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Proc. n.º 451/03 TC - 1ª Secção Rel.: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - Nos autos de recurso supra identificados em que é recorrente A., com os sinais dos autos, foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 - A., identificada nos autos, requereu, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, a suspensão de eficácia de despacho do Inspector Adjunto dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras do Departamento de Investigação que lhe determinou que abandonasse voluntariamente o país no prazo de vinte dias por se encontrar em situação de permanência irregular no território nacional; mais foi advertida que o não abandono voluntário do País constitui crime de desobediência incorrendo ainda no procedimento de expulsão administrativa.
A pretensão foi negada por sentença de fls. 75 e segs. que, em síntese, considerou que só o acto de expulsão causaria os prejuízos invocados, não existindo nexo de causa e efeito, determinável através da teoria da causalidade invocada, entre a execução do acto e os prejuízos a sofrer pela requerente.
A requerente interpôs recurso desta sentença para o Tribunal Central Administrativo, alegando, em síntese, e na parte que importa, que:
- Assinara, em Setembro de 2002, com a entidade patronal um contrato de trabalho a termo pelo período de um ano;
- O vínculo laboral goza de protecção constitucional (artº 59º da CRP), não podendo a requerente ser despedida sem justa causa;
- A situação de indocumentado ofende as garantias constitucionais, especialmente a da segurança do emprego constante do artº 53º da CRP;
- Os contratos de trabalho estabelecidos não podem ser postos em causa com fundamento no incumprimento por terceiros de normas administrativas a que estavam vinculados;
- O respeito pela Constituição é do interesse nacional e justifica que se lance mão da medida excepcional do artigo 88º do DL n.º 244/98, de 8 de Agosto, sem o qual a requerente é colocada numa situação de autêntico despedimento sem justa causa;
- O acto administrativo em causa que notifica a requerente para
'legalizar' uma situação que reputa de irregular impõe-lhe para o efeito que saia do território nacional deixando-lhe como alternativa a detenção para consequente expulsão, o que conduz a uma situação que, a concretizar-se, é de todo irreversível;
- O acto administrativo cuja suspensão se requer opera um despedimento administrativo, absolutamente selvagem, que fere dispositivos constitucionais e o essencial das normas relativas á formação do contrato de trabalho;
- Não se pode, numa atitude de completo desrespeito pelas normas e princípios de direito internacional expulsar um cidadão estrangeiro que se encontra vinculado por contrato de trabalho a uma entidade patronal nacional;
- Uma expulsão sumária processada nos termos pretendidos impediria a trabalhadora de peticionar nos tribunais portugueses o reconhecimento dos seus direitos laborais, sendo certo que essa é uma outra garantia que lhe advém tanto da Constituição como do direito internacional;
- A prevalecer a tese da decisão recorrida teríamos instalada uma autêntica selva em Portugal, legitimando-se a notificação para a saída do País de todos os trabalhadores estrangeiros que foram contratados para trabalhar por entidades portuguesas que não cumpriram as disposições legais atinentes ao trabalho de estrangeiros;
- Há um manifesto equívoco na decisão recorrida quando refere que
'depende da Requerente impedir que o acto suspendendo lhe causa os invocados prejuízos';
- A causa dos prejuízos que a requerente invoca não está numa ilegalidade de que ela própria seria responsável, que a impede de continuar a prestar a sua actividade á entidade patronal que a empregou;
- O direito ao trabalho goza de protecção constitucional e prevalece sobre a questão administrativa inerente à existência ou inexistência de visto;
À luz da Lei n.º 20/98, de 12/5 e do artigo 15º n.º 1 da CRP, que tem aplicação imediata nos termos do artigo 18º da Constituição, o incumprimento dos normativos que impõem o depósito do contrato de trabalho e dos citados no artigo 7º daquela Lei não pode prejudicar os direitos constituídos de que sejam titulares os trabalhadores estrangeiros contratados por entidades portugueses;
Sustentar o contrário constituiria uma violação frontal do artigo
15º da Constituição;
Ordenar a um trabalhador estrangeiro, vinculado a uma empresa portuguesa por contrato de trabalho, que abandone o País, causa um prejuízo irreparável;
Na mesma peça, a requerente concluía:
'1 - A douta decisão recorrida causa à recorrente um prejuízo irreparável;
2 - A douta decisão recorrida ofende o disposto no artº 15º da Constituição, directamente aplicável por força do artº 18º do mesmo diploma;
3 - Deve a douta decisão recorrida ser revogada, como é da mais elementar justiça.'
Pelo acórdão de fls. 153 e segs., o TCA negou provimento ao recurso.
O aresto começou por referir os elementos necessários para se poder dar como preenchido o requisito constante do artigo 76º n.º 1 alínea a) da LPTA, a saber: verificação provável de determinados prejuízos, relação de causalidade adequada entre a execução do acto e os prejuízos invocados e impossibilidade ou dificuldade de reparação dos prejuízos.
E, apreciando a sentença então impugnada, disse depois:
'Portanto, se os prejuízos alegados pela agravante estão relacionados com a expulsão e se esta não é consequência necessária do acto suspendendo - como de facto o não é - então não se mostra preenchido o 2º elemento integrador do requisito da alínea a) do n.º 1 do artº 76º da LPTA - causalidade adequada entre a execução do acto e os prejuízos invocados - o que, para além de implicar a prejudicialidade do conhecimento do 3º elemento integrador - impossibilidade ou dificuldade de reparação dos prejuízos - implica também e logicamente a inverificação do próprio requisito.
E se da execução do acto suspendendo não é possível estabelecer uma relação de causalidade adequada entre este e os prejuízos invocados, então também não se vê - nem a agravante demonstra - como é que a interpretação vertida na sentença recorrida poderia ter violado os preceitos invocados nas conclusões das alegações'
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC, nele dizendo a recorrente:
'Considera a recorrente que a aplicação do disposto no artº 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, no caso concreto, é inconstitucional na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão sob recurso.
A interpretação dada àquele preceito ofende os arts. 3º, 13º, 15º,
16º, 18º, 53º, 59º da Constituição da República Portuguesa.
A recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade no recurso jurisdicional que apresentou no Tribunal Central Administrativo.
.............................................................................................................'
O recurso foi admitido no tribunal 'a quo', o que, nos termos do artigo 76º n.º 3 da LTC, não vincula o Tribunal Constitucional.
A recorrente apresentou alegações no tribunal 'a quo', mas a tal acto processual não se pode atribuir qualquer efeito, uma vez que as alegações, no recurso de constitucionalidade, devem ser produzidas no Tribunal Constitucional nos termos do artigo 79º da LTC e só depois de o recorrente ter sido notificado para tal.
Cumpre decidir.
2 - O recurso previsto no artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC tem como pressuposto a suscitação da questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, perante o tribunal que proferiu a decisão impugnada (artigo 72º n.º 2 da LTC).
Por outro lado, o recurso tem por objecto normas de direito infraconstitucional (ou uma sua interpretação) e não a própria decisão judicial enquanto subsume (aplica) aos factos o direito - não está previsto no nosso ordenamento jurídico um recurso de amparo.
Quer isto dizer que, no caso, o aludido pressuposto só se mostraria preenchido se a recorrente tivesse suscitado uma questão de inconstitucionalidade normativa (respeitante à norma do artigo 76º da LPTA) nas alegações de recurso para o TCA.
Tal, porém, não se verifica, como claramente resulta da síntese, que acima se fez, das alegações de recurso para o TCA e das respectivas conclusões.
Com efeito, tudo o que ali se disse, com invocação de preceitos ou princípios constitucionais e de normas de direito internacional, tem, directa e exclusivamente, a ver com o próprio acto administrativo em causa e, depois, com a própria decisão judicial recorrida, a quem nas conclusões (2ª) expressamente se imputa a violação do artigo 15º da Constituição.
A verdade é que a interpretação normativa (da norma que se contém no artigo 76º n.º 1 alínea a) da LPTA) feita na sentença do TAC de Lisboa - e depois confirmada no acórdão ora impugnado - é apenas a de que o preenchimento do requisito ali previsto depende, entre outros elementos, da verificação de um nexo de causalidade adequada entre a execução do acto em causa e os prejuízos invocados. E foi a ausência desse nexo de causalidade que, no caso, determinou o indeferimento do pedido de suspensão de eficácia.
Nada sobre a constitucionalidade desta autêntica interpretação normativa foi alegado pela recorrente que, como se viu, imputou à decisão judicial recorrida a violação do artigo 15º da Constituição.
Não se mostra, assim, suscitada, perante o tribunal recorrido, a questão da suposta inconstitucionalidade da norma do artigo 76º da LPTA que a recorrente pretende ver apreciada por este Tribunal, soçobrando, deste modo, o aludido pressuposto do recurso interposto ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
.............................................................................................................'
Notificada desta decisão, vem dela reclamar a recorrente para a conferência, dizendo, em síntese, que:
- suscitou no recurso interposto para o Tribunal Central Administrativo uma questão de constitucionalidade normativa;
- o acórdão recorrido, decidindo que se não verificava entre o acto administrativo em causa e os prejuízos invocados um nexo de causalidade adequada, fez uma interpretação do artigo 76º n.º 1 alínea a) da LPTA;
- constando das conclusões das alegações de recurso para o TCA que a decisão recorrida violava o artigo 15º da Constituição - como era imposto pelo
ónus de concluir - não deixou de suscitar a questão de constitucionalidade no texto das alegações.
Na sua resposta, sustentou o recorrido que a reclamação deve ser indeferida.
Cumpre decidir.
2 - O fundamento da decisão reclamada é muito claro: pretendendo a recorrente a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 76º n.º 1 alínea a) da LPTA, não fora suscitada pela recorrente qualquer questão de constitucionalidade durante o processo - perante o tribunal 'a quo' - dessa norma; nas alegações para o TCA, a inconstitucionalidade, por suposta violação do artigo 15º da Constituição, era apontada ao acto administrativo em causa e à própria decisão recorrida.
E - diga-se desde já - tal fundamento não radicava apenas nos termos das conclusões das alegações de recurso, como a reclamante pretende fazer crer, mas de todo o texto dessas alegações.
Recorde-se, a propósito, o que se escreveu na decisão sumária, depois de se afirmar que constitui pressuposto do recurso de constitucionalidade, em fiscalização concreta, a suscitação de uma questão de constitucionalidade normativa durante o processo:
'Tal, porém, não se verifica, como claramente resulta da síntese, que acima se fez, das alegações de recurso para o TCA e das respectivas conclusões.”(agora sublinhado).
Não tem, pois, qualquer cabimento o fundamento da reclamação quando se pretende fazer crer que a decisão reclamada assentou exclusivamente no teor das conclusões formuladas nas alegações de recurso para o TCA.
Esclareça-se, apenas, que a referência a esse teor tinha tão só o objectivo de reforçar o entendimento de que a reclamante não alegara inconstitucionalidades da norma ínsita no artigo 76º n.º 1 alínea a) da LTC - as conclusões correspondiam, com rigor, ao que a reclamante defendera no texto das alegações.
Uma vez mais se salienta que, respeitante àquela norma, a única interpretação (normativa) que se vislumbra no acórdão recorrido é a de que a norma impõe a verificação de um nexo de causalidade (em termos de causalidade adequada) entre o acto administrativo em causa e os prejuízos, alegadamente irreparáveis ou de difícil reparação, invocados. Tudo o mais, em particular a conclusão de que, no caso, não ocorria o nexo causal, constitui já o momento aplicativo da norma - a aplicação da norma aos factos - ou seja, o consubstancia a própria decisão judicial, cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional não sindica.
Ora, a suposta inconstitucionalidade invocada pela reclamante no recurso para o TCA, reportava-se directamente à não suspensão de eficácia do acto administrativo em causa, ofendendo ela (a decisão, em bom rigor) o artigo
15º da CRP. Diferente seria se a reclamante tivesse posto em causa a constitucionalidade da exigência, em todos os casos, da verificação do referido nexo de causalidade, o que ela de todo não fez.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs., devendo ter-se em conta que a reclamante goza do benefício de apoio judiciário.
Lisboa, 28 de Outubro de 2003
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida