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Processo n.º 332/01
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional,
I. Relatório
1. No âmbito do processo executivo n.º 517/95, instaurado pela Câmara Municipal de Sintra, a correr termos no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa A., veio, em 18 de Setembro de 1995, deduzir oposição invocando que as taxas exigidas estavam “feridas de ilegalidade”, por a autarquia ter criado, “sob a designação de taxa, um verdadeiro imposto”, com isso violando a Constituição da República (artigo 168º, alínea i), na versão então vigente), “uma vez que não foi determinada pelo critério da área de ocupação das instalações na via pública”.
Nas suas alegações, a executada manteve a anterior argumentação e, invocando um aumento de 900% nas taxas cobradas pelo funcionamento de um posto de abastecimento de combustíveis na via pública, concluiu que
“a questão que nos presentes autos está sob análise é se, revelando-se ter havido um aumento elevadíssimo, de um ano para o outro, mantendo-se a contrapartida da utilização dos mesmos bens do domínio público, não estamos perante a imposição de um imposto que deveria, então, ser tratado pela Assembleia da República e não pela Assembleia Municipal da Câmara Municipal de Sintra.” Por sentença de 21 de Abril de 1997, do 2º Juízo do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, foi afastada a excepção de incompetência desse Tribunal suscitada pela Câmara Municipal de Sintra, e também a aferição do invocado (pela empresa executada) aumento desproporcionado de uma taxa administrativa, não porque não pudesse o tribunal fazê-lo em abstracto, mas porque não podia fazê-lo em concreto, tendo em conta que “a oponente nada concretizou sobre ‘aquilo’ que lhe proporciona o Município de Sintra, mediante a concessão da licença”. Em contrapartida, entendeu-se que a (denominada) taxa cobrada pelo município sintrense era, na verdade, um imposto, não porque nela não fosse divisável um
“vínculo sinalagmático”, de uma “contraprestação específica”, “de algo dado em troca” – que considerou verificar-se –, mas porque “no cálculo da taxa – para que esta o seja realmente –, se não pode prescindir do pressuposto de facto do tributo e adoptar critério não relacionado com ele.” Por isso, e na medida em que o elemento determinante da taxa era o número de postos de abastecimento – “o critério da mangueira” –, concluiu que tal era “incompatível com a natureza da taxa exigida”, conferindo “ao tributo as características de um verdadeiro imposto” (aqui citando Ramon Valdés Costa, Curso de Derecho Tributário, p. 164), pelo que, tendo o tributo em causa sido criado por mero regulamento municipal, tal implicaria “violação das disposições combinadas dos artigos 106º, n.ºs 2 e
3, e 168º, n.º 1, alínea i), da Constituição” e ainda “violação do princípio da prévia inscrição no Orçamento do Estado, exigido pelo artigo 17º, n.º 1, da Lei n.º 6/91, de 20 de Fevereiro (Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado).”
2. A Câmara Municipal de Sintra recorreu para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, mas o Magistrado do Ministério Público suscitou a excepção de incompetência hierárquica, nos termos dos “artigos 32º, n.º 1, alínea b), e 41º, n.º 1, alínea a) do ETAF e artigo 167º do Código de Processo Tributário”, por o recurso não ter por fundamento “exclusivamente matéria de direito”.
Por acórdão de 10 de Dezembro de 1997, a 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo veio a considerar-se incompetente, em razão da hierarquia, como preconizado pelo Ministério Público.
Foi então o recurso remetido para o Tribunal Central Administrativo – Secção de Contencioso Tributário, a requerimento da Câmara Municipal de Sintra.
Por acórdão de 6 de Julho de 1999, este Tribunal decidiu, com um voto de vencido, revogar a sentença recorrida e julgar a oposição improcedente por ter entendido que o
“critério que o sr. Juiz recorrido erigiu como determinante para qualificar as prestações exigidas à oponente – o método presuntivo de cálculo do tributo – não
[é] um elemento essencial típico do imposto mas antes um aspecto relativo à liquidação deste. Razão porque se entende ser mais correcta a qualificação de ‘taxa’ para a questionada prestação.
(...) taxa que se encontra devidamente prevista nos artigos 42º e 43º da tabela de Licenças e Taxas, aprovada em 20 de Outubro de 1989 e em vigor nessa autarquia desde 2 de Dezembro, do mesmo ano, tendo a liquidação da questionada taxa plena cobertura legal na alínea o) do artigo 11º da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro.”
3. Foi a vez de A. interpor recurso para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, iniciando as suas alegações com a delimitação da questão jurídica a decidir:
“Trata-se de saber se determinada taxa liquidada pela Câmara Municipal de Sintra
é juridicamente uma verdadeira taxa ou se antes se trata de um imposto oculto e inconstitucional por não ter tido na sua génese autorização parlamentar.”
Nas conclusões do recurso, a recorrente declarou que “desde sempre disse que o que ‘recebe’ é a possibilidade de utilizar o domínio público e que essa área de domínio público tem sido sempre a mesma desde antes de 1989, ou seja desde antes de se terem verificado os aumentos que considera injustificados”, pelo que o que teria de ser apreciado no processo era saber “se os aumentos são ou não injustificados e intoleráveis e se, nessa medida, perdem a sua natureza de taxa e devem ser considerados impostos”, já que “no caso em apreço ficou demonstrado que a Recorrida aumentou de um ano para o ano seguinte e em mais de 900% as taxas devidas pela utilização do domínio público municipal.” Assim, “[u]m aumento de tal modo desmesurado, sem qualquer outra contrapartida para além da referida e que já existia anteriormente, leva que se devam considerar tais taxas verdadeiros impostos com as consequências legal e constitucionalmente decorrentes.”
Contra-alegou a Câmara Municipal de Sintra no sentido de que “o alcance da decisão recorrida – tomar posição sobre a idoneidade do critério utilizado para a qualificação jurídica do tributo em causa e não mais” – implicava que “não deve ser conhecida a matéria vertida nas alegações da Recorrente que ultrapasse esse âmbito, designadamente a referente à questão de saber se o aumento verificado no montante das taxas a partir de 1989 é desproporcionado e configura, nessa medida um imposto inconstitucional.” Acrescentou, todavia, razões para uma tal actualização de taxas: “a inflação, a ponderação do factor de desgaste ambiental no domínio público decorrente da natureza dessas instalações [de abastecimento de combustíveis] e os custos inerentes à adaptação da estrutura e serviços prestados por esse facto, bem como o princípio do poluidor-pagador.”
Por acórdão de 11 de Outubro de 2000 da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, foi negado provimento ao recurso, confirmando-se o aresto recorrido, e escrevendo-se, designadamente:
“o acima referido e alegado ‘aumento desmesurado’ da taxa não pode alterar-lhe a sua natureza, para converter o tributo num imposto, podendo então brigar, em termos de constitucionalidade, com os princípios da proporcionalidade e da justiça, mas tal questão nem sequer vem levantada, em tal perspectiva, pelo recorrente.”
A recorrente veio “requerer o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade, bem como a rectificação de determinados erros materiais”, mas, tirando a correcção de uma data e uma referência bibliográfica, tal requerimento foi indeferido por acórdão de 14 de Março de 2001.
4. Veio então a recorrente interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional, “nos termos do art. 70º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro”, para apreciação da conformidade constitucional “das normas constantes dos artigos 42º e 43º da Tabela de Licenças e Taxas do Município de Sintra, aprovada em 20 de Outubro de 1989”, porquanto
“as mencionadas normas ao aumentarem, de 1988 para 1989, em mais de 900%, o valor das taxas aí previstas, procederam a um aumento de tal modo desmesurado e sem qualquer contrapartida que criaram desse modo um verdadeiro imposto sem a necessária credencial parlamentar ou seja, em violação do disposto no art. 165º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa.”
Admitido o recurso, a recorrente encerrou assim as suas alegações:
“1. Os tributos dos autos são devidos pela ocupação do domínio público municipal conforme resulta das disposições legais invocadas no documento que deu origem ao processo de execução fiscal n.º 527/95 e aos presentes autos (cfr. doc. de fls.
170 dos autos e artigos 42º n.º 1 a 4 e 43º n.º 1 a 4 da Tabela de Licenças e de Taxas da CMS, aprovada em 20 de Outubro de 1989 e em vigor desde 2 de Dezembro desse ano).
2. Tais tributos sofreram de um ano para o outro aumentos de 900%, de tal modo escandalosos e infundados que suscitaram da parte de um vereador da Câmara Municipal de Sintra o seguinte comentário constante de acta: Não consegui encontrar critério justificativo dos aumentos, penso que foi um pouco a olho por cento...
3. Na 1.ª instância foi revelado na matéria de facto provada que ‘a oponente nada concretiza sobre aquilo que lhe proporciona a ocupação da via pública pela qual lhe foi liquidada a dita taxa, designadamente a dimensão do terreno e respectivas utilidades’, que ‘Na sua petição a oponente nada concretiza sobre aquilo que lhe proporciona a concessão da licença pela qual lhe foi liquidada a dita taxa’ e que por isso ‘o tribunal está no caso dos autos impossibilitado de verificar se existe desproporção entre o que a ora Recorrente paga à Câmara Municipal de Sintra e o que desta recebe’.
4. A Recorrente desde sempre deixou bem claro que o que ‘recebe’ é a possibilidade de utilizar o domínio público e que essa área de domínio público tem sido sempre a mesma desde antes de 1989, ou seja antes de se terem verificado os aumentos que considera injustificados (cfr. artigos 17, 30 e 35 da oposição de fls. 3 e ss, dos autos).
5. Decorre do exposto que mantendo-se a prestação da Câmara Municipal de Sintra inalterada desde antes de 1989, nunca faltaram elementos para aferir se há ou não desproporção.
6. É errada a consideração de que as taxas previstas nos artigos 42º e 43º da tabela têm a sua justificação legal na al. o) do artigo 11º da Lei 1/87, de 6 de Janeiro, sendo que a única base legal para a cobrança deste tipo de taxa há-de assentar na al. c) do referido artigo 11º e não em qualquer outra disposição.
7. As taxas referidas nos artigos 42º e 43º da tabela de taxas a que respeitam os autos foram já objecto de análise por este Colendo Tribunal, que julgou já inconstitucional a norma do n.º 5 do artigo 42º da tabela de taxas da CMS, por violação do artigo 168º n.º 1, al. i) da CRP na versão da Lei 1/89, de 8 de Julho (cfr. Acórdão n.º 515/2000 do TC de 29.11.00).
8. Apesar de se tratar nesse caso de um processo de impugnação judicial de taxas envolvendo um posto de abastecimento inteiramente localizado em propriedade privada, importa, não obstante, relembrar o que entendeu o TC após apreciar exactamente os mesmos factos que apreciou o M.º Juiz a quo: ‘...através de uma taxa como a que vem identificada nos autos, o obrigado ao pagamento não beneficia da utilização dos serviços de repartição ou funcionários municipais nem da remoção de qualquer obstáculo jurídico em causa. Assim,, a imposição da taxa em apreciação apenas pdoeria fundar-se na ocupação do domínio público...’
9. Nesse caso, como se disse, estava em análise o n.º 5 do artigo 42º da tabela de taxas (respeitante a instalações inteiramente em propriedade particular) tendo sido decidido que a taxa era ilegal por não haver qualquer contraprestação por parte da Câmara Municipal de Sintra, que nesses casos não se encontrou qualquer serviço ou actividade desenvolvida pela Câmara Municipal de Sintra que justificasse o pagamento de qualquer taxa.
10. Ora, se porventura essa taxa tivesse cabimento na al. o) este Colendo Tribunal não teria deixado de o reconhecer, considerando, em coerência, que a mesma taxa seria legal, já que a única diferença entre essa taxa prevista no n.º
5 do artigo 42º da tabela de taxas e as que estão em discussão nos autos é que, estas últimas, pressupõem e remuneram a utilização do domínio público municipal, e nessa perspectiva as mesmas têm assento legal na al. c) do artigo 11º da lei
1/87 e não em qualquer outra norma.
11. O Supremo Tribunal Administrativo apreciou o presente pleito e nele fez aplicação das normas constantes dos artigos 42º e 43º da Tabela de Licenças e Taxas do Município de Sintra, aprovada em 20 de Outubro de 1989, normas que entende a ora recorrente serem inconstitucionais.
12. O elemento comparativo económico serve hoje como indicador de segurança dos particulares contra eventuais abusos nos valores cobrados pelas taxas, considerando-se hoje que não há taxa mas sim imposto, quando os montantes cobrados a título de taxas sejam exageradamente elevados, isto é, quando não haja um mínimo de proporcionalidade.
13. Ora, no caso em apreço ficou demonstrado que a Recorrida aumentou de um ano para o ano seguinte e em mais de 900% as taxas devidas pela utilização do domínio público municipal, aumento de tal modo desmesurado, sem qualquer outra contrapartida para além da referida e que já existia anteriormente, que leva a que se devam considerar tais taxas verdadeiros impostos com as consequências legal e constitucionalmente decorrentes.
14. Na verdade, o seu valor assaz elevado revela uma clara desadequação entre aquilo que é pago e a contraprestação de que beneficia a ora Recorrente, pelo que deve aceitar-se sem reservas que o tributo em questão é um imposto e não uma taxa e, nessa medida, inconstitucional.
15. Assim decidiu o Tribunal Constitucional, designadamente, nos seguintes Acórdãos: Ac. de 06.10.92, in DR II Série, de 18.02.93; e Ac. de 16.03.94, in DR II Série, de 07.05.94. e num caso muito semelhante ao dos autos, no Ac. n.º
473/99/T.Const - Processo 748/98, publicado no DR n.º 262 II Série de 10/11/99, a respeito da ‘taxa de peste suína’.
16. Ainda que do ponto de vista dogmático entenda este colendo tribunal que um aumento intolerável não descaracteriza a taxa enquanto tal, transmutando-a em imposto, não se pode é em todo o caso aceitar que, se assim for, não se afira nos presentes autos se o tributo viola, no mínimo, o princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado nos artigos 18º n.º 2 e 266º n.º 2 da CRP alegando-se que não resultam dos autos elementos que o permitam fazer, tal como erroneamente fizeram todas as instâncias até ao presente, já que basta, para o efeito, comparar as tabelas de taxas para constatar que, de 1988 para 1994, pela ocupação da mesma exacta área de domínio público, a Recorrente viu aumentar a taxa a pagar em mais de 900%, sem que tenha havido qualquer justificação para tal aumento.
17. Assim, e caso não se entenda que o tributo é de considerar um verdadeiro imposto pelos motivos supra expostos, há que pelo menos concluir com base no que adiante se dirá, que o mesmo viola frontalmente o princípio da proporcionalidade e, além deste, os princípios da igualdade, da justiça, e da boa fé.
18. A licença de uso privativo do domínio público constitui um título de fruição de propriedade pública, constitutivo de mera faculdade de ocupação, sendo que através do licenciamento em causa a Administração potencia a extracção de potencialidades acessórias nos bens da sua dominialidade beneficiando por esta via a prossecução do interesse público do abastecimento de carburantes às populações dando assim satisfação concreta às necessidades colectivas destas.
19. Ora, aceite que os bens de domínio público são meios de acção administrativa submetidos à disciplina do direito público, as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar (cfr. artigo 5º do CPA).
20. Como corolários deste princípio, e no confronto com a esfera jurídica do particular, a actuação administrativa deve apresentar-se adequada, ou seja, apta
à prossecução do interesse público visado; necessária, ou seja necessária ou exigível por qualquer outro meio não satisfazer o interesse público visado; e proporcional (em sentido estrito, ou seja proporcional e justa em relação ao benefício alcançado para o interesse público: proporcionalidade custo-benefício).
21. No caso dos autos, uma vez que está a ser utilizado um bem do domínio público poderia aceitar-se que a taxa em causa configuraria uma taxa de ocupação face à circunstância de ocorrer a essa prestação específica por parte da CMS, ou seja, por ocorrer uma cedência de espaço público para os fins prosseguidos pela Recorrente.
22. Ora, em termos do citado princípio da proporcionalidade para além de resultar claro nos autos que no ano anterior ao da entrada em vigor da tabela de taxas a Recorrente pagava apenas 30.000 escudos a título de taxas e passou a pagar 300.000 escudos, o que por si só implica uma desproporção manifesta é a mera circunstância de a edilidade taxar cada bomba de carburante em 300 000$00 a partir de 89, que gera ilegalidade da norma impugnada.
23. Com efeito, ao utilizar este critério, a norma onde se prevê a taxa esquece e despreza em absoluto o caracter sinalagmático da taxa, pois, na verdade, ignora a respectiva contraprestação consistente no fornecimento de um espaço público para exercício da actividade das Recorrentes e que objectivamente tem um determinado numero de metros quadrados (sendo a cedência deste número de metros quadrados a sua contraprestação na relação pela qual tem direito à exigência da taxa).
24. Este critério, assente numa pura manifestação de capacidade contributiva, ofende claramente o princípio da proporcionalidade e evidencia a ausência de sinalagma no tributo previsto na norma impugnada.
25. Em suma, o aumento de 30 para 300 mil escudos em cada ano configura, seguramente, a referida desproporção do aumento da taxa no confronto com os meios – que se mantêm inalterados – de taxa por uso privado do domínio público, em ordem a satisfazer o abastecimento público de combustível, interesse público prosseguido pela autarquia através das instalações da Recorrente e de instalações semelhantes (neste sentido cfr. Ac. Trib. Central Administrativo de
06.03.01. tirado no recurso 3223/00).
26. Acresce ainda referir que, no exercício da sua actividade, em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se seguindo as regras da boa fé (artigo 6º-A do CPA), devendo a Administração abster-se de comportamentos em contradição com o comportamento anterior quando este seja apto a criar a convicção no destinatário dos actos da administração de que não se lhe seguirá uma actuação contraditória gerando também por esse motivo a confiança em que a Administração irá prosseguir na mesma linha de actuação.
27. Confia-se a digna tutela e protecção legal pela proibição de venire contra factum proprium, de contradição directa entre a situação jurídica originada pelo
factum proprium praticado e o comportamento subsequente, em negação da actuação anterior, como ocorreu no caso dos autos, pelo facto da CMS se ter abstido de exigir o pagamento das taxas dos anos de 1989 a 1994, como resulta dos autos, e
é do conhecimento desse Tribunal Constitucional, criando por isso a expectativa jurídica de que os valores em causa iriam ser revistos, tanto mais que até se constitui uma comissão para estudar e apresentar um relatório sobre a matéria com proposta de novas tabelas.
28. No sentido de que a taxa em causa viola os princípios da justiça, da proporcionalidade e da boa fé vão aliás os doutos pareceres dos Drs. Robin de Andrade e do Prof. Saldanha Sanches, cujas cópias se juntam e dão por reproduzidas nos presentes autos.
29. Por fim, o caso dos autos configura ainda uma violação do princípio da igualdade pois que nos demais casos as taxas devidas por ocupação do domínio público camarário pois que não se utilizam critérios que apelem a manifestações de capacidade contributiva mas sim, como seria mais adequado, a metros quadrados.'
Por sua vez, as alegações da recorrida concluíam deste modo:
“1 – Vem o presente recurso do douto acórdão do Supremo Tribunal Administrativo o qual julgou improcedente o recurso interposto pelo aqui recorrente, confirmando a sentença proferida pelo Tribunal Central Administrativo, o qual julgou improcedente a oposição deduzida por A..
2 – Salvo o devido respeito, que é muito, a douta decisão do Supremo Tribunal Administrativo deve ser mantida uma vez que aplicou devidamente o direito aos factos.
3 – Em causa está a aplicação por parte da recorrida de uma taxa referente a uma instalação abastecedora de carburantes líquidos, ar e água pela ocupação da via pública.
4 – Em apreço está a questão de saber da idoneidade do critério utilizado para a qualificação jurídica do tributo em causa, estando assentes, por provada em 1ª instância a factualidade às mesmas respeitante, as questões relativas a propósito da existência de sinalagma e contraprestação específica.
5 – A questão em apreço é a de saber se os aumentos verificados são ou não injustificados e intoleráveis e se, sendo-o, em consequência os tributos perdem a sua natureza de taxa transmutando-se em impostos.
6 – Entende a recorrida que as quantias liquidadas consubstanciam uma verdadeira taxa, sendo evidente, e dado assente, o sinalagma existente entre o seu pagamento e a contrapartida prestada pelo Município e os aumentos verificados não conferem outra natureza ao tributo liquidado, mantendo-se as taxas devidas.
7 – E foi em estrita obediência à lei que a Assembleia Municipal decidiu aprovar nova tabela de taxas de acordo com a autorização conferida pelo art. 39º d) do D.L. 100/84 e 11º c) da Lei 1/87 de 6/01.
8 – A utilização do domínio público por particulares – uso privado – depende do consentimento prestado por parte da administração através da concessão de uma licença, a qual permite a satisfação de necessidades colectivas concretas - o abastecimento de carburantes pelas populações.
9 – Pressupõe-se a actividade administrativa de prestação de um serviço, remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares ou utilização de bens do domínio público por trás da taxa.
10 – Analisando a argumentação do recorrente conclui-se que entende estar em causa um imposto apenas e só por causa dos aumentos verificados, que na sua
óptica são desproporcionados e exagerados.
11 – O aumento verificado não é susceptível de converter uma taxa num imposto.
12 – As actualizações verificadas à Tabela da Taxas e referentes às instalações abastecedoras de carburantes líquidos e gasosos operado pelo Município de Sintra em 1989 não é desproporcional, tendo obedecido a critérios.
13 – Teve em linha de conta vários factores como sejam a inflação, a utilização de um bem do domínio público, o desgaste ambiental no domínio público pela utilização dessa estrutura, os custos inerentes à adaptação das estruturas e serviços prestados, os custos relativos às diligências que precedem a concessão da licença de funcionamento de um posto de abastecimento, o princípio do poluidor-pagador, entre outros.
14 – Para além disso, a actualização dos valores previstos na Tabela de Taxas de
1989 vem prevista no art.º 79º e remete para o índice de preços do consumidor publicado pelo Instituto Nacional de Estatística.
15 – E não foi violado qualquer princípio constitucional da confiança e boa fé pois que esse aumento era esperado e na proporção verificada.
16 – O pagamento dessas taxas tornou-se obrigatório desde a entrada em vigor da tabela de taxas a qual se encontra aprovada em obediência à lei e ao direito.
17 – Essa liquidação não é susceptível de ser suspensa nem à mesma podem ser abertas excepções.
18 – O não aumento durante alguns anos não poderia, naturalmente, criar a expectativa que os valores não eram devidos e que os mesmos não iriam ser actualizados, adequando-os à situação económica existente à data da revisão dos mesmos.
19 – Não foram afectados, porque respeitados num mínimo considerado suficiente, os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos.
20 – Não podemos esquecer que as instalações de combustíveis comportam uma enorme e permanente sobrecarga e factor de risco ambiental e são igualmente factor de risco público que não pode deixar de ser ponderado.
21 – Uma qualquer bomba de combustíveis representa um factor poluidor e de risco enorme, representando um desgaste para o domínio público, pois trata-se de uma actividade potencial ou efectivamente poluidora.
22 – Mais do que vantagens para o Município geram uma sobrecarga ambiental a qual implicou adaptar estruturas e serviços municipais, especializando-os de modo a minimizar os riscos ambiental, urbanístico e de segurança, muito maiores hoje em dia que em 1989, como acontece com as exigências decorrentes dos objectivos de qualidade de vida do agregado populacional e de defesa e protecção do meio ambiente.
23 – Tudo isto ponderado o aumento verificado é proporcional e adequado, mantendo-se exigíveis as taxas em apreço pelo uso privativo de terrenos sitos no domínio público, existindo sinalagma entre o seu pagamento e a contrapartida prestada pelo Município e os aumentos verificados não conferem outra natureza ao tributo liquidado.” Cumpre decidir. II. Fundamentos
5. Está em causa no presente recurso a inconstitucionalidade dos artigos 42º e
43º da Tabela de Licenças e Taxas do Município de Sintra, aprovada em 20 de Outubro de 1989. A invocada inconstitucionalidade destas normas já foi apreciada por este Tribunal, face à mesma exacta argumentação, estribada num aumento em mais de 900%, que converteria em imposto a taxa aí prevista, ou, em qualquer caso, violaria os princípios da proporcionalidade, igualdade, justiça e boa fé.
Assim, no Acórdão n.º 20/03 (publicado no Diário da República, II série, de 28 de Fevereiro de 2003), tirado nesta mesma 2ª secção, concluiu-se pela inexistência de inconstitucionalidade das normas em questão, escrevendo-se o seguinte, quanto à argumentação referida:
“As recorridas invocam a desproporcionalidade do tributo uma vez que, alegam, o seu valor subiu 900% o que ainda poderia ser autonomizado como questão de constitucionalidade material. Porém a decisão recorrida considerou que ‘em face do probatório faltam elementos que conduzam a considerá-la [a desproporcionalidade] verificada’ (...) nomeadamente a prova de quanto as recorridas pagavam em anos anteriores e há quanto tempo não eram actualizadas as taxas. Em face desta insuficiência não se afigura manifesto que exista uma desproporcionalidade que afecte critérios de justiça tributária.”
Ora, compulsados os factos considerados provados nas decisões de 21 de Abril de
1997, do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, e de 6 de Julho de 1999, do Tribunal Central Administrativo, verifica-se que tais elementos, que faltavam nessa outra decisão para poder considerar existente a referida desproporção, também não foram demonstrados no presente caso.
Pelo contrário: na primeira decisão o que se disse foi que “[n]a sua petição, o oponente nada concretiza sobre ‘aquilo’ que lhe proporciona a ocupação da via pública pela qual lhe foi liquidada a dita ‘taxa’, designadamente a dimensão do terreno e respectivas utilidades”; e na segunda o que se escreveu foi que “a oponente nada concretiza sobre ‘aquilo’ que lhe proporciona a concessão da
‘licença’ pela qual lhe foi liquidada a dita ‘taxa’”.
Tal como no referido Acórdão n.º 20/03, não há, pois – e ao contrário do que invoca a recorrente –, forma alguma de aferir a invocada desproporcionalidade do aumento, que não pode resultar, obviamente, só por si, da mera variação percentual, designadamente quando a recorrida invoca diversos factores que a teriam justificado.
Não só não se pode, pois, ajuizar sobre a progressão das taxas no tempo – podendo, aliás, caso o anterior valor tivesse sido fixado há (nem sequer muitos) anos, uma aumento de 900% ser mesmo insuficiente para corrigir os efeitos da desvalorização da moeda –, como não se pode ajuizar sobre a sua adequação relativa – por exemplo, face às taxas cobradas por outras utilizações do domínio público, como sejam a ocupação temporária por motivo de obras ou as esplanadas de café, para considerar apenas os exemplos referidos num dos Pareceres juntos aos autos pela recorrente.
6. De resto, como – a outro propósito, e com votos de vencido em relação à norma aí em causa – se escreveu no Acórdão n.º 410/00 (publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 2000), invocando jurisprudência anterior, “o carácter sinalagmático do nexo entre o pagamento desse tributo e a prestação da actividade pelo ente público não é descaracterizado se não existir equivalência económica, bastando, essencialmente, a correspondência jurídica”.
Seja como for, não havendo, no presente caso, sequer elementos para pôr em causa essa equivalência económica – designadamente, não bastando fazê-la corresponder
à que ocorria no ano anterior ao (ou ao próprio ano) do ajustamento de taxas, omitindo qualquer referência à sua evolução diacrónica e à comparação com outras taxas análogas –, não faz sentido ponderar uma alegada conversão de uma taxa em imposto, por causa de uma desproporção “que comprometa de modo inequívoco a correspectividade pressuposta na relação sinalagmática” (como se escreveu no citado Acórdão n.º 20/03), nem invocar violação dos princípios da proporcionalidade, igualdade, justiça e boa fé.
7. À excepção do dito princípio da proporcionalidade, estes princípios são, aliás, utilizados, num dos Pareceres juntos aos autos, sobretudo para fundamentar um pedido de declaração de ilegalidade das normas da Tabela de Taxas e Licenças da Câmara Municipal de Sintra, nos termos do artigo 62º, n.º 1, al. d) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril.
De todo o modo, não pode dizer-se que exista, nas normas em apreço, violação desses princípios, não resultando tal violação, nem da actualização do montante do tributo, nem do critério utilizado para determinar esse montante.
Quanto ao princípio da igualdade, releva sobretudo em sede de lançamento de impostos, sendo a ideia de justiça de que esse princípio é tributário servida, em matéria de taxas, pela intervenção do princípio da proporcionalidade (como forma de controlo da dissolução do sinalagma, nos termos já equacionados). De todo o modo, não se encontra, como fundamento da sua violação, qualquer alegação de disparidade de tratamento entre quem se apresentasse nas mesmas condições, não relevando o argumento de que “nos demais casos de taxas devidas por ocupação do domínio público camarário (...) não se utilizam critérios que apelam a manifestações de capacidade contributiva mas sim, como seria mais adequado, a metros quadrados”.
Na verdade, o critério adoptado é o mesmo para todos os postos de combustível e tanto pode revelar o nível de captação dos benefícios resultantes da localização do posto (índice eventualmente mais adequado à fixação da taxa do que o dos metros quadrados e claramente ligado ao número de postos de abastecimento) como ou o nível de pressão sobre as infra-estruturas (viárias, de água e saneamento básico, de fornecimento de energia eléctrica, etc.) e sobre o meio envolvente
(índices igualmente adequados à fixação da contrapartida). A intensidade da utilização das infra-estruturas e do domínio público é ainda, de certa forma, revelada por esse critério. Como se salientou no citado Acórdão n.º 20/2003, ele revela uma “maior intensidade da exploração económica”, à qual “corresponde uma igualmente mais intensa utilização do domínio público”, a qual é também mais desgastante.
Também não existe qualquer violação, nas normas em causa, do invocado “princípio de justiça” – segundo o qual seria “ilegal o preço que venha a ser fixado em contradição com as regras que o próprio sistema jurídico eventualmente estabeleça quanto à definição do que seja um preço justo”. Tal contradição está por demonstrar, considerando, designadamente, que, como se disse, o critério adoptado (“o critério da mangueira”) revela ainda a intensidade da utilização do domínio público, efectuada pelo particular.
E a violação do invocado “princípio da boa fé” – que se volve, em parte, no princípio da protecção da confiança que é um “elemento material” do princípio do estado de direito (cfr. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Teoria da Constituição, 1ª ed., Coimbra, 1998, págs. 248-259) – não resulta da mera actualização de taxas, para futuro (cfr. A. e ob. cit., p. 255), mormente quando o próprio princípio da proporcionalidade não pôde operar. Quanto à outra questão colocada a este Tribunal, e que poderia aqui ser enquadrada – respeitante à não cobrança das verbas devidas durante alguns anos e a um alegado venire contra factum proprium daqui resultante –, não cabe ela, como é evidente, nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional em recurso de constitucionalidade, que se limita ao controlo da conformidade constitucional de normas.
III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 42º e 43º do Regulamento da Tabela de Licenças e Taxas da Câmara Municipal de Sintra, aprovado em 20 de Outubro de 1989: b) Em consequência, negar provimento ao recurso e condenar a recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 28 de Outubro de
2003 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos