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Processo n.º 454/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
1.1. A. deduziu, nos termos do n.° 4 do artigo 76.° da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro (doravante designada por LTC), reclamação para o Tribunal Constitucional do despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Abril de 2003, que não admitira recurso por ele interposto para este Tribunal Constitucional.
O reclamante interpusera recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que confirmara a sua condenação, no Tribunal Judicial de Vila Verde, na pena única de 5 anos de prisão e 180 dias de multa, à taxa diária de 5000$00, resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas pela prática de dois crimes de peculato, de um crime de peculato de uso, de um crime de abuso de poderes e de um crime de falsificação de documento, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos
20.º, n.º 1, 21.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, e pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, com o remanescente da pena objecto de perdão (um ano, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º
29/99, de 12 de Maio) aplicada ao crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.ºs 1, alínea b), 3 e 4, do Código Penal.
Por acórdão de 6 de Fevereiro de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso, com a seguinte fundamentação:
“2. Nos termos do n.º 1 do artigo 411.º do CPP, aplicável a todos os recursos ordinários, o prazo para a interposição do recurso é de 15 dias, e conta-se, no caso de se tratar de acórdão (cf. o artigo 97.º, n.º 1, do CPP), do respectivo depósito na secretaria.
Ora, in casu, o acórdão da Relação foi depositado na respectiva secretaria em 3 de Julho de 2002, como se vê de fls. 977, pelo que o prazo de interposição do recurso (suspenso durante as férias judiciais do verão) terminava em 17 de Setembro de 2002 e em 20 dos mesmos mês e ano com o pagamento de multa, nos termos do artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 107.º, n.º 5, do CPP.
Porém, o recurso em causa só foi interposto em 25 de Setembro de
2002, como se alcança de fls. 979, ou seja, o recurso foi interposto para além do termo final (com multa) do respectivo prazo.
Por conseguinte o recurso não é admissível, pelo que tem de ser rejeitado nos termos dos artigos 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, do CPP, sendo certo que este Supremo Tribunal não está vinculado pela decisão que admitiu o recurso – n.º 3 do citado artigo 414.º.
Acresce que estamos perante um acórdão da Relação do Porto que confirmou a decisão da 1.ª instância, tratando-se, aliás, de um acórdão condenatório em processo em que a pena aplicável ao crime mais grave – peculato previsto e punido pelo artigo 20.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho – não é superior a oito anos de prisão, não lhe cabendo outra mais grave por força de outra disposição legal.
Logo, nos termos conjugados dos artigos 432.º, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, não é admissível recurso do acórdão ora proferido pela Relação do Porto.
Assim, não sendo admissível o recurso, este, mesmo que fosse tempestivo, ainda teria de ser rejeitado nos termos dos artigos 414.º, n.º 2, e
420.º, n.º 1, do CPP.
Pelo exposto, acorda-se em rejeitar o recurso.”
1.2. Notificado desse acórdão, o recorrente veio arguir a sua nulidade, por violação do princípio do contraditório, e suscitar a questão da inconstitucionalidade da interpretação dada à alínea b) do n.º 1 do artigo
61.º, em conjugação com o n.º 1 do artigo 420.º, ambos do Código de Processo Penal (CPP), por violação dos princípios do acusatório e do contraditório consagrados nos n.ºs 1, 5 e 7 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Estas arguições foram indeferidas pelo acórdão de 20 de Março de 2003, com a seguinte fundamentação:
“Diz o recorrente que houve violação do princípio do contraditório porque a decisão de rejeição do seu recurso foi proferida sem que ele tivesse sido chamado a pronunciar-se sobre as razões de tal rejeição, contra o que dispõe o artigo 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP e o n.º 5 do artigo 32.º da Constituição (a referência ao n.º 7 deste último artigo deve-se, certamente, a lapso, por se referir à intervenção do ofendido no processo penal e não à intervenção do arguido, como o recorrente afirma).
No que concerne ao processo criminal, o princípio do contraditório está disciplinado concretamente no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição, que dispõe: «O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinado ao princípio do contraditório».
Ora, in casu, foi o relator que levantou, no exame preliminar do processo, a questão da rejeição do recurso, levando o processo à conferência, onde se decidiu rejeitar o recurso.
Tal exame preliminar – bem como a referida conferência – não é audiência de julgamento nem acto instrutório, pelo que, nos termos do artigo
32.º, n.º 5, da Constituição, não está subordinado ao princípio do contraditório.
Também a lei processual não estabelece tal subordinação. Pelo contrário, se o relator entender que é de rejeitar o recurso – como sempre se tem feito neste Supremo Tribunal, segundo julgamos –, elabora projecto de acórdão, o processo vai a visto dos juízes adjuntos, acompanhado daquele projecto, e depois à conferência para ser julgado o recurso, que será rejeitado se se verificar algum dos casos referidos no n.º 1 do artigo 420.º do CPP. Trata-se do procedimento determinado pelos artigos 417.º, n.ºs 3, alínea c), e
4, alínea b), 418.º, n.º 1, e 419.º, n.º 4, alínea a), do mesmo Código, dos quais não consta a imposição da notificação aos sujeitos processuais – nomeadamente, o recorrente e o recorrido – do despacho do relator resultante do exame preliminar do processo, mesmo no caso de aquele entender que é de rejeitar o recurso. Enfim, é uma sequência de actos processuais, nos quais não se intromete a referida notificação.
Daqui só há que concluir que estamos perante uma das excepções consagradas na lei ao direito que o arguido goza de ser ouvido pelo tribunal quando este deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte, conforme prevê o artigo 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP, que, assim, não foi violado.
De resto, quando a lei processual entendeu, num ou noutro caso, impor o respeito pelo princípio do contraditório, fê-lo expressamente – v., nomeadamente, os n.ºs 2 e 5 do artigo 417.º do CPP (vista inicial, em que o Ministério Público não se limita a apor o seu visto, e requerimento de alegações escritas apresentado por algum dos recorrentes) – mas, como vimos, não é o que ocorre no caso em apreço.
Claramente no sentido do que vai exposto vejam-se os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 8 de Julho de 1993 (processo n.º 44 350), citado por Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, II vol. (2.ª edição), pág. 849, de 23 de Setembro de 1999 (processo n.º 1303/98 – 3.ª Secção) e de 14 de Março de 2002 (processo n.º 4216/01 – 5.ª Secção) –, este último com o mesmo relator do presente processo – citados por Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, 13.ª edição, págs. 833 e 834.
A este respeito, cabe ainda dizer que nem Maia Gonçalves nem Simas Santos / Leal Henriques se referem à necessidade de dar cumprimento ao princípio do contraditório no que concerne às questões suscitadas pelo relator no exame preliminar do processo, ao contrário do que sucede com as questões deduzidas pelo Ministério Público na vista inicial – v., quanto ao primeiro autor, obra citada, págs. 832 e 833, e, quanto aos outros dois autores, obra referida, pág. 842 e seguintes.
Do que vai dito resulta também que é inaplicável ao processo penal o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, pois, como vimos, tal processo tem normas próprias a respeito do princípio do contraditório e obedece directamente ao disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.
Improcede, pois, a nulidade do acórdão resultante da violação daquele princípio, a qual, aliás, não se encontra no elenco taxativo das nulidades da sentença enunciado no artigo 379.º do CPP, aplicável aos acórdãos proferidos em recurso por força do disposto no artigo 425.º, n.º 4, do mesmo diploma, pelo que, também por esta razão, tal nulidade não pode proceder.
Obviamente, face à não violação do princípio do contraditório por falta de audição do arguido, ora reclamante, também não se verificam as nulidades invocadas pelo mesmo – artigos 379.º, n.º 1, alínea c), parte final,
119.º, alínea c), e 120.º, n.º 1, alínea d), do CPP – nem a irregularidade que também invocou para os efeitos previstos no artigo 123.º, n.º 1, do mesmo Código, dado que aquelas e esta assentam no pressuposto da referida falta de audição do arguido – audição esta que, como vimos, a lei não impõe.
Subsidiariamente, o recorrente veio arguir a inconstitucionalidade da interpretação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 61.º, em conjunção com o n.º 1 do artigo 420.º, ambos do CPP, pretendendo, também por esta via, a admissão do recurso que foi rejeitado e que seja ordenado o seu prosseguimento.
Ora, para além de o acórdão ora impugnado não ter aplicado ao caso o artigo 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP, o certo é que o que o recorrente pretende é que o seu recurso seja admitido, prosseguindo os seus termos, contra o que se decidiu.
Trata-se de uma atitude que se traduz na discordância quanto ao decidido, que não pode ser exercida por esta via, pois este Supremo Tribunal não pode agora, como é evidente, dar o dito por não dito, revogando o seu acórdão e proferindo outro que decida admitir o recurso e ordene o seu prosseguimento.
Acresce ainda que a invocada inconstitucionalidade não o pode ser pela via de arguição de nulidades, como sempre tem decidido o Tribunal Constitucional.
O que acaba de ser dito aplica-se também à suscitação da inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 411.º, n.º 1, 425.º, n.º 6, e 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, pois, desta forma, pretende igualmente o recorrente que este Supremo Tribunal dê o dito por não dito e admita agora o recurso, fazendo-o prosseguir, quando antes o rejeitou.
Esta alteração radical do decidido está vedada pelo disposto no artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi artigo
4.º do CPP, ou seja, com a prolação do acórdão em causa ficou imediatamente esgotado o poder jurisdicional deste Supremo Tribunal quanto à matéria sobre a qual decidiu.
Finalmente, o reclamante veio antecipar o seu entendimento sobre as pretendidas tempestividade e admissibilidade do seu recurso, contra o que foi decidido, para o caso de lhe ser concedido o direito de contraditório.
Porém, embora se trate de uma antecipação, de que este Supremo Tribunal, portanto, não tem que conhecer, até porque acerca de tais questões não foi violado o princípio do contraditório, o certo é que, pelo que vai dito, não pode este Supremo Tribunal proceder a uma alteração radical do que decidiu a respeito das mesmas questões, por, mais uma vez se frisa, estar esgotado o seu poder jurisdicional sobre tal matéria.
Pelo exposto, acorda-se em indeferir o requerimento do recorrente.”
1.3. Veio então o recorrente interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, quer do acórdão que rejeitara o recurso quer do acórdão que indeferira a reclamação por nulidade, visando a apreciação da inconstitucionalidade das normas contidas nas seguintes disposições legais:
“– artigo 61.º, n.º 1, alínea b), e artigo 420.º, n.º 1, do CPP, na interpretação – ofensiva do disposto nos n.ºs 1 e 5 do artigo 32.º da CRP – adoptada pelo Tribunal recorrido, segundo a qual ao arguido recorrente não assiste o direito de se pronunciar sobre as questões que determinam a rejeição do recurso;
– artigo 411.º, n.º 1, do CPP, na interpretação adoptada pelo Tribunal recorrido – ofensiva do disposto no n.º 1 do artigo 32.º da CRP –, segundo a qual o termo inicial do prazo para a interposição de recurso do acórdão proferido em processo penal pelo Tribunal da Relação se conta do respectivo depósito na Secretaria e não da notificação ao mandatário do arguido; e
– artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, na interpretação adoptada pelo Tribunal recorrido – ofensiva do disposto nos artigos 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da CRP –, segundo a qual, em caso de concurso de infracções, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo a que seja aplicável, relativamente a cada um dos crimes que integram o concurso individualmente considerado, pena de prisão não superior a oito anos.”
O recorrente mais referiu, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, que “suscitou as questões de inconstitucionalidade, que pretende ver apreciadas, na reclamação que apresentou contra o acórdão que rejeitou o recurso, e não antes por não ter tido oportunidade processual para isso, seja porque o recurso tinha sido recebido pelo Ex.mo Desembargador Relator do Tribunal da Relação do Porto, seja porque as interpretações inconstitucionais das normas em referência (nomeadamente a que determinou a prolação da decisão sem a audiência prévia do arguido) só surgem no processo exactamente no acórdão de rejeição e não eram previsíveis nem é razoável exigir-se do recorrente que as tivesse antecipado”.
Por despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Abril de 2003, o recurso para o Tribunal Constitucional não foi admitido, com base na seguinte argumentação:
“Dispõe o artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da referida Lei n.º 28/82:
«1 – Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em Secção, das decisões dos tribunais:
(...) b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.»
Ora, o acórdão que rejeitou o recurso para este Supremo Tribunal não aplicou o artigo 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP, como, aliás, já se disse no acórdão que indeferiu a arguição de nulidades contra aquele aresto – v. fls.
1082 verso. E só das normas aplicadas cabe recurso para o Tribunal Constitucional nos termos do dispositivo acima transcrito.
Por outro lado, quanto às restantes normas invocadas pelo recorrente, não se pode dizer que a sua interpretação constitua uma decisão surpresa.
Efectivamente, as normas contidas nos artigos 420.º, n.º 1, 411.º, n.º 1, e 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, são de uma clareza meridiana, não permitindo outra interpretação diferente da que foi exarada na decisão recorrida.
Assim, o n.º 1 do artigo 420.º do CPP dispõe na sua 2.ª parte que o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do artigo 414.º, n.º 2. Ora, de acordo com este normativo, uma dessas causas é a interposição do recurso fora de tempo, sendo esta uma das duas razões que levaram à rejeição do recurso.
Por sua vez, o n.º 1 do artigo 411.º do CPP diz, claramente, que o prazo para a interposição do recurso conta-se, tratando-se de sentença (ou acórdão, quando se tratar de decisão de um tribunal colegial – v. o artigo 97.º, n.º 1, alínea c), do CPP), do respectivo depósito na secretaria, como se entendeu na decisão recorrida.
De resto, confirmando que este é o terminus a quo do prazo de interposição do recurso dos acórdãos dos tribunais superiores, pode ver-se basta jurisprudência, citada por Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, II vol., 2.ª edição, pág. 786 e seguintes, neste sentido.
De qualquer modo, bastaria a constatação da existência desta jurisprudência no sentido do que foi decidido no acórdão recorrido para que o recorrente não pudesse considerar-se surpreendido pela rejeição do seu recurso por intempestividade.
Quanto ao artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, há que dizer que a expressão «mesmo em caso de concurso de infracções» utilizada na alínea f) – e também na alínea e) – do n.º 1 do referido artigo 400.º significa, em bom português, que irreleva tal circunstância para a determinação da admissibilidade do recurso no caso considerado em tal normativo. E isto está, aliás, de acordo com o disposto no artigo 403.º, n.º 2, alínea b), do referido Código – «para efeitos de recurso, é autónoma a parte da decisão que se referir, em caso de concurso de crimes, a cada um dos crimes», como afirma o Exm.º Conselheiro Carmona da Mota, na sua declaração de voto junta ao acórdão que indeferiu a arguição de nulidades.
Tem sido esta a jurisprudência corrente deste Supremo Tribunal – v., nomeadamente, os acórdãos de 21 de Junho de 2001 (processo n.º 3411/02 – 5.ª Secção), citado por Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, 13.ª edição, pág.
785, de 21 de Novembro de 2002 (processo n.º 3411/02 – 5.ª Secção), de 16 de Janeiro de 2003 (processo n.º 4198/02 – 5.ª Secção) e de 30 de Janeiro de 2003
(processo n.º 160/03 – 5.ª Secção). De resto, é também esta a opinião de Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2.ª edição, III vol., pág. 325.
De todo o modo, também aqui, bastaria a existência de jurisprudência e doutrina no sentido do que, a este respeito, foi decidido pelo acórdão recorrido para que o recorrente não pudesse considerar-se surpreendido por tal decisão.
Acresce que a circunstância de ocorrer concurso de infracções irreleva ainda, para efeitos de admissibilidade do recurso de acórdãos das Relações, na medida em que se vê das alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP que o que conta é a pena aplicável ao crime (ou crimes) e não a pena aplicada. Ora, a pena aplicável ao concurso determina-se em função das penas aplicadas aos diversos crimes – v. o artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal – pelo que aquele irrelevará sempre face ao critério adoptado pela lei – v. também Germano Marques da Silva, obra e local citados.
Finalmente, tendo sido interposto recurso apenas pelo arguido, teria de se aplicar o disposto no artigo 409.º do CPP, ou seja, a pena aplicável por este Supremo Tribunal não poderia exceder as penas aplicadas pela Relação, nomeadamente, a pena única que montou a cinco anos de prisão.
Logo, o recurso também não seria admissível pela conjugação do disposto no artigo 409.º com o preceituado nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º, ambos do CPP. E isto também resulta claramente da lei.
Por tudo isto, não pode dizer o recorrente que houve uma decisão surpresa quanto à interpretação das normas que invocou, pelo que devia ter suscitado a sua inconstitucionalidade na interposição do recurso para este Supremo Tribunal, a fim de este a poder apreciar, e não, como fez, utilizar a arguição de pretensas nulidades do acórdão recorrido para aquela suscitação, pois não se trata do meio adequado e oportuno para o efeito, como tem sido jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional.
Assim, quer quanto à norma não aplicada quer quanto às normas aplicadas pelo acórdão recorrido, o recurso não é admissível, pelo que, face ao disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 76.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, não o admito.”
1.4. É contra este despacho que vem deduzida a presente reclamação, na qual o reclamante – após recordar os termos do seu requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade e o fundamento da não admissão do recurso, consubstanciado na afirmação, contida no despacho reclamado, de que
“não pode dizer o recorrente que houve uma decisão surpresa quanto à interpretação das normas que invocou, pelo que devia ter suscitado a sua inconstitucionalidade na interposição do recurso para este Supremo Tribunal” – aduz:
“Esta afirmação assenta num equívoco, por esquecer que, antes de se equacionar a constitucionalidade das normas que preenchem o conteúdo da decisão (ínsitas nos artigos 400.º e 411.º do CPP), tem de conferir-se a constitucionalidade das normas que regulam a própria génese da decisão.
O recorrente, no plano dos módulos constitucionais, questiona, em primeiro lugar e por razões de precedência lógica, a possibilidade de a decisão ter sido proferida sem a sua prévia audição, para exercer o contraditório, e só depois questiona o seu conteúdo.
Ao repudiar o chamado efeito surpresa, o douto acórdão reclamado passa uma esponja sobre a primeira questão, como se ela não existisse, apesar de se tratar, para o efeito agora em consideração, da questão principal.
Sintomático dessa postura, que contamina o raciocínio que culminou na não admissão do recurso, é o facto de a decisão não conter uma única palavra alusiva à questão central, do contraditório.
Uma decisão proferida sem precedência do contraditório é, por definição e natureza intrínseca, uma decisão surpresa.
O recorrente não podia suscitar a inconstitucionalidade da interpretação adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça do conjunto de normas contidas nos artigos 61.º, n.º 1, alínea b), e 420.º, n.º 1, do CPP, sem que fosse violado o direito ao contraditório. Portanto, sem que fosse proferida a decisão impugnada.
Até esse momento, a questão pura e simplesmente não existia nem era previsível.
É esta, como se disse, a questão central que importa dilucidar.
Tão central e nuclear que, se vier a ser resolvida no sentido propugnado pelo recorrente, fica prejudicado o conhecimento das restantes.
Se o tribunal ad quem julgar inconstitucional – como se espera – aquelas normas, na interpretação adoptada, o processo terá de baixar ao Supremo Tribunal de Justiça para, em conformidade, conceder ao recorrente o direito de se pronunciar sobre a possibilidade de o recurso ser rejeitado, postulando quanto lhe pareça adequado à constitucionalidade das restantes normas (as contidas nos artigos 411.º, n.º 1, e 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP).
Só se o Tribunal Constitucional repudiar a tese que o recorrente defende quanto aos artigos 61.º, n.º 1, alínea b), e 420.º, n.º 1, será, nesta fase processual, necessário apreciar a questão da constitucionalidade destas
últimas normas.
O que significa que só por mera cautela e para prevenir essa hipótese tem cabimento discutir se, quanto a elas, foi respeitado o pressuposto da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
A fragilidade da douta decisão reclamada não resulta apenas de se ter distanciado da ofensa do contraditório e das implicações que dela advêm no plano da (im)previsibilidade das interpretações que foram apodadas de inconstitucionais.
Com efeito, salvo melhor juízo, nenhum dos argumentos trazidos à colação pelo douto despacho reclamado tem consistência.
Não a tem, desde logo, a afirmação segundo a qual o Supremo Tribunal
«não aplicou o artigo 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP».
A verdade indesmentível é que o aplicou, embora o tenha feito numa interpretação inconstitucional.
Ao proclamar, como nele se lê, que «estamos perante uma das excepções consagradas na lei ao direito que o arguido goza de ser ouvido pelo tribunal quando este deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte, conforme prevê o artigo 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP, que, assim, não foi violado», o douto acórdão que originou este debate está, sem sombra de dúvida, a interpretar este normativo legal num determinado sentido, que o recorrente tem por inconstitucional, e, portanto, a aplicá-lo.
Está, por outras palavras, a convocar essa norma, delimitando o seu campo de aplicação e concluindo que o caso concreto não está abrangido pela respectiva previsão.
A delimitação do campo de aplicação dum preceito para apurar da sua convergência num determinado caso concreto integra, por natureza, a sua aplicação, sobretudo para o efeito de se aferir da conformidade constitucional da interpretação que vier a ser privilegiada.
Ora, interpretado com o sentido que o próprio acórdão explicitou, esse preceito é inconstitucional, na óptica do recorrente.
De resto, e como se disse, a questão não se pode reduzir ao artigo
61.º, n.º 1, alínea b), uma vez que este preceito foi aplicado em conjugação com o constante do n.º 1 do artigo 420.º do CPP.
Ora, o que o recorrente sustentou e sustenta é que só aquela interpretação conjugada e inconstitucional da alínea b) do n.º 1 do artigo 61.º e do artigo 420.º, n.º 1, permitiu que a rejeição fosse decretada, sem a sua audiência prévia.
Ainda, porém, que não tivesse aplicado a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 61.º, o Supremo Tribunal de Justiça aplicou, sem dúvida, o n.º 1 do artigo 420.º.
E também a leitura interpretativa deste é questionada no recurso interposto, sob o apodo de inconstitucionalidade.
Em suma: não parece consistente o primeiro argumento invocado para a não admissão do recurso interposto.
Não parece fundada, por outro lado, a ideia de que, por as restantes normas acossadas de inconstitucionais serem de «meridiana clareza», daí decorre não estarmos perante uma «decisão surpresa».
Sobre o sentido destas normas, existe uma divergência profunda entre a posição do recorrente e a do douto acórdão reclamado, que considera clara uma interpretação oposta à que o requerente tem por igualmente clara.
Vejamos, em primeiro lugar, a questão do n.º 1 do artigo 411.º, que se diz coberta pelo aval de «basta jurisprudência».
Há, neste ponto, um manifesto equívoco: a jurisprudência citada pela douta decisão reclamada não foi proferida no domínio de vigência da actual redacção dos preceitos em análise, pelo que não se ajusta ao caso vertente.
Essa jurisprudência tem como pano de fundo a redacção do artigo
425.º anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que estabeleceu a regra do actual n.º 6 [A numeração dos parágrafos do art. 425.º foi, como se sabe, alterada pelo Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro].
A obrigatoriedade de notificação dos acórdãos aos recorrentes, consagrada pela Lei n.º 59/98, modificou o regime legal, que passou a ser – sob pena de interpretação inconstitucional – o do cômputo do dies a quo a partir dessa notificação e não do depósito do acórdão.
Para o recorrente, este regime é transparente, tanto mais quanto é certo que há Tribunais da Relação que, após aquela alteração legislativa, deixaram de efectuar o depósito dos acórdãos e outros há em que esse depósito é efectuado depois de a Secretaria encerrar ao público, pelo que jamais poderia esse acto servir de ponto de referência para o cálculo do prazo.
Seja como for, uma coisa tem o recorrente por certa: a interpretação adoptada não tem antecedentes jurisprudenciais conhecidos, no domínio da legislação em vigor, não é, de modo nenhum, líquida – basta ler o voto de vencido do Ex.mo Senhor Conselheiro J. Carmona da Mota – e constitui uma verdadeira decisão surpresa.
Surpresa que é tanto mais evidente quanto é certo que o Tribunal da Relação do Porto admitiu o recurso sem hesitar, o que, embora com a provisoriedade característica deste tipo de decisões, significa, em todo o caso, que, pelo menos para o Tribunal da Relação do Porto, a interpretação das normas agora em referência – contrária à que temos sobre a mesa – não suscita dúvidas.
A fragilidade dos argumentos da «meridiana clareza» e da «basta jurisprudência» aplicados ao preceito da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º não diverge muito da que ficou exposta quanto aos artigos 411.º, n.º 1, e 425.º, n.º 6.
Pode mesmo dizer-se que a redacção daquela alínea é um bom exemplo dum texto legal obscuro e, portanto, de mau português.
Esta observação nem sequer é original.
Não é outro o sentido das palavras (muito elegantes e conciliadoras) de Germano Marques da Silva (na obra e local citados pela decisão reclamada), quando escreve: «a expressão “mesmo em caso de concurso de infracções” suscita algumas dificuldades de interpretação».
No que diz respeito à jurisprudência publicada – a única que pode servir de pedra de toque nesta matéria –, é manifesta a sua exiguidade.
Tanto quanto o recorrente conseguiu apurar, apenas foi dado à estampa o sumário de um único acórdão sobre a interpretação da fórmula a que vimos aludindo e que está no centro desta discussão.
O acórdão citado na douta decisão reclamada (de 21 de Junho de 2001, referenciado na 13.ª edição – e apenas nesta, que saiu do prelo em Setembro de
2002 – do Código de Processo Penal Anotado de Maia Gonçalves) debruça-se sobre a alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º e não sobre a sua alínea f).
Sobre esta última, apenas conhece o recorrente o sumário, revelado naquela obra, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Fevereiro de
2002, cujo teor é o seguinte: «É admissível recurso de um acórdão da Relação que confirme decisão de 1.ª instância relativo a crimes a que são aplicáveis penas de prisão superiores a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções».
Este sumário não projecta muita luz sobre o assunto.
Mas não é muito atrevido considerar-se que decidiu em sentido contrário ao que defende o douto acórdão reclamado.
Seja como for, só por ironia se pode afirmar que é basta a jurisprudência publicada nesta matéria. O mesmo se diga, por outro lado, das alusões doutrinárias.
A única que o recorrente conhece tem a autoria do Prof. Germano Marques da Silva e está citada no douto despacho reclamado.
Vale a pena transcrevê-la, na parte relevante: «Não parece que o legislador tenha aqui recorrido a um critério assente na pena efectivamente aplicada no concurso e em abstracto é impossível determinar qual a pena aplicável aos crimes em concurso antes da determinação da pena aplicada a qualquer um deles. Parece-nos que a expressão “mesmo em caso de concurso de infracções” significa aqui que não importa a pena aplicada no concurso, tomando-se em conta a pena abstracta aplicável a cada um dos crimes».
Este excerto está muito longe de resolver o problema e não tem o alcance nem a leitura unívoca que dele faz a douta decisão em mérito.
Não há dúvida de que o Autor sustenta que, na aplicação do preceito, deve ponderar-se a pena aplicável e não a pena aplicada.
Mas o que não está dito nem escrito é se essa pena aplicável a cada um dos crimes (portanto: a pena abstracta) intervém a título cumulativo ou disjuntivo.
Esta questão fulcral não foi sequer abordada de modo explícito pelo Autor.
Se alguma conclusão se pode extrair daquele texto, é de sentido contrário ao suposto na douta decisão reclamada.
Se o Prof. Germano Marques da Silva alinhasse pela tese que lhe é atribuída, teria de escrever: «tomando-se em conta a pena abstracta aplicável ao crime mais grave do concurso» e não, como escreveu: «tomando-se em conta a pena abstracta aplicável a cada um dos crimes».
Desta fórmula, o melhor que pode dizer-se é que é compatível com as duas teses opostas em presença.
De onde, termos de concluir que não é exacta a afirmada abundância de jurisprudência e doutrina publicada nesta matéria e, sobretudo, que ainda falta muito para que possa ter-se por assente a interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º que temos vindo a analisar.
Para terminar, dir-se-á que o argumento da previsibilidade da decisão esmorece a cai pela base se tivermos em consideração que, salvo sempre melhor estudo, não está publicada uma única decisão jurisprudencial ou referência doutrinária acerca da constitucionalidade deste preceito e da interpretação que dele se fez.
Neste contexto, não é legítimo exigir-se do recorrente que, sob pena de inobservância do ónus subjacente ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC, antecipasse a eventualidade dessa interpretação, que, com o devido respeito, o recorrente considera absurda, sistematicamente insustentável e violadora de exigências constitucionais inarredáveis.
Acima de tudo e para finalizar, interessa reter e repetir que a verdadeira chave para solucionar o problema em debate passa pela constatação de que uma decisão proferida sem precedência do contraditório é, por definição e natureza intrínseca, uma decisão surpresa.”
1.5. Tendo o Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça mantido o despacho reclamado, pelos fundamentos dele constantes, foram os autos remetidos a este Tribunal Constitucional, onde o representante do Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
“Relativamente à questão de constitucionalidade suscitada em sede de tempestividade da interposição do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, entendemos que assistiria efectivamente razão ao reclamante no que concerne à verificação dos pressupostos da admissibilidade do recurso tipificado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, na medida em que a interpretação normativa do artigo 411.º, n.º 1, adoptado pelo Supremo, se configura como contendo uma decisão surpresa, de conteúdo insólito e imprevisível, com a qual o recorrente não poderia razoavelmente contar (não sendo, aliás, exigível que a parte que interpõe um recurso, na sequência de notificação que lhe foi feita, e o vê admitido no Tribunal a quo, deva suscitar, em sede de motivação, a questão da inconstitucionalidade da insólita interpretação que conta tal prazo do depósito na secretaria da decisão proferida, em conferência, pela Relação).
Sucede, porém, que – no caso dos autos – concorre uma outra razão ou fundamento alternativo para a rejeição do recurso para o Supremo: além da dita intempestividade, a inadmissibilidade legal do recurso, nos termos do artigo
400.º, n.º 1, alínea f), do CPP – só havendo, deste modo, utilidade na dirimição da primeira questão de inconstitucionalidade se a rejeição do recurso não for de manter com base na dita interpretação do artigo 400.º. Ora, quanto a esta questão, entendemos que a parte não estava dispensada do ónus de suscitação, durante o processo, da respectiva inconstitucionalidade, por ser previsível que o Supremo viesse a adoptar a interpretação «restritiva» de tal norma: bastará, para tanto, ponderar que este Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre a questão da inconstitucionalidade do dito artigo 400.º, n.º 1, alínea f), na interpretação segundo a qual é inadmissível o recurso para o Supremo de acórdãos contraditórios, proferidos pelas Relações, confirmatórios do decidido em 1.ª instância, por crimes a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções – emitindo um juízo de não inconstitucionalidade nos Acórdãos n.ºs 189/01, 369/01 e 435/01.
Cumpria, pois, ao recorrente – e independentemente das dúvidas interpretativas legitimamente suscitadas quanto a esta norma –, numa estratégia processual cautelosa, ter antecipado a eventualidade de o Supremo vir a optar pela tese mais desfavorável ao seu interesse, confrontando-o logo com tal questão de inconstitucionalidade, de modo a provocar o exercício sobre ela dos respectivos poderes cognitivos – sendo, deste modo, intempestiva a sua colocação apenas em sede de arguição de nulidades.
Faltando, deste modo, os pressupostos de admissibilidade do recurso quanto à questão da constitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), é inútil a dirimição da questão enunciada quanto à norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, já que a rejeição do recurso para o Supremo sempre será de manter, pelo primeiro daqueles fundamentos, insindicável, como se referiu, em sede de fiscalização concreta.
Quanto à terceira questão de constitucionalidade, construída em torno do artigo 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP (e que, em termos substanciais, se traduz em questionar a não aplicabilidade, quanto à pronúncia liminar do relator, do preceituado, nomeadamente, nos artigos 3.º, n.º 3, e 704.º, n.º 1, do CPC, facultando às «partes» o contraditório quanto ao exame preliminar do relator), verifica-se que o acórdão que dirimiu a reclamação de tal nulidade assenta num duplo fundamento alternativo: o não cabimento, em processo penal, de tal diligência, face à específica tramitação seguida nos respectivos recursos e a sua compatibilidade com o disposto no artigo 32.º da Constituição, por um lado; e, por outro, a circunstância de vigorar, em processo penal, um «elenco taxativo» de nulidades da sentença, nos termos do disposto nos artigos 379.º e
425.º, n.º 4, do CPP (cf. pág. 24 dos autos).
Ora, não tendo o recorrente incluído tais normas – que integram a ratio decidendi do acórdão impugnado – no objecto do recurso, ocorre manifesta inutilidade na dirimição da questão que surge reportada ao dito artigo 61.º, n.º
1, alínea b), já que o sentido da decisão se manteria sempre, com base no dito fundamento alternativo.
Nestes termos – e pelas razões apontadas – somos de parecer que a presente reclamação deverá ser julgada improcedente.”
1.6. Considerando que nesse parecer o indeferimento da reclamação se baseava em fundamentos (inutilidade do conhecimento das questões de inconstitucionalidade relativas aos artigos 61.º, n.º 1, alínea b), e 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) não invocados no despacho reclamado, determinou o relator a audição do reclamante, tendo esta, na resposta apresentada, aduzido o seguinte:
“O incidente processual em que se insere esta resposta não é mais nem menos do que uma reclamação contra a rejeição dum recurso, em que se debate apenas a questão de saber se existem ou não fundamentos que justifiquem a inadmissibilidade do recurso.
O douto despacho cuja notificação concedeu ao reclamante a oportunidade desta resposta traz subjacente este pressuposto que, todavia, não foi tomado na devida consideração no douto parecer em mérito.
Significa isto que, para não se postergar uma vez mais as exigências do contraditório, não são oportunas nesta fase quaisquer considerações que reflictam a questão de fundo de saber se a norma contida na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na interpretação equacionada nos autos, ofende ou não a Constituição da República.
Esta questão é, como parece óbvio, posterior à da admissão do recurso tal como vem postulada neste momento processual.
Dito de outro modo: o reclamante não se pronunciou ainda sobre a questão de fundo relativa a esse preceito e só o fará, em alegações, se e quando o recurso vier a ser recebido.
Não parece, por conseguinte, curial nem conforme às exigências do contraditório que se invoque, para este efeito da não admissibilidade do recurso, jurisprudência que o reclamante agora veio a saber que existe no sentido de se considerar aquele preceito conforme às imposições da Lei Fundamental.
Dito isto, entende o reclamante, com o devido respeito pela opinião contrária, que o douto parecer a que se alude não merece acolhimento.
O reclamante aceita que nenhum interesse processual concreto justifica o conhecimento da constitucionalidade da norma do artigo 411.°, n.º 1, do CPP, se o Tribunal não puder apreciar a da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.° do CPP, condição sem a qual o recurso se transformaria num exercício pouco mais do que académico.
Todavia, o reclamante considera que o Tribunal pode e deve conhecer desta última questão, uma vez que não pode aceitar, nem aceita, que se repute previsível a interpretação que veio a ser adoptada daquela norma e, portanto, repudia a afirmação de que não se trata duma decisão surpresa.
Há-de ter-se por indiscutível que o reclamante não tem a possibilidade material de conhecer todas as decisões proferidas sobre uma determinada questão concreta do Direito, no caso, sobre a constitucionalidade daquela norma.
Não a tem sequer quanto a decisões publicados, muito menos a tendo, por conseguinte, de decisões não publicados.
É este o caso das decisões que o douto parecer em resposta traz à colação (Acórdãos n.ºs 189/01, 369/01 e 435/01), de cujo existência o reclamante só agora tomou nota e que supõe não estarem sequer publicados.
A surpresa duma decisão tem de aferir-se também pela extensão do conhecimento que, no mundo jurídico, se tem ou não tem da questão que lhe está subjacente.
Ora, a melhor e mais elucidativa demonstração de que a interpretação da norma em causa não era expectável, apesar da existência daquelas decisões jurisprudenciais, está, se bem se cuida, no simples facto de a investigação, que se quis exaustiva e profunda, de dois dos nossos mais notáveis e consagrados Mestres de Direito que subscreveram o parecer junto aos autos (os Professores Manuel da Costa Andrade e Maria João Antunes) não aludirem a tais decisões, cuja existência desconheciam.
O conhecimento que, em Setembro de 2002, a generalidade dos juristas bem informados tinham da questão a que nos vimos reportando era apenas a que está vazada naquele parecer, não sendo razoável exigir-se do reclamante sensibilidade mais apurada do que a dos seus autores, que convêm na surpresa da decisão.
Quanto a esta parte, por conseguinte, entende o reclamante que não pode merecer acolhimento o douto parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto.
Do mesmo modo se entende que o não merece na parte em que invoca o fundamento autónomo do carácter taxativo das nulidades da sentença constantes dos artigos 379.° e 425.°, n.º 4, do CPP, como causa de rejeição do recurso que incide sobre a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 61.°.
Sem desconsideração pelo entendimento contrário, a questão do contraditório é anterior à da prolação da sentença.
Os preceitos dos artigos 379.° e 425.°, n.º 4, regulam os vícios da própria sentença; todas as normas que impõem o contraditório são anteriores à sentença em si.
O argumento invocado no douto parecer em resposta prova de mais.
Conduziria, por exemplo, a que uma sentença proferida sem audiência de discussão e julgamento fosse válida, porque não continha nenhuma das nulidades do artigo 379.°.
Trata-se, bem se vê, dum absurdo.
Embora numa perspectiva diferente, o reclamante já teve a oportunidade de tecer, na reclamação que apresentou, algumas breves considerações sobre esta questão, que se mantêm válidas.
As normas dos artigos 379.º e 425.º, n.º 4, reportam-se à regularidade formal e substancial da decisão; todas as normas relativas ao exercício do contraditório (nelas incluída a que agora nos interessa) prendem-se com a génese da decisão e são-lhe anteriores.
A falta de audição do reclamante sobre as questões invocados como fundamento da decisão de rejeição do recurso é uma questão que antecede a própria decisão e não tem nada a ver com as nulidades definidas nos artigos
379.° e 425.°.
Se estes preceitos contivessem uma enumeração taxativa das nulidades da sentença, no sentido que vem invocado no douto parecer, estava legitimado absurdo de ser válida uma sentença proferida sem audiência prévia de discussão e julgamento.
Dito de outro modo e para terminar: há muitas outras nulidades, além das previstas naqueles preceitos, que antecedem a prolação da sentença mas lhe são anteriores ou externas.
É esse, salvo melhor juízo, o caso da recusa do contraditório consubstanciada na interpretação da alínea b) do n.º 1 do artigo 61.° do CPP cujo inconstitucionalidade o reclamante invoca.
Termos em que deve negar-se provimento ao douto parecer do Ex.mo Magistrado do Ministério Público e conhecer-se da reclamação, provendo-a.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Como resulta do precedente relatório, a rejeição do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça assentou num duplo fundamento: (i) intempestividade, por se considerar que o prazo de interposição do recurso se iniciou com o depósito do acórdão do Tribunal da Relação na secretaria (artigo 411.º, n.º 1, do CPP); e (ii) irrecorribilidade da decisão, por se tratar de acórdão confirmativo de decisão da 1.ª instância em processo em que, apesar de ocorrer concurso de infracções, ao crime mais grave era aplicável pena de prisão não superior a oito anos (artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP).
A arguição de nulidade do anterior acórdão foi indeferida por se entender que: (i) o artigo 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP (que consagra o direito do arguido a ser ouvido pelo tribunal sempre que este deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte) não se aplica ao caso de rejeição do recurso penal, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, do mesmo Código; e
(ii) atento o carácter taxativo das nulidades das sentenças e dos acórdãos enunciadas nos artigos 379.º e 425.º, n.º 4, do citado Código.
Por último, o recurso interposto para o Tribunal Constitucional para apreciação da constitucionalidade das interpretações dadas aos artigos 61.º, n.º 1, alínea b) (conjugado com o artigo 420.º, n.º 1),
411.º, n.º 1, e 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, não foi admitido, pelo despacho que constitui objecto da presente reclamação, por: (i) quanto à norma do artigo
61.º, n.º 1, alínea b), a mesma não ter sido aplicada; (ii) quanto às normas dos artigos 411.º, n.º 1, e 400.º, n.º 1, alínea f), a arguição de nulidade do primeiro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não constituir modo nem momento adequado de suscitar as respectivas questões de inconstitucionalidade, sendo certo que as interpretações acolhidas não constituem “decisões surpresa”.
Cumpre começar por analisar a pertinência das razões invocadas no despacho reclamado para depois, sendo caso, se apreciarem as razões suplementares aduzidas no parecer do Ministério (inutilidade do conhecimento das questões de inconstitucionalidade reportadas aos artigos
411.º, n.º 1, e 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP, por existência de fundamentos autónomos suficientes para impor a mesma decisão, mesmo que as questões de inconstitucionalidade procedessem).
Quanto à questão da inconstitucionalidade da interpretação conjugada das normas dos artigos 61.º, n.º 1, alínea b), e 420.º, n.º 1, do CPP, o que o reclamante questiona é a interpretação segundo a qual, entendendo o tribunal que o recurso deve ser rejeitado por força deste artigo
420.º, n.º 1, não tem de ouvir o recorrente, como previsto naquele artigo 61.º, n.º 1, alínea b). Esta interpretação foi efectivamente aplicada pelo acórdão que indeferiu a arguição de nulidades e foi suscitada adequada e tempestivamente pelo recorrente nesse mesma arguição, já que respeitava a uma causa de nulidade da decisão, relativamente à qual não se encontrava esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido. É certo que este tribunal “não aplicou” o artigo 61.º, n.º 1, alínea b), mas é justamente nessa “não aplicação”, no caso da situação prevista no artigo 420.º, n.º 1, que consiste a aplicação da interpretação normativa arguida de inconstitucional pelo recorrente. Não é, assim, de acolher o primeiro fundamento invocado no despacho que não admitiu o recurso de constitucionalidade.
Relativamente à norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, entende-se que, tendo o recorrente visto o seu recurso ser admitido pelo Tribunal da Relação, não lhe era exigível que previsse a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça vir a adoptar entendimento diverso, sobretudo porque, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, quer no artigo 411.º, n.º 1, quer no artigo 425.º, n.º 5 (n.º 6, na numeração dada pelo Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro), tem vindo a ser rejeitada pela doutrina (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª edição, Rei dos Livros, Lisboa, 2002, pág. 59) a tese de que o prazo de recurso dos acórdãos da Relação se conta do respectivo depósito
(depósito cuja previsão é mesmo questionada) na secretaria (cf. declaração de voto do Cons. Carmona da Mota aposta no acórdão de 20 de Março de 2003, a fls.
26 e 27 destes autos). Assim, quanto a esta norma, nenhum obstáculo existiria, à partida, ao conhecimento do recurso.
Porém, já solução diversa se impõe quanto à norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP. Na verdade, a interpretação acolhida no acórdão recorrido, que actualmente se mostra sufragada pela generalidade da doutrina e da jurisprudência, é uma interpretação suportada perfeitamente pela formulação literal do preceito, com a qual o recorrente devia contar, mesmo se,
à data da interposição do recurso, ignorasse, em toda a sua extensão, a jurisprudência já existente sobre o tema. Não se tratava, pois, de uma interpretação imprevisível, que dispensasse o recorrente de suscitar a sua inconstitucionalidade para abrir via à interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Porém, mesmo que assim se não entendesse, sempre se trataria de questão de inconstitucionalidade manifestamente infundada – como este Tribunal já reconheceu, designadamente no Acórdão n.º 435/01 e na Decisão Sumária n.º 152/03. Na verdade, a consagração, no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, do direito ao recurso em processo penal como uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido não impõe, directa ou indirectamente, o direito a um duplo recurso ou a um triplo grau de jurisdição. Não resulta da consagração constitucional das garantias de defesa do arguido, incluindo o direito ao recurso, um “direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior” – um direito a duplo grau de recurso, ou ao triplo grau de jurisdição.
Por estas razões, é inadmissível o recurso na parte relativa à norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP.
Resta apreciar as objecções levantadas no parecer do Ministério Público quanto à utilidade do recurso, quanto às restantes normas impugnadas.
Ora, como o próprio reclamante reconhece, “nenhum interesse processual concreto justifica o conhecimento da constitucionalidade da norma do artigo 411.°, n.º 1, do CPP, se o Tribunal não puder apreciar a da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.° do CPP, condição sem a qual o recurso se transformaria num exercício pouco mais do que académico”. Assim é, com efeito. Na verdade, mesmo que viesse a ser julgada inconstitucional a interpretação dada pelo acórdão recorrido à norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP e, assim, fosse de considerar tempestiva a interposição do recurso penal, sempre persistiria o outro fundamento autónomo da rejeição deste recurso (a irrecorribilidade da decisão, por força do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do mesmo Código), relativamente ao qual, como se viu, não se pode conhecer do recurso de constitucionalidade.
E também procede a objecção relativa à inutilidade da apreciação da questão da constitucionalidade da interpretação dada ao artigo
61.º, n.º 1, alínea b), conjugado com o artigo 420.º, n.º 1, ambos do CPP, por existência de outro fundamento autónomo (o carácter taxativo da enumeração das nulidades de decisão judicial) para o indeferimento da arguição de nulidade. Na verdade, o ora reclamante não impugnou este outro fundamento, não competindo ao Tribunal Constitucional apreciar oficiosamente a sua correcção face ao direito ordinário nem a sua conformidade constitucional. Assim, mesmo que viesse a ser julgada inconstitucional a interpretação normativa que considerava não ser devida a audição do recorrente prévia à rejeição do recurso, o indeferimento da arguição de nulidades sempre se manteria com base no fundamento – não impugnado
– do carácter taxativo da enumeração legal das nulidades de decisão, que não prevê como nulidade essa falta de audição.
Assim, entende-se não ser de conhecer do recurso na parte relativa à questão de constitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, por não ter sido suscitada – devendo e podendo sê-lo – antes de proferido o acórdão recorrido e por ser manifestamente infundada, nem na parte relativa às questões de inconstitucionalidade das normas dos artigos
61.º, n.º 1, alínea b) (conjugado com o artigo 420.º, n.º 1) e 411.º, n.º 1, do mesmo Código, por inutilidade no seu conhecimento.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação, embora por razões não inteiramente coincidentes com as do despacho reclamado.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 8 de Outubro de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos