificados. No recurso de revista, a ré, além do mais, sustentou a repercussão na presente acção da medida de recuperação de empresa aprovada e homologada por decisão transitada em julgado, o que foi contrariado na contra-alegação da autora, onde se sustenta que a modificação dos créditos sobre a ré resultante da decisão tomada no processo de recuperação de empresa não lhe
é oponível, designadamente por os créditos da autora irem nascer do cumprimento futuro, pela ré, de uma obrigação de facto (a aquisição da participação da B. na C.). O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, entendendo que o decidido na acção de recuperação de empresa se aplica aos “créditos pecuniários” sobre a ré, deu razão parcial a esta, revogando o acórdão da Relação na parte em que a condenara a pagar 184 496 864$00, com juros desde 22 de Junho de 1996 até integral pagamento, ficando a ré condenada (de acordo com a decisão de recuperação de empresa) a pagar apenas 30% dessa quantia, com juros desde a aludida data mas apenas até 30 de Junho de 1996, pagamento a efectuar numa única prestação, diferida para dez anos após o trânsito em julgado da sentença homologatório da medida de recuperação. Quanto ao crédito relacionado com a obrigação da ré de adquirir a participação social da autora na C., o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que, por não ser de considerar como “crédito pecuniário”, não estava abrangido pela medida de recuperação de empresa, e só surgirá quando as acções forem compradas, “ou seja, quando se realizar o contrato definitivo (que será realizado, conforme se sublinhou, através da condenação da ré na aquisição das acções)”.
Esta última decisão, no contexto em que surge, não foi considerada pelo Supremo Tribunal de Justiça como “questão nova”, nem como tal, efectivamente, pode ser considerada. Por isso, pode também afirmar-se não ter o acórdão recorrido feito aplicação da interpretação normativa cuja conformidade constitucional a recorrente pretende ver apreciada e que, na formulação da própria recorrente, consistiria em entender-se o artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil como possibilitando ao tribunal “optar por uma construção jurídica não prevista nem debatida pelas partes e, em especial, sem previamente ouvir sobre essa solução a parte a quem a mesma prejudique”. Também por este motivo o presente recurso seria inadmissível.
Entende-se, por último, não assumir a conduta processual da recorrente gravidade suficiente que justifique o seu sancionamento como litigante de má fé.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 4 de Novembro de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos