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Proc. n.º 367/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em Abril de 2002, A. interpôs, junto do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, recurso contencioso de anulação da deliberação do Conselho Regional do Norte da Câmara dos Solicitadores, de 15 de Janeiro de 2002, que não admitiu a sua inscrição como solicitadora, por entender que a requerente, sendo funcionária judicial, estava impedida de exercer a profissão de solicitadora, nos termos do artigo 88º, n.º 1, alínea e), do Estatuto dos Solicitadores
(aprovado pelo Decreto-Lei n.º 8/99, de 8 de Janeiro).
A. imputou ao acto impugnado o vício de violação de lei, por violação do artigo 49º, alínea b), do Estatuto dos Solicitadores (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 483/76, de 19 de Junho) e do artigo 2º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 8/99, de 8 de Janeiro.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de que o recurso não merecia provimento, nos seguintes termos (fls. 36 v.º e seguinte):
“[...] àquela data, e para os funcionários judiciais, que é o que aqui importa, vigoravam:
a) para além do art. 49º, alínea b) do Estatuto dos Solicitadores aprovado pelo Dec-Lei nº 483/76, de 19/6, que impunha como condição para a inscrição, o ser-se cidadão português, maior de 21 anos e ainda... ser escrivão de direito com pelo menos dez anos de serviço dessas funções e classificação no mínimo de Bom, e
b) o art. 7º do Dec-Lei nº 364/93 de 22/10 (produzido ao abrigo de autorização legislativa concedida pela Lei nº 54/93, de 30/7) diploma que alterou a Lei Orgânica das Secretarias Judiciais e o Estatuto dos Funcionários de Justiça (entretanto revogado pelo Dec-Lei nº 343/99, de 26/8) que veio estabelecer, claramente que: «os secretários judiciais, os secretários técnicos os escrivães de direito e os técnicos de justiça principais têm direito após cessação de funções à inscrição na Câmara dos Solicitadores nos termos previstos no respectivo estatuto sem prejuízo de direitos já adquiridos por oficiais de justiça» [...].
Isto é, era condição para a inscrição dos funcionários judiciais a cessação de funções, o que, no caso em apreço, se não verifica. Tal equivale a dizer que, ainda que por diferentes motivos, a inscrição da aqui recorrente na C.S. não pudesse ocorrer e não deve, por isso, ser censurada a decisão recorrida. E é irrelevante, «in casu», a posterior revogação daquele Dec-Lei nº 364/93, pelo Dec-Lei nº 343/99, de 26/8 (cfr. seu art. 2º), pois o regime a ter em conta e aplicável é o anterior à entrada em vigor do Dec-Lei nº 8/99 (13/1/1999). Acresce considerar que ainda que assim se não entendesse, isto é, que não teria aqui aplicação o art. 7º do Dec-Lei nº 364/93, de 22/10, por ter sido expressamente revogado pelo Dec-Lei nº 343/99 de 26/8 (seu art. 2º) importa atentar que aquele art. 7º, editado ao abrigo de autorização legislativa da Assembleia da República, que é quem detém competência relativa para legislar em matéria respeitante a associações públicas como é a C.S. (cfr. art. 1º do Dec-Lei nº 8/99) o referido art. 7º, como dizíamos não podia ser revogado por Dec-Lei do Governo (como é o Dec-Lei nº 343/99) produzido sem autorização legislativa. E daí que seja organicamente inconstitucional aquele art. 2º do Dec-Lei nº
343/99, de 26/8, por força do disposto nos arts. 168º, nº 1, u) da C.R.P.
(versão da Lei nº 1/89) e 165º, nº 1, s) também da C.R.P. (versão da Lei Constitucional nº 1/97). Nunca poderia, pois, aplicar-se, por ser inconstitucional (cfr. art. 4º, nº 3 do E.T.A.F.) o Dec-Lei nº 343/99, na parte em que revoga o art. 7º do Dec-Lei nº
363/93, preceito legal este que assim e por isso, vigorava à data da prolação do acto recorrido, obstando à inscrição da recorrente, por se manter no exercício de funções judiciais.
[...]”.
2. Por sentença de 13 de Janeiro de 2003 (fls. 38 e seguintes), o Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, negou provimento ao recuso, por considerar que o ato impugnado não padecia do vício de violação de lei que lhe fora imputado, com a seguinte fundamentação jurídica:
“[...]
A recusa da inscrição funda-se apenas no facto de a recorrente ser funcionária judicial, estando, por isso, impedida de exercer a profissão de solicitador, nos termos do art. 88º, n.º 1, al. e), do DL n.º 8/99.
A questão é, pois, a de saber se a incompatibilidade de exercício constitui também um obstáculo à própria inscrição na Câmara.
[...]
[...] com a publicação do DL nº 317/87, de 12/11 (Lei Orgânica das Secretarias Judiciais), foi regulada no seu art. 204°, toda a matéria que a norma do artigo
49°, al. b) do ES regulava, alargando ainda expressamente o leque de categorias de funcionários de justiça com direito à inscrição na Câmara dos Solicitadores. Por sua vez, o DL nº 364/93, de 26/08, que alterou o DL nº 376/87, condicionou, no seu artigo 7°, a inscrição à cessação do exercício das respectivas funções, nestes termos:
«os secretários judiciais, os secretários técnicos, os escrivães de direito e os técnicos de justiça principais têm direito, ‘após cessação de funções’, à inscrição na Câmara dos Solicitadores nos termos previstos no respectivo estatuto (...)». Tendo presente a doutrina do artigo 7°, n° 2, do Código Civil, deve considerar-se que, face aos artigos 204° do DL 376/87 e 7° do DL 364/93, a al. b) do artigo 49° do ES foi tacitamente revogada, pois esta não é norma especial relativamente àquelas, já que todas elas se destinam a regular a mesma matéria – o direito de inscrição de determinada categoria de pessoas. Era, pois, o regime de inscrição dos funcionários de justiça estabelecido pelo DL 364/93 que vigorava quando foi publicado o DL nº 8/99, o qual, revogando, embora, o ES, estipula no seu artigo 2°, nº 2, que «A aplicação do presente Estatuto não prejudica a manutenção do regime de inscrição e de estágio na Câmara por um período de três anos», pelo que o ES foi revogado com excepção das
«disposições relativas ao estágio e inscrição, que se mantêm em vigor, nos termos do nº 2 do artigo 2°» (art. 3°, al. b)). O que significa que o regime de inscrição mantido em vigor pelo DL nº 8/99 só permitia, à data da entrada em vigor deste, a inscrição dos referidos funcionários após cessação de funções. Porém, aquele DL 364/93 foi revogado expressamente pelo DL nº 343/99, de 26/8
(art. 2°), não vigorando, portanto, à data do acto recorrido, pelo que, nesta data, em face dessa revogação, que não tem efeitos repristinatórios (cfr. nº 4 do artigo 7° do Código Civil) sobre o artigo 49°, al. b) do ES, ao contrário do que pretende o recorrente, nenhuma das referidas categorias de funcionários mantinha o direito à inscrição na Câmara, mesmo após a cessação de funções. Acontece que o citado artigo 7º do DL 364/93, editado ao abrigo de autorização legislativa da Assembleia da República, que detém competência relativa para legislar em matéria respeitante a associações públicas, como é o caso da Câmara dos Solicitadores, não podia ser validamente revogado por Decreto-Lei do Governo sem prévia autorização legislativa do Parlamento – autorização, que porém, não invoca.
É, assim, organicamente inconstitucional, dado que, interferindo com os requisitos de inscrição na Câmara dos Solicitadores, não foi precedido de autorização legislativa da Assembleia da República, que detinha competência relativa para legislar sobre a matéria – cfr. Constituição da República Portuguesa, artigo 168°, nº 1, al. u) (versão da Lei 1/89) e 165°, nº 1, al. s), versão da Lei Constitucional nº 1/97. E daí que se deva aplicar o citado artigo 7° do DL nº 364/93, pelo que a recorrente só teria direito à inscrição após cessação de funções. Por tudo o que fica exposto, seja porque, dada a evolução legislativa referida, não havia, à data do despacho recorrido, lei que conferisse à recorrente o direito de inscrição na Câmara dos Solicitadores, seja porque, sendo inconstitucional o artigo 2° do DL 343/99, na medida em que revoga o art. 7º do DL 364/93, não pode ser aplicado (cfr. artigo 4°, n° 3 do ETAF), assim se mantendo em vigor aquele artigo 7°, a recorrente só poderia obter a inscrição na Câmara dos Solicitadores após a cessação de funções, de acordo com o art. 1° do DL 364/93, improcede na totalidade o presente recurso contencioso, assim se absolvendo a entidade recorrida.
[...]”.
3. É desta decisão que o Ministério Público vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional (requerimento de fls. 47), nos termos do artigo 70º, n.º
1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da norma contida no artigo 2º do Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, que o Tribunal Administrativo do Círculo do Porto julgou inconstitucional por violação do artigo 165º, n.º 1, alínea s), da Constituição (versão de 1997).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 96.
4. Nas alegações que apresentou, concluiu assim o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional:
“1º - Situa-se no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República a definição do regime atinente à inscrição em qualquer associação pública, nomeadamente no que se refere às condições em que é lícito aos funcionários de justiça obter inscrição na Câmara dos Solicitadores.
2º - Tal regime mostrava-se definido, em termos transitórios, no artigo 7° do Decreto-Lei n° 364/93, na sequência da autorização legislativa outorgada pela Lei n° 54/93, de 30 de Julho.
3º - Pelo que não era admissível que o actual estatuto dos funcionários de justiça, aprovado pelo Decreto-Lei n° 343/99, de 26 de Agosto, no uso das competências legislativas próprias do Governo, tivesse procedido à derrogação daquela norma transitória, atinente às «associações públicas».
4º - Assim, a norma revogatória que consta do artigo 2° do citado Decreto-Lei n°
343/99 deverá ser interpretada, em conformidade com a Constituição, em termos de a genérica revogação por ela operada não atingir o referido regime de inscrição dos funcionários judiciais na Câmara dos Solicitadores, tal como se mostra transitoriamente fixado no artigo 7° do Decreto-Lei n° 364/93, em conjugação com o Estatuto dos Solicitadores.”
Por sua vez, o Conselho Regional do Norte da Câmara dos Solicitadores formulou as seguintes conclusões:
“A) Bem andou a sentença recorrida ao julgar organicamente inconstitucional o Decreto-Lei nº 343/99, de 26 de Agosto, com fundamento em violação da reserva relativa da Assembleia da República em matéria de associações públicas, constitucionalmente prevista no artigo 165º nº 1 al. s); B) Em bom rigor, o artigo 2º do Decreto-Lei nº 343/99, de 26 de Agosto, ao proceder à revogação em bloco do Decreto-Lei nº 364/93, de 22 de Setembro, especialmente a norma que condiciona a inscrição na Câmara dos Solicitadores à verificação da condição de cessação de funções, consubstancia uma clara intervenção legislativa incidente sobre matéria de acesso às associações públicas, neste caso concreto à Câmara dos Solicitadores (nº 1 do artigo 1º do Estatuto dos Solicitadores); C) Com efeito, ao versar (sem a necessária habilitação) sobre matérias constitucionalmente reservadas à Assembleia da República – e apenas nessa parte
– aquele diploma viola claramente a reserva relativa pertença daquele órgão de soberania (cfr. artigo 165º nº 1, al. s) da CRP), pelo que, repita-se, padece do vício de inconstitucionalidade formal parcial e consequente nulidade, também ela parcial, circunscrita unicamente à alteração, por revogação, do regime legal de acesso à Câmara dos Solicitadores. D) O artigo 2º do Decreto-Lei nº 343/99, de 26 de Agosto, não pode ser interpretado, em conformidade com a Constituição, no sentido de a genérica revogação por ele operada excluir o artigo 7º do Decreto-Lei nº 364/93, porquanto tal interpretação não tem qualquer correspondência com a letra e a vontade do legislador.”
Cumpre apreciar.
II
5. O presente recurso foi interposto pelo Ministério Público ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade constitucional da norma contida no artigo 2º do Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, que o Tribunal Administrativo do Círculo do Porto se recusou a aplicar, nos termos do artigo 204º da Constituição, por entender que tal norma viola o artigo 165º, n.º 1, alínea s), da Constituição (versão de 1997).
Tendo em conta a matéria discutida no processo, apenas pode estar em causa no presente recurso a apreciação da constitucionalidade da alínea e) do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, na parte em que determina a revogação do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 364/93, de 22 de Outubro (diploma que alterou a Lei Orgânica das Secretarias Judiciais e o Estatuto dos Funcionários de Justiça, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 376/87, de 11 de Dezembro).
A norma que constitui objecto do recurso tem o seguinte teor:
“Artigo 2º Norma revogatória São revogados:
[...] e) O Decreto-Lei n.º 364/93, de 22 de Outubro;
[...].”
Por sua vez, dispõe o artigo 7º do Decreto-Lei n.º 364/93, de 22 de Outubro:
“Artigo 7º Os secretários judiciais, os secretários técnicos, os escrivães de direito e os técnicos de justiça principais têm direito, após a cessação de funções, à inscrição na Câmara dos Solicitadores, nos termos previstos no respectivo Estatuto, sem prejuízo dos direitos já adquiridos por oficiais de justiça.”
6. O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre a constitucionalidade da norma questionada no presente recurso.
Fê-lo no Acórdão n.º 459/03, da 3ª Secção, proferido em 14 de Outubro, tendo concluído no sentido da inconstitucionalidade da referida norma, por violação do disposto na alínea s) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição.
É a seguinte a fundamentação do Acórdão n.º 459/03:
“[...]
4. No seu Acórdão n.º 347/92 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 23, págs. 99 e seguintes e no Diário da República I-A, de 3 de Fevereiro de
1992) o Tribunal teve já oportunidade de afirmar que «a definição de quem reúne as condições legais para se inscrever na Câmara dos Solicitadores inclui-se na reserva parlamentar, havendo, por isso, de constar de lei formal ou de decreto-lei do Governo, devidamente autorizado para o efeito». Esta afirmação foi proferida pelo Tribunal tendo em atenção o disposto no artigo
168º, n.º 1, alínea t), da Constituição, na versão resultante da primeira revisão constitucional (correspondente, após a segunda revisão, à alínea u) do mesmo artigo, e à alínea s) do n.º 1 do artigo 165º após a revisão de 1997), que reservava à Assembleia da República a competência para legislar sobre associações públicas, salvo autorização ao Governo. Assim, e uma vez que a norma do artigo 204º do Decreto-Lei n.º 376/87, de 11 de Dezembro, na parte em que alterou o artigo 49º do Estatuto dos Solicitadores, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 483/76, de 19 de Junho, sobre as condições de inscrição na respectiva Câmara, foi emitida sem a necessária autorização legislativa, o Tribunal Constitucional declarou, na sequência de três julgamentos de inconstitucionalidade (Acórdãos n.ºs 283/91, publicado no Diário da República, II série, de 24 de Outubro e 1991, 464/91 e 175/92, não publicados), a sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral:
«Ora, nos três acórdãos que o Ministério Público invocou para fundamentar o seu pedido, o Tribunal Constitucional entendeu ser a Câmara dos Solicitadores uma organização profissional de direito público, tendo presente o disposto no Estatuto dos Solicitadores.
Com efeito, resulta da leitura dos artigos 1º, nº 1, 2º e 8º deste diploma representar aquela Câmara todos aqueles que, no País, exercem a profissão de solicitador, ter por objectivo o estudo e a defesa dos interesses dos solicitadores nos aspectos profissional, moral e económico-social, e sobre eles exercer jurisdição disciplinar.
A Câmara é, por conseguinte, uma organização profissional de direito público na qual, por força do artigo 63º, nº 1, do Estatuto, têm de se inscrever todos os que pretendam exercer essa profissão.
Não só assim a qualificaram os citados acórdãos – e, anteriormente, se pronunciou semelhantemente a Comissão Constitucional, no seu parecer nº 1/78, publicado in Pareceres da Comissão Constitucional, 4º vol., págs. 139 e segs – como também desse modo a qualificam Freitas do Amaral
(Curso de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1987, pág. 373) e Jorge Miranda (As Associações Públicas no Direito Português, ed. Cognitio, 1985, pág.
20).
Na verdade, e independentemente das dúvidas que a conceituação de associação pública encerra, não está apenas em causa uma base pessoal, caracterizante do associativismo privado, mas ainda a prossecução de interesses radicados a nível de comunidade, cabendo-lhes o desempenho de tarefas que, por natureza, lhe confere um status político que, em primeira mão, competiria ao poder organizatório do Estado.
Com o reconhecimento constitucional que às associações públicas foi dado a partir da 1ª Revisão Constitucional (nº 3 do artigo 267º) o Estado confere aos interessados certos poderes públicos do que resulta a sua sujeição a um regime de direito público, com manifestações evidentes no acto de criação, na conformação organizatória e no controlo da legalidade dos actos. Quando, como é o caso, o mecanismo de administração mediata visa interesses onde predomina o substracto associativo, a associação assim criada reveste-se de estrutura corporativa [cfr. Rogério Ehrardt Soares, ‘A Ordem dos Advogados. Uma Corporação Pública’ in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, págs.
161 e segs. e as intervenções do deputado Vital Moreira na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional constantes do Diário da Assembleia da República, II Legislatura, 2ª sessão legislativa, nº 44, suplemento, de 27-1-82, pág.
904-(5), e nº 64, suplemento, de 10-3-82, pág. 1232(20)].
O Estatuto dos Solicitadores dispunha, no artigo 49º, sobre as condições indispensáveis para inscrição na respectiva Câmara, o seguinte:
‘Além de ser cidadão português, maior de 21 anos, são condições para inscrição na Câmara dos Solicitadores qualquer das seguintes: a) Ser licenciado ou bacharel em Direito, com diploma válido em Portugal;
b) Ser escrivão de direito com, pelo menos, dez anos de serviço dessas funções e a classificação mínima de BOM;
c) Ter sido julgado apto pelo grupo orientador de estágio, nos termos do artigo 48º’. Ora, o falado Decreto-Lei nº 376/77 veio, no seu artigo 204º, sob a epígrafe
‘Inscrição na Câmara dos Solicitadores’, preceituar diferentemente ao estabelecer:
‘Os secretários judiciais, os secretários técnicos, os escrivães de direito e os técnicos de justiça principais têm direito à inscrição na Câmara dos Solicitadores, independentemente de quaisquer requisitos, desde que possuam classificação não inferior a Bom’. Ou seja, os oficiais de justiça indicados no transcrito normativo – secretários judiciais e escrivães de direito na carreira judicial; secretários técnicos e técnicos de justiça principais, na do Ministério Público – desde que dotados de uma certa classificação mínima, a de Bom, passaram a poder inscrever-se na Câmara dos Solicitadores sem necessidade de licenciatura ou bacharelato em Direito ou de terem frequentado com aproveitamente o estágio organizado nos termos do artigo 38º do Estatuto de 1976, como então exigiam as alíneas a) e c) do artigo 49º desse texto.
E, simultaneamente, alterou-se o regime estabelecido pela alínea b) do mesmo normativo, o que provocou a dispensa da exigência nele contida – desempenho das funções de escrivão de direito durante, pelo menos, dez anos.
Considerando que a norma do artigo 204º foi editada ao abrigo da competência legislativa do Governo, em âmbito material não reservado à Assembleia da República [CR, artigo 201º, nº 1, alínea a), redacção comum à 1ª e
2ª Revisões Constitucionais], o Tribunal, nos três acórdãos citados, interrogou-se sobre a conformidade constitucional (orgânica) da iniciativa, no domínio da fiscalização concreta, tendo concluído desfavoravelmente mediante a utilização de um elenco argumentativo comum assim sintetizável (para além da natureza da Câmara como associação pública, já assinalada): a) a norma do artigo 204º veio dispor inovatoriamente sobre a inscrição de uma dada categoria de pessoas naquela Câmara; b) não obstante todos terem o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho – CR, artigo 47º, nº 1 – tal não impede que o exercício de determinadas profissões possa ser regulamentado e, designadamente, sujeito a inscrição nas organizações associativas dos respectivos profissionais, de natureza pública, a quem o Estado atribui os poderes de controlar o acesso à profissão, de fixar o seu código deontológico e de exercer competências disciplinares. A esta luz, a definição de quem reúne as condições legais para se inscrever na Câmara dos Solicitadores inclui-se na reserva parlamentar, havendo, por isso, de constar de lei formal ou de decreto-lei do Governo, devidamente autorizado para o efeito, o que, no caso, não se verificou. Nada se tem a objectar à orientação assumida pelas decisões em análise. A inovação afigura-se indesmentível, ao menos na parte em que afecta a alínea b) do artigo 49º do Estatuto, dispensado o requisito de tempo aí exigido para o exercício de funções como escrivão de direito. Por sua vez, a norma do artigo 47º, nº 1, da CR, não obsta à regulamentação do exercício da profissão de solicitador e, nomeadamente, à obrigatoriedade de inscrição dos interessados na Câmara, tida esta como associação profissional de natureza pública a que o Estado atribui poderes de controlar o acesso à profissão, de fixar o respectivo código deontológico e de exercer competências disciplinares, como, de resto, constitui jurisprudência deste Tribunal
(Acórdãos nºs. 46/84 e 497/89, publicados no Diário da República, II Série, de
13 de Julho de 1984 e de 1 de Fevereiro de 1990, respectivamente), e os Autores admitem (Rogério E. Soares, estudo citado, págs. 227 e segs.; Jorge Miranda, ob. cit., págs. 32 e segs.)».
5. Esta fundamentação vale plenamente para o presente recurso. Assim, e em primeiro lugar, não se colocam dúvidas de que, com o Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n.º 8/99, de 8 de Janeiro, em vigor à data em que foi aprovada a norma desaplicada (hoje, substituído pelo Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de Abril), se manteve a natureza de associação pública da Câmara dos Solicitadores, afirmada pelo Tribunal em relação ao Estatuto de 1976; note-se, aliás, que tal natureza foi expressamente proclamada pelo n.º 1 do artigo 1º do Estatuto de 1999. Assim, continuou a estabelecer-se que é a Câmara a associação representativa dos solicitadores (artigo 1º, n.º 1), e a atribuir-se-lhe, quer o objectivo de
«defender os direitos e interesses dos seus membros» (al. e) do artigo 3º, quer o exercício do poder disciplinar sobre os mesmos (al. g) do mesmo artigo 3º); e continuou a ser condição necessária do exercício da profissão de solicitador a inscrição na Câmara (al. b) do artigo 3º e n.º 1 do artigo 58º). Em segundo lugar, também não merece dúvidas o carácter inovatório da norma em apreciação neste recurso, uma vez que a revogação do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 364/93 faria desaparecer o requisito da «cessação de funções» para a inscrição na Câmara dos Solicitadores, requisito aliás cuja falta, como se sabe, foi decisivo no caso de que nos ocupamos. Valem, pois, as considerações expendidas no Acórdão n.º 347/92, atrás transcrito; assim, conclui-se, aqui também, pela inconstitucionalidade orgânica da norma em apreciação, norma que, apesar de regular os requisitos de inscrição numa associação pública, foi emitida pelo Governo sem a necessária autorização legislativa.
6. A terminar, cumpre observar que a alegação do Ministério Público, no sentido de que a norma revogatória que consta do artigo 2º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 343/99 «deverá ser interpretada, em conformidade com a Constituição, em termos de a genérica revogação por ela operada não atingir o referido regime de inscrição dos funcionários judiciais na Câmara dos Solicitadores, tal como se mostra transitoriamente fixado no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 364/93, em conjugação com o Estatuto dos Solicitadores», tem naturalmente implícita a consideração de que, a não ser adoptada tal interpretação, se justifica o juízo de inconstitucionalidade. O Tribunal Constitucional, porém, não acolhe tal posição, por entender que se não encontra na letra da lei apoio que permita proceder a uma interpretação conforme com a Constituição, nos termos propostos.”
É esta jurisprudência que aqui se reitera. Pelos fundamentos constantes do Acórdão n.º 459/03, para os quais se remete, conclui-se no sentido da inconstitucionalidade da norma questionada no presente recurso, por violação do disposto na alínea s) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional a norma constante da alínea e) do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, na parte em que revoga a norma do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 364/93, de 22 de Outubro, por violação do disposto na alínea s) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 28 de Outubro de 2003 Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Luís Nunes de Almeida