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Processo n.º 661/03
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A - Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama, nos termos do artigo
76º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (doravante designada por LTC), do despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu o recurso interposto pelo ora reclamante para este Tribunal Constitucional.
2. O reclamante intentou uma acção, com processo ordinário, contra o Centro Nacional de Pensões/Instituto de Solidariedade e Segurança Social, pedindo o reconhecimento do seu direito à pensão de sobrevivência, por óbito de B., beneficiário do réu.
O Juiz da 8.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, entendendo que os autos já continham todos os elementos necessários e suficientes para o efeito, absolveu o réu do pedido, no saneador.
Não se conformando com essa decisão, o autor interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão datado de 11 de Julho de 2002, confirmou a decisão recorrida, julgando improcedente a apelação do autor.
3. Novamente inconformado, o autor interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações afirmando que:
“1. A única questão a resolver consiste em saber se a Lei n.º
7/2001, de 11 de Maio, é ou não aplicável ao caso dos autos.
2. Já a Lei n.º 135/99, de 28.08, estabelecia a equiparação de regimes entre pessoas em união de facto [heterossexual], face à remissão constante da alínea g) do seu art. 3º. Por isso, a alteração legislativa nada trouxe de novo, a não ser o facto [demasiado] evidente de “tornar” este regime extensivo às uniões de facto homossexuais, o que, no entanto, resulta da própria definição do âmbito da Lei n.º 7/2001, de 11.05, decorrente do n.º 1 do seu art.º 1º.
3. Não pode deixar de realçar-se que a citada Lei n.º 7/2001 refere expressamente que o benefício do seu regime só é aplicável:
- No caso de uniões de facto previstas na referida lei; e
- A quem reunir as condições constantes no art.º 2020º, do Código Civil. Ao estabelecer cumulativamente estes dois princípios, o legislador “esqueceu-se” que estava a regular também as uniões de facto homossexuais. É que, por um lado, manda aplicar o seu regime às uniões de facto, independentemente da diversidade de sexo dos seus membros, e, por outro, impõe que, em relação a essas uniões, o membro sobrevivo reúna as condições constantes no art. 2020º do Código Civil – ou seja, que se trate de pessoa que vivesse com o falecido há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges –, o que seguramente não acontece com as uniões de facto homossexuais.
4. É bem certo que o legislador não pretendeu excluir da sua previsão estas uniões, quando, na verdade, a razão de ser da nova lei foi atribuir-lhe efeitos.
5. Tratou-se, sem dúvida, de um lapso da letra da lei que, ao pretender tornar aplicável às uniões de facto homossexuais o regime contido no preceito, acabou por “impor” uma remissão para as condições de um preceito
“exclusivo” das uniões de facto heterossexuais – o art. 2020º do Código Civil –, quer na sua letra, quer no seu espírito. E não teria sido necessário ter-se adoptado um texto tão longo, tão “explicativo”, bastando que o legislador tivesse dito que “beneficia dos direitos estipulados nas alíneas e), f) e g) do art. 3.º quem viver em união de facto nos termos da presente lei, decorrendo a acção perante os tribunais cíveis”.
6. O douto acórdão recorrido não terá feito uma interpretação correcta do art.º 12º do Código Civil.
7. A Lei n.º 7/2001 tornou extensivo o regime da Lei 135/99 de 28.08
às uniões de facto homossexuais.
8. Aplica-se por isso a Lei Nova ao caso vertente.
9. A Lei (7/2001) que vem tornar o regime previsto na Lei n.º
135/99, extensivo aos homossexuais, que vivam em união de facto aplica-se
àqueles que vivam nessas circunstâncias à data da sua entrada em vigor (…).
10. A interpretação que o douto acórdão faz da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, [é] inconstitucional por violar o art. 13.º da Constituição da República Portuguesa.
11. O douto acórdão recorrido deve ser substituído por outro que julgue a acção procedente”.
4. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 22 de Maio de 2003, negou provimento ao recurso, louvando-se, para tal, na fundamentação que infra se transcreve:
“(…) a questão nem sequer chega a ser revertida a um conflito de aplicação de leis no tempo, como pretende o recorrente na conclusão 6ª.
Não se trata aqui de uma relação jurídica que esteja em conexão com uma lei antiga e uma lei nova, ou que, dito de outro modo, constituída ao abrigo de uma lei anterior, se venha a projectar sob regência de uma lei nova que disciplina diferentemente a mesma matéria.
Acontece é que a lei anterior não regulava sequer esta matéria, no aspecto em consideração.
A lei nova (no caso a Lei n.º 7/2001, indicada) que entrou em vigor em 20 de Maio de 2001, só poderia regular, porventura, as relações subsistentes
à data da sua entrada em vigor.
Mas não as relações que se tinham extinguido entretanto, como foi o caso, com o falecimento do companheiro do autor, em 13 de Dezembro do ano de
2000.
E, por tanto, não subsistiam, em Maio de 2001, por força da natureza das coisas!
Não há assim um problema de aplicação de leis no tempo. Mas um problema de não aplicabilidade da lei.
Daí que, verdadeiramente, nem se possa dizer que a decisão recorrida faz uma interpretação inconstitucional da lei (conclusão 10ª), quando ela mesma, não foi aplicada pela decisão recorrida.
E ainda que se possa dizer – porventura com alguma lógica – que a não aplicação da lei já significa interpretá-la, a verdade é que estamos perante uma questão nova, que não foi levantada perante a Relação, como se mostra pela leitura do acórdão recorrido, quer, sobretudo pela leitura das duas conclusões do então apelante (…)”.
5. Notificado desta decisão, o autor interpôs recurso para o Tribunal Constitucional afirmando que “o (…) recurso é interposto ao abrigo do disposto no art. 70º, n.º 1, alínea b), da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, estando em causa a violação do art. 13.º da CRP, na medida em que é inconstitucional a interpretação dada à Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio, no sentido de que essa mesma lei não [é] extensiva às uniões de facto homossexuais
(…)”.
6. O Juiz Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça indeferiu tal requerimento sustentando que “(…) é manifesto que o acórdão de fls. 94/96 não fez qualquer interpretação inconstitucional da Lei indicada (…). E respondeu, por isso, à conclusão 10ª do recorrente, como se assinalou devidamente, e se preveniu, a fls. 95, in fine (…)”.
7. Deste despacho vem o “autor/recorrente” reclamar para o Tribunal Constitucional, baseando-se na seguinte argumentação:
“(…) Efectivamente, o não reconhecimento de efeitos às uniões homossexuais viola frontalmente o art.º 13º da Constituição da República, ao reconhecer-se neste princípio (o da igualdade) a necessidade de não discriminação em razão da própria orientação sexual.
Ora, entende o STJ que a Lei 7/2001 não se aplica às relações que se tenham extinguido entretanto, como foi o caso dos autos, com o falecimento do companheiro do autor, em 13/12/2000.
E acrescenta que não há assim um problema de aplicação de leis no tempo. Mas um problema de não aplicabilidade da Lei.
Ora, salvo o devido respeito, a não aplicação da lei já significa interpretá-la. Neste caso, o autor acaba por ser discriminado devido a uma interpretação que as instâncias fizeram da Lei n.º 7/2001 não ser aplicável retroactivamente.
Com efeito, a razão de ser da nova lei foi atribuir efeitos a situações que ainda se tenham extinguido da sua entrada em vigor.
Assim, e salvo melhor opinião, o recurso deve ser admitido por virtude de dever entender-se que a não aplicação da Lei n.º 7/2001 ao caso vertente já significa interpretá-la em não conformidade com o art.º 13º da Constituição da República Portuguesa”.
8. O Exmo. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal pronunciou- se, no seu parecer, pelo indeferimento da declaração, por entender que o Acórdão recorrido não aplicou as normas da Lei nº 7/2001, por força da interpretação que fez dos princípios que regem a aplicação da lei no tempo.
Cumpre agora decidir.
B - Fundamentação
9. A questão decidenda presente nos autos reside em saber se deve ser admitido recurso interposto para o Tribunal Constitucional com fundamento numa “interpretação inconstitucional” da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, eventualmente realizada pelo Acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça de
22 de Maio de 2003.
10. No recurso de constitucionalidade previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, procede-se à apreciação da conformidade constitucional de normas aplicadas pela decisão recorrida, em termos de constituírem a sua ratio decidendi (e cuja inconstitucionalidade haja sido adequadamente suscitada durante o processo).
Importa assim, como se afirmou no Acórdão n.º 186/99 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), “averiguar se o tribunal a quo procedeu ou não no caso concreto (trata-se de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade) à aplicação das normas impugnadas.
Tal averiguação traduz-se numa tarefa interpretativa da decisão recorrida cujo resultado será um dos seguintes: ou a norma foi aplicada pela decisão impugnada ou não o foi. Se se concluir que a norma foi aplicada verifica-se o pressuposto processual do recurso interposto, procedendo-se consequentemente à apreciação da conformidade à Constituição da norma (uma vez verificados os demais pressupostos processuais). Se a conclusão for negativa, falta o pressuposto processual consistente na aplicação pela decisão recorrida da norma impugnada não tomando o Tribunal nessa medida conhecimento do objecto do recurso, pois, faltando esse pressuposto processual, qualquer juízo do Tribunal Constitucional sobre a norma impugnada não teria a virtualidade de alterar a decisão recorrida dado aquela não ter sido a ratio decidendi desta”.
Ora, apurar se uma determinada norma foi ou não aplicada pela decisão judicial envolve, como se compreenderá, o perscrutar dos fundamentos desse juízo de forma a poder concluir-se se ele louvou, ou não, a sua ratio decidendi na norma em questão (cfr., nesse sentido, o já mencionado Acórdão n.º
186/99 deste Tribunal: “com efeito verificar se uma decisão faz ou não aplicação de uma dada norma não consiste apenas na detecção de uma referência expressa a essa norma no texto da decisão implicando antes a demonstração material de que a decisão jurídica não teve por fundamento a norma em questão”).
11. No caso sub judicio, não subsistem quaisquer dúvidas de que a Lei n.º
7/2001, de 11 de Maio, não foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, não constituindo, por maioria de razão, a ratio decidendi do acórdão recorrido, sendo que essa inaplicabilidade da norma resulta, em boa verdade, de um juízo relativo à sua aplicação no tempo.
É certo que o Acórdão em crise começa fundamentadamente por esclarecer que a questão controvertida não se traduz num “conflito de aplicação de leis no tempo”, entendendo-se tal problema como “uma relação jurídica que esteja em conexão com uma lei antiga e uma lei nova, ou que, dito de outro modo, [fosse] constituída ao abrigo de uma lei anterior, [e] se venha a projectar sob a regência de uma lei nova que discipline diferentemente a mesma matéria”, e, com base em tal argumentação, a decisão afirma não existir “um problema de aplicação de leis no tempo”.
Porém, afastada a existência de uma verdadeira concorrência de normas no tempo
(ao contrário do que havia sustentado o recorrente), o problema sub judicio, acaba por concluir pela “não aplicabilidade da lei” com base em critérios regulamentadores da sua entrada em vigor – ou, rectius, com base nos critérios que regem a aplicabilidade temporal das normas. Como se sustenta no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – constituindo este aspecto a ratio decidendi do juízo desse Tribunal –, “a lei nova (no caso a Lei n.º 7/2001, indicada) que entrou em vigor em 20 de Maio de 2001, só poderia regular, porventura, as relações subsistentes à data da sua entrada em vigor. Mas não as relações que se tinham extinguido entretanto, como foi o caso, com o falecimento do companheiro do autor, em 13 de Dezembro do ano de 2000.”
Neste sentido, a não aplicabilidade da lei resultou, como claramente se infere da decisão recorrida, de um juízo relativo à (não-)aplicação no tempo da Lei n.º
7/2001 a relações que não subsistiam à data da sua entrada em vigor: a lei não podia ser aplicada nos presentes autos com fundamento nas regras relativas à aplicabilidade temporal das normas em questão (cf., mutatis mutandis, o problema considerado no Acórdão n.º 177/98 deste Tribunal).
Assim sendo, não poderá sustentar-se com inteira propriedade que, in casu, a não aplicação da lei “já significa interpretá-la” e, portanto, “aplicá-la”, porquanto a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído pela não aplicabilidade da lei ratione tempore, deteve-se num momento anterior ao da consideração da “previsão” das normas da Lei n.º 7/2001, não tratando de saber, em consequência, se a concreta situação seria, ou não, abrangida pelo âmbito de aplicabilidade material recortado pelas normas em questão para as situações ocorridas após a sua entrada em vigor.
12. Ora, o Tribunal Constitucional não pode, em casos como o presente, deixar de tomar em consideração os critérios utilizados pelo Tribunal a quo na determinação do direito aplicado e nesses critérios incluem-se forçosamente os respeitantes à aplicação da lei no tempo, posto que, na questão de constitucionalidade decidenda, não vai questionada, sub species constitutionis, a própria legitimidade dos critérios orientadores da (não-)aplicabilidade ratione tempore das normas invocadas.
Este entendimento tem, aliás, sido perfilhado por este Tribunal em diversos arestos (cf. Acórdão n.º 177/98 e, no estrito sentido do exposto, o Acórdão n.º
78/99), onde se afirma que o Tribunal Constitucional só pode deixar de respeitar os critérios legais de determinação do direito aplicável quando “esses critérios forem eles próprios objecto de uma questão de constitucionalidade formulada em termos idóneos no sentido de, sobre a questão, o Tribunal ter de se pronunciar”.
Se assim não fosse, qualquer que fosse a decisão do Tribunal Constitucional, ela não contenderia com a ratio decidendi do juízo proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, não se projectando sobre a decisão recorrida em termos de a alterar, uma vez que não foram questionaram os critérios que determinaram, na essência, a não aplicabilidade da Lei n.º 7/2001 e que dizem respeito ao juízo sobre a sua aplicabilidade temporal a situações ocorridas no período anterior ao da sua entrada em vigor.
C - Decisão
13. Destarte, atento o exposto, acorda-se em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante com 15 UC de taxa de justiça.
Lisboa, 28 de Outubro de 2003
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos