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Proc. n.º 431/03 TC - 1ª Secção Rel.: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - Nos autos de recurso supra identificados, em que é recorrente A., foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 - A., identificada nos autos, recorre para este Tribunal ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC do acórdão da 1ª Secção do STA de fls. 214 e segs., pretendendo que se aprecie a constitucionalidade da norma do artigo 103º alínea a) da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos 'na parte em que se decide ser a inadmissibilidade de recurso jurisdicional de acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo que decidam em 2º grau de jurisdição extensível aos casos em que esses acórdãos contenham uma decisão de primeiro grau, nomeadamente decisões que ponham termo ao processo, maxime por julgarem desertos os recursos que, nessa medida, não sejam proferidos sobre o objecto de recursos jurisdicionais', o que, segundo a recorrente, violaria o disposto no artigo 20º da Constituição.
O recurso foi admitido e os autos remetidos a este Tribunal.
Cumpre decidir.
2 - Resulta dos autos:
- A ora recorrente interpôs recurso de deliberação da Câmara Municipal de Almada, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, recurso esse a que veio a ser negado provimento;
- Desta decisão foi interposto recurso para o STA (1ª Secção) que, por despacho do Relator, foi julgado deserto por falta de alegações;
- A recorrente reclamou para a conferência, mas o despacho reclamado foi confirmado por acórdão da 1ª Secção do STA;
- Inconformada, a recorrente interpôs recurso para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do STA que, por despacho do Relator não foi admitido, nos termos do artigo 103º alínea a) da LPTA, com fundamento em que o acórdão impugnado fora proferido em 2º grau de jurisdição;
- A recorrente reclamou deste último despacho para a conferência, sustentando, entre o mais, a inconstitucionalidade do artigo 103º alínea a) da LPTA, no entendimento de que ele era aplicável nos casos em que a Secção tivesse proferido uma decisão que, substancialmente, se deveria considerar proferida em
1º grau de jurisdição;
- A conferência indeferiu a reclamação e é do acórdão que ela proferiu que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade.
3 - A questão de constitucionalidade suscitada pela recorrente configura-se, face à jurisprudência reiterada deste Tribunal, como manifestamente infundada.
A tese da recorrente, no que concerne à referida questão e tal como foi construída na reclamação que deu lugar ao acórdão recorrido, traduz-se no entendimento de que o direito de acesso à justiça consagrado no artigo 20º da Constituição impõe que haja recurso de decisões da 1ª Secção do STA que, funcionando embora formalmente como 2º grau de jurisdição, profiram decisões que, pelo seu teor, se devem considerar de 1º grau.
Isto teria sucedido no caso, uma vez que a 1ª Secção não se tinha pronunciado sobre o recurso interposto do TAC de Lisboa, mas se limitara a julgar deserto esse recurso.
Ora, antes do mais, cumpre assinalar que não compete a este Tribunal apreciar se o direito infraconstitucional foi ou não correctamente aplicado no acórdão impugnado.
Os seus poderes limitam-se a apreciar se a norma em causa, tal como foi interpretada e aplicada naquele acórdão, infringe a Constituição, em particular o disposto no invocado artigo 20º da Lei Fundamental.
Em tal conformidade, o que, em direitas contas, se questiona é a pretensa exigência constitucional de um recurso jurisdicional (um autêntico 2º grau de jurisdição, no entendimento da recorrente) de decisões proferidas nas aludidas circunstâncias.
Ora, substancialmente sobre esta matéria, o Tribunal Constitucional tem firmada uma jurisprudência unívoca, como resulta, entre muitos outros, dos Acórdãos n.ºs 638/98, 202/99 e 415/01 in Diário da República de 15/5/99, 6/2/01 e 30/11/01, respectivamente.
Do primeiro dos acórdãos citados respiga-se o seguinte trecho:
'7. O artigo 20º, nº 1, da Constituição assegura a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos».
Tal direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz respeito à defesa dos respectivos pontos de vista
(designadamente sem que a insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade). Ao fim e ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral de todos os restantes direitos e interesses legalmente protegidos.
Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo-se nele também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil; e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo
32º, a menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando, aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida (mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das garantias de defesa previstas naquele artigo 32º.
Para além disso, algumas vozes têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal (ver, a este respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital Moreira e António Vitorino, respectivamente no Acórdão nº 65/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 653, e no Acórdão nº 202/90, id., vol. 16, pág. 505).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.
Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro Mendes (Direito Processual Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional - artigo 210º), terá de admitir-se que «o legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos» (cfr., a este propósito, Acórdãos nº 31/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9, pág. 463, e nº 340/90, id., vol. 17, pág. 349).
Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cfr. os citados Acórdãos nº 31/87, 65/88, e ainda 178/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 12, pág. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional, ainda Acórdãos nº
359/86, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8, pág. 605), nº 24/88,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 525), e nº 450/89, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13, pág. 1307).
O legislador ordinário terá, pois, de assegurar o recurso das decisões penais condenatórias e ainda, segundo certo entendimento, de quaisquer decisões que tenham como efeito afectar direitos, liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidos. Quanto aos restantes casos, goza de ampla margem de manobra na conformação concreta do direito ao recurso, desde que não suprima em globo a faculdade de recorrer.
8. O Tribunal teve ocasião de apreciar a questão da inconstitucionalidade da norma em causa - constante do § único do artigo 15º do Decreto 37021 - no seu Acórdão nº 270/95 (Diário da República, II Série, nº 167, de 21 de Julho de
1995), confrontando-a com o artigo 20º, nº 1, da CRP. Aí se escreveu:
Porém, o conteúdo do direito a recorrer ou do direito a um duplo grau de jurisdição não tem sido entendido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional como uma directa emanação da Constituição. Dos artigos 20º e 212º apenas se deduz uma garantia contra violações radicais, pelo legislador ordinário, do sistema de recursos instituídos e da igualdade dos cidadãos na sua utilização (cf. Acórdão nº 65/88).
Mas a esta exigência mínima impõe--se acrescentar ainda, por imposição do princípio do acesso à justiça e do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição) - do qual se extrai a garantia de controlo pelo direito das decisões dos próprios órgãos jurisdicionais -, que o acesso a sucessivos graus de jurisdição deve ser definido segundo critérios objectivos, ancorados numa ideia de proporcionalidade (relevância das causas, natureza das questões), e que respeitem o princípio da igualdade, tratando de forma igual o que é idêntico e de forma desigual o que é distinto (cf., neste sentido, os citados Acórdãos nº 68/85 e 163/90, no Diário da República, 2ª série, de 15 de Junho de 1985 e de 18 de Outubro de 1991, respectivamente).
9. Não existe, desta forma, um ilimitado direito de recorrer de todas as decisões jurisdicionais, nem se pode, consequentemente, afirmar que a garantia da via judiciária, ou seja, o direito de acesso aos tribunais, envolva sempre, necessariamente, o direito a um duplo grau de jurisdição (com excepção do processo penal).'
É esta jurisprudência que aqui se reitera e que conduz inevitavelmente ao improvimento do presente recurso, por manifestamente infundado.
4 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs '
Notificado desta decisão, vem agora a recorrente reclamar para a conferência, sustentando, em síntese, que:
- a razão está do lado dos votos de vencido exarados nos acórdãos citados no Acórdão n.º 638/98 (n.ºs 65/88 e 202/90);
- a margem de liberdade do legislador é sempre limitada pelos princípios conformadores da produção de legislação de segunda normação, no quadro das regras e do espírito da Constituição da República;
- os actos judiciais são 'actos de Poder', potencialmente lesivos de direitos e interesses legítimos dos cidadãos, 'maxime' de direitos fundamentais inscritos na Constituição;
- o princípio do respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais previsto no artigo 2º da CRP abarca todos os direitos inscritos no rol dos direitos fundamentais, entre os quais o da tutela jurisdicional efectiva;
- para a realização da tutela jurisdicional efectiva, os actos de Poder tomados pelos tribunais devem estar sujeitos a controle, tal como acontece para os restantes actos de Poder, como é o caso dos actos administrativos;
- não aceitar o duplo grau de jurisdição é levar longe de mais o dogma da intangibilidade das decisões dos tribunais e da ideia de que porque realizam a justiça e segundo critérios valorativos de legalidade, não necessitam de ser controlados;
- no mínimo a garantia de duplo grau de jurisdição é aplicável, sem restrições,
às decisões que possam afectar direitos fundamentais, sendo que, no caso, está em causa uma violação do princípio acolhido no artigo 20º da CRP.
Os recorridos não responderam.
Cumpre decidir.
2 - A decisão sumária reclamada não tomou posição sobre a questão de saber se a decisão que a recorrente pretendeu impugnar para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo fora proferida em 1º ou 2º grau de jurisdição.
Nesta matéria, aceitou, com efeito, por mera hipótese de raciocínio, a tese sustentada pela recorrente, no sentido de que, substancialmente, tal decisão se deveria considerar como sendo de 1º grau.
Isto porque, mesmo seguindo aquela tese - claramente mais favorável à pretensão da recorrente de se julgar inconstitucional a norma ínsita no artigo
103º alínea a) da LPTA, no ponto em que, a considerar-se a referida decisão como de 2º grau, a pretensa inconstitucionalidade sempre se teria que fundamentar na exigência constitucional de três graus de jurisdição - nada na Constituição impunha, em matéria não penal, a recorribilidade de tal decisão.
É esta também a orientação que aqui se segue na apreciação da presente reclamação, onde a recorrente intenta buscar apoio no que constituíram declarações de voto - o que não deixa de ser significativo - exarados em alguns arestos deste Tribunal sobre a matéria do direito de recurso (é o caso das declarações dos então Cons.ºs Vital Moreira no Acórdão n.º 65/88 e António Vitorino no Acórdão n.º 202/96).
Note-se, aliás, que, nos acórdãos citados, estava em causa a
(ir)recorribilidade para o Pleno do STA das decisões proferidas pela Secção de Contencioso Administrativo (em 1º grau) em processos de suspensão de eficácia
(ou de executoriedade) de actos administrativos (artigo 103º alínea d) da LPTA), tendo o Tribunal Constitucional concluído que a solução legal não enfermava de inconstitucionalidade.
Como se deixou exposto, a recorrente, tal como sucedia nas aludidas declarações de voto, sustenta a exigência constitucional de recurso de decisões judiciais (mesmo em matéria não penal), sempre que estejam em causa direitos, liberdades e garantias.
Mas, ainda aqui, afigura-se desnecessário que o Tribunal assuma posição na querela.
É que, com efeito, não logra a recorrente demonstrar onde, no caso, se perfila o direito fundamental afectado.
Tratando-se - como se trata - da aplicação de um direito adjectivo, instrumental, que se traduziu, apenas, em julgar deserto um recurso por falta de alegações, o que, mesmo na tese da recorrente, poderia relevar era a natureza do direito ou interesse que, no processo, a parte defendia, em termos de se impor o reexame, em 2º grau de jurisdição, das decisões processuais lesivas, naquele proferidas.
Ora, no caso, do que trata é de um recurso contencioso de anulação, onde a recorrente pretende a anulação da adjudicação feita à recorrida B. da concessão de uso privativo para a construção e exploração de um posto de abastecimento de combustíveis, defendendo a recorrente um direito de preferência a essa concessão. E não se vê aqui em causa nenhum direito com a natureza de direito, liberdade ou garantia a que a Constituição confere tutela reforçada.
Esgrimir-se aqui com o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, como suposto direito fundamental violado, constitui uma petição de princípio, uma vez que é a densificação desse mesmo direito que está em causa para se determinar se nele se exige um 2º grau de jurisdição e nada de novo diz a reclamante que infirme a citada jurisprudência do Tribunal Constitucional.
A exigência de sindicabilidade dos actos de Poder que a reclamante defende, esgrimindo, 'em considerações comparativas', com o que se dispõe no artigo 268º da Constituição, não tem qualquer razão de ser quando ela se pretende reportar a actos judiciais (como actos do Poder Judicial).
Com efeito, se bem que necessariamente pautada pelo princípio da legalidade, a função administrativa envolve a prossecução de interesses públicos diversos da realização do Direito e da Justiça, sendo que esta realização, obtida através de um órgão neutro, independente e imparcial, é o único fim da função jurisdicional (cfr. Acórdão n.º 630/95 in Acórdãos do Tribunal Constitucional 32º vol. págs. 497 e segs).
E é aos tribunais como órgãos do Poder Judicial que a Constituição confere o poder de assegurar a defesa dos direitos e interesse legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesse públicos e privados (artigo 202º n.º 2).
Compreende-se, assim, que a Constituição tenha reservado um preceito específico (artigo 268º n.º 4) para atribuir aos administrados a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesse legalmente protegidos, não obstante estar já garantido, em termos gerais, aquele direito (artigo 20º n.º
1).
A garantia da sindicabilidade dos actos praticados no exercício da função administrativa não postula nem implícita qualquer exigência de sindicabilidade de decisões judiciais no interior do Poder Judicial; ela traduz-se no direito de acesso aos tribunais como órgãos próprios de administração da justiça que, num primeiro grau, irão definir o direito controvertido em causa; o controlo que então se exercita orienta-se por um fim de natureza diversa daquele que foi prosseguido pela Administração e é um controlo que não tem como razão de ser um qualquer princípio, constitucionalmente imposto, de revisibilidade necessária de actos de Poder (de um qualquer Poder).
Não se vêem, assim, razões para abandonar a jurisprudência firme deste Tribunal em que assentou a decisão sumária reclamada.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 28 de Outubro de 2003
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida