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Proc. n.º 410/03 TC - 1ª Secção Rel.: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - O Ministério Público junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa
(5º Juízo) recorre para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea g) da LTC, da sentença de fls. 76 e segs., com fundamento na contradição do que nessa sentença se decidiu relativamente à conformidade constitucional das normas
ínsitas nos artigos 3º e 16º do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa, publicado no Diário Municipal de 19/3/92 e publicitado no Edital n.º
35/92, e 24º e 25º da Tabela de Taxas, Licenças e outras Receitas Municipais, publicada no Edital 80/90; as duas primeiras normas teriam sido julgadas inconstitucionais pelo Acórdão n.º 346/2001 e a correspondente à última
(constante do artigo 18º da Tabela de Taxas e Outras Receitas da CML) pelo Acórdão n.º 63/99.
Nas suas alegações, conclui o Recorrente:
'1 - Conforme jurisprudência reiterada deste Tribunal Constitucional, não se enquadram no conceito jurídico-constitucional de 'taxa' as importâncias exigidas por quaisquer entidades públicas a um particular, como mera condição de remoção de um obstáculo jurídico à utilização dos seus bens próprios, sem lhe conferir direito à utilização de bens semi-públicos ou colectivos.
2 - Não constituindo 'contraprestação', susceptível de integrar aquele conceito, o mero exercício de actividades gerais de polícia por tais entes públicos, com vista à fiscalização do cumprimento pelo particular dos condicionamentos ou requisitos a certa e específica utilização dos bens de que é proprietário, estabelecidos por lei ou regulamento.
3 - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 3º e 16º do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa.'
Não houve contra-alegações.
Cumpre decidir.
2 - Nas suas alegações o Ex.mo Magistrado do Ministério Público restringe o objecto do recurso às citadas normas constantes dos artigos 3º e 16º do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa.
Compreende-se tal restrição uma vez que foram aquelas normas que, julgadas, na sentença recorrida, conformes à Constituição, fundamentaram a improcedência da impugnação judicial deduzida por A. contra a liquidação de uma 'taxa' devida pela renovação de licença de publicidade relativa à afixação nas paredes dos edifícios daquela empresa de placards e frisos iluminados identificativos do nome do hotel ali instalado; a razão da tributação - cuja conformidade constitucional foi posta em causa pela impugnante - assentou nessas normas, sendo que as restantes se limitam a estabelecer o montante da mesma 'taxa'.
Verifica-se, por outro lado, o pressuposto do recurso interposto - o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 346/2001, julgou inconstitucionais as normas em causa, em contrário do decidido na sentença ora impugnada.
3 - Não se vêem razões para alterar o juízo de inconstitucionalidade formulado no citado Acórdão n.º 346/2001.
Ali se escreveu:
'6. A questão de constitucionalidade suscitada neste processo foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional.
A propósito de normas paralelas constantes do Regulamento de Taxas e Licenças Municipais da Câmara Municipal de Guimarães, disse este Tribunal, no Acórdão nº 558/98 (publicado no Diário da República, II, nº 261, de 11 de Novembro de 1998, p. 16044 ss):
“[...]
É sabido que a doutrina portuguesa – que, neste particular, tem tido acolhimento na jurisprudência que, a propósito, é seguida por este Tribunal – tem realçado que a diferença específica entre «imposto» e «taxa» se situa na existência ou não de um vínculo sinalagmático que é apontado à segunda. Assim, o encargo característico das «taxas» representa como que, para se utilizarem as palavras usadas no Acórdão nº 654/93 (ainda inédito) «o ‘preço’ do serviço ou da prestação de um serviço ou actividade públicas ou de uma utilidade de que o tributado beneficiará (e sem aqui se olvidar que esse ‘preço’ não tem, necessariamente, de corresponder à contrapartida financeira ou económica do serviço prestado)». De outra banda, o «imposto», como se escreveu no Acórdão nº 313/92 (publicado na
2ª Série do Diário da República de 18 de Fevereiro de 1993), «constitui, por si, uma receita estadual – ou até da entidade pública legalmente habilitada a cobrá-lo – que não é directamente destinada à satisfação das utilidades do tributado como contrabalanço do usufruto dessa satisfação» (cfr., sobre o tema, por entre outros, Teixeira Ribeiro «Lições de Finanças Públicas», 267 e segs., e na «Revista de Legislação e Jurisprudência», 117º, 3727, 289 e segs., Soares Martinez, «Manual de Direito Fiscal», 34 e segs., Cardoso da Costa, «Curso de Direito Fiscal», 4 e segs., Braz Teixeira, Princípios de Direito Fiscal, 43 e
44, Alberto Xavier, «Manual de Direito Fiscal», 1º vol., 42 e segs., Maria Margarida Mesquita Palha, Sobre o conceito jurídico de taxa, publicado em Centro de Estudos Fiscais – Comemoração do XX Aniversário – Estudos, 2º Vol., 582 e segs., Sá Gomes «Curso de Direito Fiscal», 92 e segs. e, mais recentemente, Pitta e Cunha, Xavier de Basto e Lobo Xavier, no artigo intitulado Os Conceitos de Taxa e Imposto a propósito de Licenças Municipais, publicado na revista FISCO, nº 51/52, 3 e segs.).
[...]
[...] não será do simples facto de o licenciamento da actividade publicitária competir, na área dos respectivos municípios, às câmaras municipais, que decorre, desde logo e sem mais, que o tributo cobrado pelas edilidades aos responsáveis pela afixação e inscrição das mensagens de propaganda, haja de ser considerado como uma «taxa». Efectivamente, não passa este Tribunal em claro que, como se disse no citado Acórdão nº 313/92, «mesmo nas hipóteses em que a actividade dos particulares sofre uma limitação, aqueloutra actividade estadual, consistente na retirada do obstáculo à mencionada limitação mediante o pagamento de um tributo, é vista pela doutrina como a imposição de uma ‘taxa’ somente desde que tal retirada se traduza na dação de possibilidade de utilização de um bem público ou semi-público (cfr., sobre o ponto, Teixeira Ribeiro na citada Revista)», acrescentando-se que, «[s]e este último condicionalismo não ocorrer, deparar-se-á uma situação subsumível à existência de um encargo ou de uma compensação tributo que se aproximará da figura do ‘imposto’ nos termos que a seguir se verão, sem que com isto se queira significar que a imposição de contributo só é recondutível à dicotomia de ‘taxas’ ou ‘impostos’». Na realidade, assente uma relação sinalagmática característica da «taxa», o que, como é claro, implica uma contrapartida de diferentes naturezas por parte do ente público impositor do tributo, tem a doutrina entendido que são essencialmente três os tipos de situações em que essa contrapartida se verifica e que se consubstanciam na utilização de um serviço público de que beneficiará o tributado, na utilização, pelo mesmo, de um bem público ou semi-público ou de um bem do domínio público e, finalmente, na remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de determinadas actividades por parte dos particulares (cfr. Teixeira Ribeiro, ob. e loc. cits., Pitta e Cunha, Xavier de Basto e Lobo Xavier, também ob. e loc. cits.). Ora, quando em causa se encontra a terceira daquelas situações (rememore-se, a que consiste no levantamento do obstáculo jurídico ao exercício de determinada actividade por parte do tributado), defende a doutrina que o encargo pela remoção – in casu, a concessão de licenciamento para a afixação ou inscrição de publicidade – só pode configurar-se como «taxa» se com essa remoção se vier a possibilitar a utilização de um bem semi-público (vide autores por último citados e Sousa Franco in Finanças Públicas e Direito Financeiro, 4ª ed., vol.
1, 33, que, em vez de bens semi-públicos, fala de bens colectivos, quer públicos ou privados de uma perspectiva de provisão pública, quer de bens colectivos impuros). Neste contexto, e não olvidando que a norma sub specie se reporta a painéis publicitários afixados ou inscritos, não em quaisquer bens ou locais públicos ou semi-públicos, mas sim em veículos de transporte colectivo ou em veículos particulares (e são desta última espécie os veículos da recorrente), não se lobriga, por um lado, que forma de utilização de um bem semi-público esteja em causa e, por outro, que o ente tributador venha a ser constituído numa situação obrigacional de assunção de maiores encargos pelo levantamento do obstáculo jurídico. Mas, mesmo que o tributo criado pela norma em análise, possa ser visualizado como aquilo que certa doutrina (designadamente estrangeira) apelida de contribuições especiais ou tributos especiais (cfr. Perez de Ayala e Eusebio Gonzalez, Curso de Derecho Tributário, 1º Tomo, 208), o que é certo é que a doutrina nacional, quase diríamos sine discrepante, tem sustentado que tais contribuições ou tributos não devem, do ponto de vista do seu tratamento, ser vistas diferenciadamente dos «impostos». Em face do exposto, e porque se não vê, por um lado – perspectivando o tributo em causa como um encargo derivado pelo levantamento de obstáculos jurídicos ao exercício ou ao desenvolvimento de uma actividade por parte de um particular – que haja da sua parte a utilização de um bem semi-público (ou colectivo na linguagem de Sousa Franco) e, por outro, que, mesmo na óptica de nos situarmos perante uma contribuição ou um tributo especial, ele devesse ter um tratamento sui generis diferente do que deve ser conferido aos impostos, uma só solução se nos anteolha. É ela a de a respectiva imposição haver de obedecer aos ditames que pela Lei Fundamental são dirigidos aos «impostos». E daí que a norma impositora do encargo em apreciação, porque criada por diploma não emanado pela Assembleia da República (ou pelo Governo devidamente credenciado por aquela), deva ser considerada como enfermando do vício de inconstitucionalidade orgânica.”
7. No presente recurso, não está em causa a utilização de veículos para publicidade, mas a colocação de reclamos luminosos em fachadas de prédios urbanos. Esta diferença não impede, porém, a aplicação da doutrina fixada no mencionado Acórdão nº 558/98 e depois reiterada nos Acórdãos nº 63/99 (publicado no Diário da República, II, nº 76, de 31 de Março de 1999, p. 4769 s) e 32/00
(publicado no Diário da República, II, nº 57, de 8 de Março de 2000, p. 4574 ss). Com efeito, também no caso dos autos se não está perante a utilização de bens ou locais públicos, mas sim de bens ou locais pertencentes a particulares.
Há assim que concluir pela inconstitucionalidade das normas questionadas – na parte em que se referem à tributação da utilização de espaços pertencentes a particulares –, por violação dos artigos 106º, nº 2, e 168º, nº
1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa, versão de 1989 (artigos
103º, nº 2, e 165º, nº 1, alínea i), na versão actualmente em vigor).
E, tal como refere o Ministério Público nas alegações produzidas neste Tribunal, “não pode relevar o facto de, porventura, a Lei Geral Tributária ter, no artigo 4º, nº 2, lançado mão de um conceito amplo de taxa, susceptível de abarcar a remoção de quaisquer obstáculos jurídicos ao comportamento dos particulares, mesmo que não lhes consentindo a utilização de bens semi-públicos”, sendo certo que não é lícito “interpretar os preceitos e princípios constitucionais em função do direito infraconstitucional em vigor”.
Acrescenta-se, apenas, em resposta ao que parece constituir, na sentença recorrida, a razão decisiva do julgamento de conformidade constitucional das normas em causa, o que, a propósito, o Ministério Público diz nas suas alegações e merece o acolhimento deste Tribunal:
'Não nos parece decisiva a invocação dos poderes de polícia que o Município legitimamente exerce sobre o uso de quaisquer instrumentos de difusão de mensagens publicitárias, em defesa da tranquilidade pública, dos bons costumes, da segurança e da estética urbana: é que - como é evidente - nada impede que a lei e os regulamentos prescrevam requisitos ou condições de que depende a afixação de cartazes ou painéis publicitários em bens particulares - sancionando, v.g., a nível contra-ordenacional as infracções que verificar ou condicionando-a mesmo à prévia verificação ou licenciamento municipal.
O que decorre de tal jurisprudência é que a efectivação pelas autarquias dos seus poderes gerais de polícia não pode originar o pagamento de uma contrapartida pecuniária, susceptível de integrar uma verdadeira contraprestação dos entes administrativos ao particular que se limita a aproveitar os seus próprios bens'.
4 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se:
a) Julgar inconstitucionais, por violação dos artigos 106º n.º 2 e 168º n.º 1 alínea i) da Constituição, na versão de 89, (artigos 103º n.º 2 e 165º n.º 1 alínea i), na versão actual) as normas constantes dos artigos 3º e 16º do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa, publicado no Jornal Municipal de 19/3/2002, na parte em que se referem à tributação da utilização de espaços pertencentes a particulares;
b) Conceder provimento ao recurso, devendo a sentença recorrida ser reformulada de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
.Lisboa, 14 de Outubro de 2003
Artur Maurício Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida