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Proc. n.º 246/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Foi, a fls. 533 e seguintes, proferida decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A., pelos seguintes fundamentos:
“[...]
10. Pretende o recorrente, em primeiro lugar, que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional da norma do artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado «no sentido de que os seus pressupostos hão-de necessariamente decorrer da formulação das conclusões, mormente o sentido de que a concisão das conclusões no que concerne ao preenchimento dos requisitos enunciados na redita norma não é o suficiente» (supra, 9.). Tal norma, no sentido apontado pelo recorrente, não foi porém aplicada na decisão recorrida (supra, 7.). Na verdade, a decisão recorrida limitou-se a interpretar o artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no sentido de que as conclusões da motivação determinam o âmbito do recurso (cfr. fls. 406), não decorrendo da referência que nessa decisão se faz a tal preceito legal a interpretação que o recorrente censura. Ora, sendo a aplicação, na decisão recorrida, da norma (ou interpretação normativa) cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto pelo recorrente –, conclui-se que não é possível conhecer do objecto do presente recurso, no que se refere à norma do artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação identificada.
11. Pretende o recorrente, em segundo lugar, que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional da norma do artigo 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no sentido de que «a rejeição aí prevista é incontrolável judicialmente, não permite o eventual aperfeiçoamento nem sequer necessita (...) de decisão fundamentada» (supra, 9.). Novamente se verifica que a decisão recorrida não aplicou o artigo 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação apontada pelo recorrente (supra,
7.). Na verdade, a interpretação apontada pelo recorrente pode, quando muito, referir-se ao artigo 412º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal, transcrito na decisão recorrida a fls. 407 (normas que, todavia, não são questionadas pelo recorrente). No que diz respeito ao artigo 420º, n.º 1, do mesmo Código, a decisão recorrida não perfilha tal interpretação: com efeito, este preceito legal é utilizado na decisão recorrida apenas para fundamentar a decisão de rejeição, por manifesta improcedência, do recurso da decisão sobre a matéria de facto (cfr. fls. 409). Assim sendo, conclui-se que não se mostra preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso (cfr. supra, 10.) e que, como tal, não é possível conhecer do respectivo objecto, no que se refere à norma do artigo
420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação apontada pelo recorrente.
12. Pretende o recorrente, finalmente, que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional da norma do artigo 566º, n.º 3, do Código Civil, na interpretação segundo a qual «é suficiente expor a natureza do juízo, isto é, bastando-se aquela [decisão recorrida] com o dizer que se aplica o instituto da equidade sem a integrar e dar um conteúdo ou sequer fundamentar a sua aplicação concreta». Quanto a esta concreta interpretação normativa, verifica-se que o recorrente não suscitou a respectiva inconstitucionalidade durante o processo, tendo tido oportunidade de o fazer. Na verdade, e como o próprio recorrente afirma no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal (supra, 9.), só no recurso e motivação para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão de 2ª instância e na reclamação do despacho de não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça suscitou questões de inconstitucionalidade (supra, 8.). Ora, de acordo com o disposto nos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, sobre o recorrente impendia o ónus de suscitar a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 566º, n.º 3, do Código Civil, na interpretação que identifica, antes de proferida a decisão recorrida (que é a do Tribunal da Relação do Porto) – por exemplo, na motivação do recurso para o Tribunal da Relação do Porto (supra, 3.). O recorrente podia perfeitamente ter cumprido esse ónus, atendendo a que na sentença do Tribunal Judicial de Vieira do Minho já tinha sido aplicado tal preceito (supra, 2.: cfr. fls. 322). Não tendo o recorrente cumprido tal ónus, verifica-se que, relativamente à norma do artigo 566º, n.º 3, do Código Civil, na interpretação identificada, também não se mostra preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso, não podendo consequentemente conhecer-se do respectivo objecto.
[...].”
2. Notificado desta decisão sumária, A. dela veio reclamar para a conferência (fls. 555 e seguintes), sustentando, em síntese, o que segue:
a) O acórdão recorrido ponderou a aplicação do artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal na interpretação questionada pelo reclamante, conforme resulta da seguinte passagem do texto respectivo: “O recorrente, como decorre das conclusões da respectiva motivação, acima transcritas, e com o conteúdo supra precisado, não cumpriu a imposição legal prevista nos n.º s 3 e 4, do citado artigo 412º. Assim sendo, a matéria de facto dada como provada, encarada, sob este ponto de vista, apresenta-se como inatacável”; b) O acórdão recorrido aplicou a norma do n.º 1 do artigo 420º do Código de Processo Penal, conforme decorre de duas passagens do texto respectivo: “... devendo ser rejeitado (artigo 420º, n.º 1, do CPP)...” e “Termos em que: a) se rejeita o recurso quanto à matéria de facto, por manifestamente improcedente
...”; c) Quanto à norma do n.º 3 do artigo 566º do Código Civil, o reclamante suscitou, de forma adequada, a sua inconstitucionalidade durante o processo, pois que o tribunal de 1ª instância não a aplicou de forma clara (cfr. § 5 do ponto 9 da respectiva sentença), só o tendo feito o Tribunal da Relação; d) Mesmo que assim não se entendesse, “tal interpretação fere o «Princípio da Defesa» consagrado na própria Constituição uma vez que se impede o conhecimento de uma decisão eventualmente contrária à Lei Fundamental, ou seja, permitiria a consolidação na ordem jurídica de uma violação desta quando em termos prático-processuais se conseguiria dirimir e sindicar”.
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu à referida reclamação (fls. 560 e seguinte), sustentando a sua manifesta improcedência nos seguintes termos:
“[...]
2º - Assim – e quanto à primeira questão suscitada – é manifesto que a norma constante do n° 1 do artigo 412° não foi aplicada, com o sentido especificado pelo recorrente – limitando-se a Relação a extrair dela o sentido, óbvio e inquestionável, que o objecto de um recurso é delimitado pelo teor das conclusões da respectiva motivação.
3º - E não se questionando, sequer, a constitucionalidade da norma constante dos nºs 2 e 3 deste preceito legal – que, a nosso ver, constitui «ratio decidendi» da rejeição do recurso.
4º - Relativamente à outra questão de constitucionalidade colocada – quanto à norma do artigo 566°, n° 3, do Código Civil – para além de não se mostrar delineada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, não se vê onde tenha sido suscitada atempadamente e adequadamente a questão da respectiva desconformidade à Lei Fundamental.”
Cumpre apreciar. II
4. No requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 449 e seguinte), pretendeu o ora reclamante que este Tribunal apreciasse as normas dos artigos 412º, n.º 1, e 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal e, bem assim, do artigo 566º, n.º 3, do Código Civil, numa interpretação que não chegou na altura a especificar. Fê-lo depois na resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido pela relatora (fls. 529 e seguinte), nos seguintes termos:
a) A interpretação da norma do artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal seria aquela segundo a qual “os seus pressupostos hão-de necessariamente decorrer da formulação das conclusões, mormente o sentido de que a concisão das conclusões no que concerne ao preenchimento dos requisitos enunciados na redita norma não é o suficiente”; b) A interpretação da norma do artigo 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal seria aquela segundo a qual “a rejeição aí prevista é incontrolável judicialmente, não permite o eventual aperfeiçoamento nem sequer necessita – entendimento do Tribunal – de decisão fundamentada”; c) A interpretação da norma do artigo 566º, n.º 3, do Código Civil seria aquela segundo a qual “é suficiente expor a natureza do juízo, isto é, bastando-se aquela [decisão recorrida] com o dizer que se aplica o instituto da equidade sem a integrar e dar um conteúdo ou sequer fundamentar a sua aplicação concreta”.
5. Tendo assim o ora reclamante delimitado o objecto do recurso que interpusera, procedeu-se na decisão sumária à aferição da verificação dos respectivos pressupostos processuais, tendo-se concluído, pelos fundamentos aí expostos, que não era possível conhecer do objecto do recurso (supra, 1.). Na verdade, e quanto às duas primeiras interpretações normativas, o tribunal recorrido não as havia aplicado; quanto à terceira, a respectiva inconstitucionalidade não havia sido suscitada durante o processo.
6. A conclusão a que se chegou na decisão sumária ora reclamada não é minimamente abalada pela argumentação do reclamante.
Com efeito, e começando pela norma do artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não se vê em que medida da passagem do acórdão recorrido identificada pelo reclamante (supra, 2., a)) seja possível extrair que tal norma foi aplicada na interpretação segundo a qual “os seus pressupostos hão-de necessariamente decorrer da formulação das conclusões, mormente o sentido de que a concisão das conclusões no que concerne ao preenchimento dos requisitos enunciados na redita norma não é o suficiente” (supra, 4., a)). É que de tal passagem apenas decorre que o tribunal recorrido aplicou normas do artigo 412º, n.º s 3 e 4. Nenhuma referência é nele feita ao n.º 1 do mesmo preceito legal (o
único questionado pelo reclamante).
Em segundo lugar, é também inquestionável que dos outros trechos identificados pelo reclamante (supra, 2., b)) nenhuma conclusão pode extrair-se no sentido da aplicação da norma do n.º 1 do artigo 420º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual “a rejeição aí prevista é incontrolável judicialmente, não permite o eventual aperfeiçoamento nem sequer necessita – entendimento do Tribunal – de decisão fundamentada” (supra, 4., b)). Na verdade, não é possível vislumbrar tal interpretação na mera referência (constante do acórdão) à manifesta improcedência do recurso e consequente necessidade da sua rejeição.
Finalmente, alega o reclamante (supra, 4., c)) que não suscitou a inconstitucionalidade da norma do artigo 566º, n.º 3, do Código Civil durante o processo, porque só no acórdão recorrido (o da Relação do Porto: cfr. fls. 400 e seguintes) tal norma foi aplicada de forma clara. Invoca, como argumento a favor da falta de clareza da sentença da 1ª instância (a fls. 315 e seguintes), o § 5 do ponto 9 (supra, 2., c)).
Todavia, percorrendo a sentença da 1ª instância, não se alcança qual seja o § 5 do ponto 9. Mesmo admitindo que o reclamante pretenda referir, não o ponto 9, mas a página 9 dessa sentença (fls. 323), também não se vê como da menção, que daí consta, ao artigo 564º, n.º 2, do Código Civil, se pode extrair um qualquer argumento no sentido da alegada falta de clareza da sentença. De todo o modo, como bem refere o Senhor Procurador-Geral Adjunto, o ora reclamante não chegou a delinear, quanto à norma do artigo 566º, n.º 3, do Código Civil, uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa.
Finalmente, invoca o reclamante um argumento (supra, 2., d)) que, levado às últimas consequências, significaria a possibilidade de proferimento de uma decisão de mérito num recurso de constitucionalidade relativamente ao qual se não mostrassem preenchidos os pressupostos processuais, desde que o recorrente invocasse violação do “princípio da defesa”. Como essa hipótese não tem qualquer cabimento constitucional ou legal, é evidente a improcedência de tal argumento.
Não existem, portanto, razões para alterar a decisão sumária ora reclamada.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária que concluiu no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 15 de Outubro de 2003
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos