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Proc. n.º 392/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Foi, a fls. 180 e seguintes, proferida decisão sumária nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, através da qual se decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A.. É a seguinte a respectiva fundamentação:
“[...]
12. Constitui pressuposto processual do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto pelo recorrente – a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. No presente caso, pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie uma determinada interpretação dada aos artigos 375º, n.º 1, 412º, n.º 1, e 420º, n.º
1, todos do Código de Processo Penal, e ao artigo 71º, n.º 3, do Código Penal
(supra, 11.). Todavia, percorrendo o acórdão recorrido verifica-se que no respectivo texto nenhuma referência é feita a tais preceitos legais (supra, 9.). Também o acórdão da Relação de Guimarães, que o tribunal recorrido confirmou, não os menciona
(supra, 6.). Não admira que assim tenha sido, já que tais preceitos – como se refere no segundo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (supra, 10.) – «não contendem com a decisão assumida». Dito de outro modo, as questões de inconstitucionalidade que o recorrente pretende ver apreciadas e que suscitou no processo nenhuma relevância apresentam para a decisão recorrida, pelo que os preceitos legais a que se reportam não foram naturalmente aplicados.
É, portanto, manifesto que não pode conhecer-se do objecto do presente recurso, por falta de um dos seus pressupostos processuais: a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie.
[...].”
2. Inconformado com a mencionada decisão sumária, A. dela veio reclamar para a conferência (fls. 194 e seguintes), tendo, em síntese, sustentado o seguinte:
a) A circunstância de, no acórdão recorrido, não existir referência expressa aos preceitos legais indicados no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional não significa que tais preceitos não foram aplicados; b) Além disso, o Tribunal da Relação de Guimarães analisou “a fundamentação aplicada à medida da pena o mesmo é dizer [...] que se ateve, clara e inequivocamente, aos preceitos directamente implicados com tais questões a saber os artigos 71º n.º 3 do Código Penal e 375º n.º 1 do Código de Processo Penal”; c) Este último argumento é também “válido para as invocadas inconstitucionalidades das demais normas trazidas à colação em sede de recurso constitucional”; d) No acórdão da Relação de Guimarães refere-se: “O objecto do recurso é demarcado pelas conclusões da motivação – artº 412º do C.P.Penal. Conforme se anunciou no exame preliminar, o presente recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência”; assim sendo, foram aplicados os artigos 412º e 420º do Código de Processo Penal (este último de forma implícita); e) Ao aplicar tais normas, o tribunal recorrido fê-lo nas interpretações enunciadas nas várias peças dos autos; f) “Se bem que a decisão sumária não radica na interpretação mas tão só na não aplicação dos artigos que se requer a apreciação da constitucionalidade”; g) Do parecer do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães, página 2, último parágrafo, página 3, primeiro parágrafo, e conclusão do ponto 4 e 5, retira-se que tais artigos foram efectivamente aplicados; h) O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 169 a 171 (ou seja, o acórdão que conheceu da reclamação, por omissão de pronúncia, do acórdão ora recorrido) “apenas entende que as normas interpretadas são conforme a Constituição e não põe, salvo melhor opinião, em causa a sua aplicação”; i) Na decisão recorrida “concebeu-se a interpretação ora invocada pelo Reclamante e aplicaram-se as normas alegadas”, pelo que há que conhecer do objecto do recurso.
3. Notificado da mencionada reclamação, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional a ela veio responder nos seguintes termos (fls. 199):
“1º - A presente reclamação carece obviamente de qualquer fundamento.
2º - Sendo manifesto que a decisão recorrida não levou a efeito qualquer específica aplicação normativa dos preceitos indicados pelo recorrente, cuja precisa interpretação não curou, aliás, de enunciar no requerimento de interposição do recurso.
3º - Pelo que deverá naturalmente confirmar-se por inteiro, a decisão reclamada.”
Cumpre apreciar.
II
4. Recorde-se que, no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal (fls. 176), o recorrente pretendeu a apreciação da conformidade constitucional da interpretação dada pelo tribunal recorrido aos artigos 375º, n.º 1, 412º, n.º 1, e 420º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, e, bem assim, ao artigo 71º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
A interpretação questionada pelo recorrente não foi, porém, explicitada no requerimento de interposição do recurso.
Na decisão reclamada entendeu-se que não era possível conhecer do objecto do recurso, por falta de aplicação, na decisão recorrida, das normas impugnadas.
Tal falta de aplicação resultava evidente da circunstância de os preceitos legais indicados no requerimento de interposição do recurso pura e simplesmente não se encontrarem referidos no texto do acórdão recorrido (fls.
155 e seguintes) e no texto do acórdão da Relação de Guimarães (fls. 95 e seguintes), que aquele acabou por confirmar.
Não se encontrando, no texto do acórdão recorrido (em si ou integrado por outro acórdão), referência aos preceitos legais referidos pelo recorrente, mas tão só a outros preceitos legais, não se viu como poderiam as normas indicadas ter sido aplicadas na decisão recorrida.
Segundo o reclamante (supra, 2., a), e), f) e i)), não seria decisiva a circunstância de a decisão recorrida não conter referência explícita a preceitos legais. Dito de outro modo, o reclamante aceita a possibilidade de aplicação de uma interpretação normativa, ainda que os preceitos a que ela se reporta não surjam referenciados na decisão.
Todavia, ainda que seja de admitir que, em certas hipóteses de ausência de fundamentação legal de uma decisão judicial, não devam as partes ficar privadas da faculdade de recorrer, por impossibilidade de imputação, a uma certa interpretação, dos correspondentes preceitos legais, a verdade é que uma interpretação normativa é-o sempre de determinados preceitos legais e, como tal, quando os preceitos a que aquela alegadamente se reporta não surgem referenciados na decisão, constitui-se uma forte presunção de que tal interpretação não foi acolhida.
Ora, no caso em apreço, tal presunção não é minimamente ilidida pela argumentação do reclamante.
5. Desde logo, não se alcança por que motivo a circunstância de o Tribunal da Relação de Guimarães ter analisado “a fundamentação aplicada à medida da pena” significa “que se ateve, clara e inequivocamente, aos preceitos directamente implicados com tais questões a saber os artigos 71º n.º 3 do Código Penal e 375º n.º 1 do Código de Processo Penal” (supra, 2., b) e c)).
O artigo 71º, n.º 3, do Código Penal determina que “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”; por seu lado, o artigo 375º, n.º 1, do Código de Processo Penal, estabelece nomeadamente que “a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada [...]”.
Quando um tribunal analisa “a fundamentação aplicada à medida da pena” – para usar as palavras do recorrente –, tal não significa necessariamente que ele esteja a perfilhar uma determinada interpretação normativa daqueles preceitos. Vislumbrar em qualquer acto de um tribunal – no caso, a sentença condenatória – a adopção de uma determinada interpretação normativa dos preceitos que regulam esse acto equivale a esbater a diferença entre decisão judicial e norma ou interpretação normativa (o que é decisivo para determinar a admissibilidade do recurso de constitucionalidade) e, sobretudo, a aceitar que o recurso de constitucionalidade pudesse ter um objecto indeterminado (no caso dos autos, por exemplo, todos os preceitos legais relativos à fundamentação da decisão relativa à medida da pena poderiam ser considerados, e não apenas os indicados pelo recorrente).
6. Também irrelevante se mostra o argumento que se alicerça na referência, no acórdão da Relação de Guimarães, à circunstância de que o objecto do recurso é demarcado pelas conclusões da motivação, nos termos do artigo 412º do Código de Processo Penal, e, bem assim, à decisão de rejeição do recurso por manifesta improcedência: segundo o reclamante, tal referência significaria que foram aplicados os artigos 412º e 420º do Código de Processo Penal (supra, 2., d)).
Recorde-se que, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, o ora reclamante havia pedido a apreciação da norma do artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, preceito que estabelece que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Não se alcança como pode o reclamante extrair da afirmação de que o objecto do recurso é demarcado pelas conclusões da motivação a ilação segundo a qual o tribunal recorrido adoptou um determinado sentido do mencionado artigo
412º, n.º 1 – sentido que aliás o recorrente não curou de explicitar. A única interpretação que eventualmente poderia estar em causa seria a de que as conclusões delimitam o objecto do recurso, mas tal interpretação também nunca foi questionada pelo recorrente durante o processo.
Recorde-se ainda que, no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, o reclamante havia pedido a apreciação da norma do artigo
420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, numa interpretação que não chegou a explicitar. Tal preceito determina que “o recurso é rejeitado sempre que for manifesta a sua improcedência ou que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do artigo 414º, n.º 2”.
Ora, da referência à necessária rejeição do recurso por manifesta improcedência não se retira que o tribunal recorrido tenha perfilhado certa e determinada interpretação do assinalado artigo 420º, n.º 1. Tal referência apenas significa uma decisão de rejeição de um recurso, em si mesma insusceptível de constituir objecto de recurso para o Tribunal Constitucional.
7. Igualmente irrelevante se mostra o argumento segundo o qual do parecer do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães, página
2, último parágrafo, página 3, primeiro parágrafo, e conclusão do ponto 4 e 5, se retiraria que os artigos impugnados foram efectivamente aplicados (supra, 2., g)).
Na medida em que os elementos identificados pelo reclamante não coincidem com tal parecer (cfr. fls. 87 e seguinte), julga-se que apenas pode estar em causa a resposta do Ministério Público de fls. 145 e seguintes.
Ora no último parágrafo da página 2 de tal resposta (fls. 146) diz-se simplesmente: “Afigura-se-me suficiente a fundamentação no que tange à escolha da medida da pena como ressalta de fls. 60, onde não existe uma remissão para conceitos abstractos”.
E no primeiro parágrafo da página 3 diz-se: “Por isso se me afigura que não existe qualquer inconstitucionalidade conforme vem alegado pelo recorrente”.
Finalmente, na 4ª e 5ª conclusões (fls. 148) afirma-se: “Invoca o recorrente contradições, erro notório na apreciação da prova, falta de especificação ou enumeração dos factos não provados, omissão do dever de fundamentação na determinação da medida da pena e inconstitucionalidade dos arts. 375º, n.º 1 CPP e 71º, n.º 3, do CP na interpretação que a fundamentação exigível na escolha da pena se basta com a remissão para os conceitos abstractos definidos no Código Penal”; “Não se verificam os motivos invocados como fundamento do presente recurso pelo recorrente”.
É nítido que tal parecer não se pronuncia sobre a aplicação, pelo tribunal recorrido (no caso, pelo Tribunal da Relação de Guimarães), dos preceitos legais que o reclamante identificou no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, em si mesmos considerados ou enquanto objecto de determinada interpretação. Por isso, é impossível extrair de tal parecer qualquer argumento relevante para a apreciação da correcção da decisão sumária ora reclamada.
8. Finalmente, alega o reclamante que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 169 a 171 (ou seja, o acórdão que conheceu da reclamação, por omissão de pronúncia, do acórdão ora recorrido) “apenas entende que as normas interpretadas são conforme a Constituição e não põe, salvo melhor opinião, em causa a sua aplicação” (supra, 2., h)).
Ora é evidente que, com este argumento, não pode o reclamante pretender demonstrar que no acórdão recorrido foram aplicadas as normas contidas nos preceitos legais por si identificados no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal. Na verdade, basta ler o acórdão que conheceu da reclamação, por omissão de pronúncia, do acórdão ora recorrido, para verificar que, nele, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que não houvera lugar (por desnecessidade) a “pronunciamento expresso sobre as alegadas inconstitucionalidades”, bem como que (como, aliás, já se disse na decisão sumária ora reclamada), os preceitos invocados pelo reclamante não contendiam com a decisão assumida.
Sendo improcedente toda a argumentação do reclamante, conclui-se não existirem razões para alterar a decisão sumária, que assim se mantém.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação, mantendo a decisão sumária reclamada, que concluiu no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 8 de Outubro de 2003
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos