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Proc. nº 31/92
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - A A., em liquidação, com sede na Rua
---------------, -----------------, e domicílio para efeito de liquidação na Rua
------------------, nº ----------------, ---------------, intentou acção declarativa, com processo sumário, no 9º Juízo Cível da comarca de Lisboa, contra B., residente na urbanização do ------------------------, Lote
--------------------, --------------, alegando e peticionando, em síntese, o seguinte:
- A Autora exerceu o comércio bancário até ao dia 27 de Novembro de 1986, data em que, por determinação do Governo, entrou em liquidação nos termos do Decreto-Lei nº 30689, de 27 de Agosto de 1940;
- No exercício da sua actividade, contratou com o Réu a abertura de uma 'conta de depósito à ordem';
- À data de 31 de Agosto de 1986, o extracto da referida conta apresentava um saldo negativo no montante de 734.064$00;
- Como contrato de adesão, segundo os usos, prática bancária e normas aplicáveis, o contrato de depósito bancário implica para o depositante, nomeadamente a obrigação de não levantar valor monetário superior ao depositado e, quando tal aconteça - como no presente caso - constituiu-se o depositante em dívida para com o depositário, como o Réu se constituiu;
- Deve o Réu à Autora, a quantia já referida, acrescida de juros à taxa máxima para operações activas, fundo de compensação e imposto de selo, o que tudo soma a importância de 1.221.858$00, no pagamento da qual e dos respectivos acréscimos legais, deve aquele ser condenado.
Contestou o Réu suscitando a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 12º do Decreto-Lei nº 30689, e, em consequência, excepcionando a legitimidade e capacidade judiciária da comissão liquidatária, com base no entendimento de que aquele preceito caducou com o começo da vigência da actual Constituição por ser incompatível com o princípio da reserva da função jurisdicional consagrado nos artigos 205º e 206º da Constituição.
No mesmo articulado, o réu chamou à demanda B. e mulher C..
Devidamente citados, vieram estes contestar, por excepção, suscitando para tanto a inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 30689, que terá cessado a sua vigência aquando da entrada em vigor da Constituição de
1976, por via do que a comissão liquidatária não tem capacidade de exercício do direito de que se arroga e não possui, por si, capacidade judiciária.
Depois de a Autora haver respondido às contestações apresentadas pelos Réus foi, por decisão de 11 de Julho de 1990, julgada procedente a acção e condenados os Réus solidariamente no pedido, desatendendo-se do mesmo passo as questões de constitucionalidade por estes suscitadas no processo.
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2 - Desta decisão levaram os Réus B. e mulher recurso ao Tribunal da Relação de Lisboa, havendo, na respectiva alegação, aduzido, no essencial, o seguinte:
- O Decreto-Lei nº 30689, criou um processo especial de falência e subsequente liquidação dos estabelecimentos bancários, que os subtrai à jurisdição dos tribunais comuns, confiando-os a uma comissão liquidatária, cuja composição e competência define;
- Ora, porque a função jurisdicional do Estado está reservada exclusivamente aos tribunais (artigos 205º e 206º da Constituição), os artigos 1º, §§1º e 2º, 11º,
12º e 34º do citado diploma caducaram com a entrada em vigor da actual Constituição, porque absolutamente incompatíveis com o princípio da reserva aos tribunais da função jurisdicional;
- Acresce que a declaração de falência e a subsequente liquidação são actos de justiça e visam dirimir conflitos de interesse e têm de ser declaradas por sentença judicial;
- Daí serem inconstitucionais, entre outras, as normas dos artigos 12º, 20º e
21º do citado Decreto-Lei nº 30689;
- Não pode ser aplicado o disposto no artigo 21º, nº 1, do mesmo diploma, que dá competência à comissão liquidatária para representar a massa, activa e passivamente, em juízo e fora dele.
- A comissão liquidatária que outorgou na procuração forense junta aos autos, propondo a acção, não representa a A., verificando-se a ilegitimidade da representação desta sociedade, que só pelos seus órgãos próprios pode ser assumida.
Depois de a Autora produzir contra-alegação sustentando a confirmação da sentença recorrida, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 4 de Julho de 1991, negou provimento ao recurso e confirmou, por inteiro, a decisão recorrida.
Para tanto, além de outras, fundou-se nas razões seguintes:
'Consideramos razoável que o Executivo regulando este aspecto da actividade das instituições bancárias tenha logo deixado claro que, na hipótese de vir a ser cancelada a autorização para o exercício da actividade do estabelecimento bancário, qual será a entidade que, a partir de então, passará a cuidar dos interesses de tal instituição e que, inclusivamente, o Executivo tenha logo explicitado qual será a composição dessa entidade: a especificidade e a relevância dos interesses em jogo aconselham - se não mesmo exigem - que tal se faça. A esse órgão chama o D. Lei 30689 `comissão liquidatária' e determina que será a ele que competirá a representação activa e passiva da instituição cuja actividade venha a ser bloqueada e cuja liquidação seja ordenada por decisão do executivo; assim procedendo o Executivo actuou, a nosso ver, realística e coerentemente: os interesses em jogo impõem que os problemas da instituição em causa sejam logo entregues a `experts' que possam, de imediato, providenciar para que, no contexto surgido, esses problemas obtenham as soluções económicas e técnicas mais apropriadas'.
E mais adiante:
'No caso em apreço o que está em causa é saber se a tal `comissão liquidatária' pode outorgar numa procuração para que o estabelecimento bancário em liquidação possa recorrer a Tribunal. Concluímos pela afirmativa; não contraria nenhum princípio constitucional que a comissão assim proceda, e também não contraria nenhuma lei infraconstitucional que, de harmonia com as condições inicialmente estabelecidas e aceites, seja a comissão liquidatária a representar activa e passivamente a instituição bancária cuja autorização para o exercício da actividade o executivo haja decidido cancelar; desde a criação dessa instituição bancária que se sabia (que qualquer pessoa poderia saber - porque a lei está previsivelmente ao alcance de todos, art. 6º do C. Civil) que assim iria suceder na eventualidade de o Governo não querer que essa instituição continuasse em actividade.
Repete-se: aquela é uma actividade que se quer seja condicionada e controlada e os interessados foram desde logo disso inteirados, como igualmente tomaram conhecimento dos órgãos que, por causa dela, foram instituídos. E eles só deixarão de actuar se e quando, actuando, ofendam princípios ou interesses que se lhe considerem prevalecentes. E, tendo presente o caso concretamente agora em apreço, isso não acontece: a comissão liquidatária da apelada necessitou de recorrer a juízo e, por isso e para isso, constitui um mandatário. E ela tinha - e tem - poderes para isso - art. 21º, nº 1, do D. Lei nº 30689'.
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3 - Inconformados com esta decisão e sob invocação do disposto nos artigos 70º, nºs 1, alínea b) e 2, 71º e 72º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, trouxeram os Réus B. e mulher o processo ao Tribunal Constitucional em ordem à fiscalização da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 11º, 20º e
21º do Decreto-Lei nº 30689, cuja inconstitucionalidade haviam suscitado durante o processo.
Nas alegações que a seguir produziram, formularam as seguintes conclusões:
1ª - O Decreto-Lei nº 30689, de 27.08.40, criou um processo de falência e de liquidação das instituições de crédito que, nomeadamente nos artigos 11º, 20º e
21º, subtrai-o à jurisdição dos tribunais comuns, confiando-o a uma comissão liquidatária, em última análise designada pela administração;
2ª - Ora, a função jurisdicional do Estado está reservada, exclusivamente, aos tribunais, que são os órgãos de soberania que administram a justiça e dirimem os conflitos de interesses, públicos e privados - artigos 205º e 206º da Constituição da República;
3ª - Assim, as normas referidas em 1) caducaram com a entrada em vigor da actual Constituição, porque absolutamente incompatíveis com o referido princípio da reserva do juiz.
E finaliza-se, pedindo o julgamento de inconstitucionalidade das normas dos artigos 11º, 20º e 21º, corpo e nºs 1º, 3º, 6º e 9º, do Decreto-Lei nº 30689, por ofensa ao disposto nos artigos 205º e 206º da Constituição (na versão operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro).
De seu lado, a A., na contralegação oferecida, começou por suscitar uma questão prévia relativa ao âmbito do objecto do recurso, extraindo depois, quanto a esta matéria, as seguintes e principais conclusões:
1ª - Os recorrentes pedem a apreciação da constitucionalidade das normas dos artºs 11º, 20º e 21º do Dec.Lei 30689 de 27.08.40, sendo porém óbvio que tais artigos contêm efectivamente mais de duas dezenas de normas e, óbvia e logicamente não foram todas aplicadas pela decisão do Tribunal a quo.
2ª - Desta forma, também porque o objecto do recurso só pode ser definido pelas
'conclusões', e como as dos recorrentes são obscuras sobre a indicação das concretas normas aplicadas no tribunal a quo cujo julgamento se pretenda agora nesta instância, uma vez que omitem esta indicação concreta,
3ª - Há-de concluir-se que os recorrentes não deram sério e suficiente cumprimento ao ónus alegatório disposto no nº 2 do art. 75º-A da Lei 28/82.
4ª - Ónus este que é insuprível pelo Tribunal Constitucional já que se trata de definir o objecto do seu julgamento e apenas lhe permite a Lei, livremente, determinar o Direito Constitucional aplicável conforme dispõe o art. 79º-C da Lei 28/82.
5ª - Deste modo e por esta razão, deve o recurso ser rejeitado liminarmente, por falta deste essencial requisito e pressuposto da sua admissão.
6ª - Caso assim não se julgue, deve então e sempre delimitar-se o objecto do recurso à apreciação da última parte do art. 11º e nºs 1 e 3 do art. 21º do Dec.Lei 30689.
7ª - É que nas instâncias os recorrentes limitaram-se a excepcionar alegando que a recorrida não estava regular e legitimamente representada nos autos e,
8ª - De resto, resulta evidente que na decisão recorrida as normas efectivamente aplicadas, como ratio decidendi da decisão, foram apenas as dos nºs 1 e 3 do art. 21º e implicitamente a parte final do art. 11º.
9ª - Deste modo o objecto do recurso deve delimitar-se apenas às normas dos nºs
1 e 3 do art. 21º e parte final do art. 11º todos do Dec.Lei 30689.
E quanto ao mérito, a Autora, no essencial, alcançou as conclusões seguintes:
1ª - A actividade bancária, pública ou privada, é restringida e controlada directamente pelo Governo e Banco de Portugal, quer na permissão do acesso ao exercício da actividade, quer na sua continuação.
2ª - Desde logo como tal é da competência administrativa conceder licença de exercício, também é da sua competência própria retirar essa licença.
3ª - Não se vislumbra em como estes actos - que são estruturalmente idênticos - possam ser da competência e 'reserva do juiz' ou que possam ferir o princípio da igualdade dos agentes económicos.
4ª - Também nada tem de inconstitucional ou violador daqueles princípios que, por consequência natural e óbvia da extinção do objecto social, o património que a ele estava afecto seja forçosamente liquidado.
5ª - Também em nada fere com aqueles princípios constitucionais que, a multiplicidade dos actos e tarefas consistentes numa liquidação e que são basicamente, determinar o passivo, determinar o activo, realizá-lo e pagar o passivo, seja atribuída a uma comissão liquidatária constituída pelos representantes dos credores sociais, dos accionistas e, do Governo.
6ª - Quanto ao órgão de legal representação social da sociedade em liquidação, e
ás disposições legais do Dec.Lei 30689, arts. 23º e 20º nomeadamente, bem como as dos nºs 1 e 3 do art. 21º que lhe dão o poder de exercer direitos e estar em juízo, não se vislumbra como tais normas violem algum princípio constitucional.
Pelo que, deve liminarmente rejeitar-se a apreciação do mérito do recurso, devendo, no caso de assim não se entender limitar o seu objecto à apreciação dos nºs 1 e 3 do art. 21º e última parte art. 11º todos do Dec. Lei 30689, e, sobre estas devendo proferir-se acórdão que as julgue não desconformes com a Constituição e, por isso vigentes, tudo com as legais consequências.
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4 - Aqui chegados importa, antes de mais, conhecer das questões prévias suscitadas na alegação da A..
A admissibilidade do tipo de recurso utilizado pelo recorrente [artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro] está condicionada, além de outras, pela verificação conjugada de dois requisitos ou pressupostos processuais: a) A inconstitucionalidade de certa norma há-de ter sido previamente suscitada pelo recorrente durante o processo; b) Tal norma terá de vir depois a ser utilizada pelo tribunal na decisão objecto do recurso, como sua ratio essendi como um dos seus suportes normativos (cfr. por todos os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 62/85 e 94/88, Diário da República, II série, de 31 de Maio de 1985 e de 22 de Agosto de 1988).
Muito embora haja sido suscitada durante o processo a questão da inconstitucionalidade de certa norma, sempre que a decisão proferida a final não a haja utilizado como seu fundamento legal, isto é, quando tal decisão tenha sido tirada com referência a outra ou outras disposições normativas, o recurso de constitucionalidade que se dirija à específica fiscalização concreta dessa mesma norma não pode ser admitido por força da ausência de um seu pressuposto de admissbilidade.
Com efeito, o tribunal da causa não tem que pronunciar-se sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de todas as normas cuja legitimidade constitucional seja questionada pelas partes, mas apenas sobre aquelas que venha a aplicar como suporte legal da respectiva decisão. É que, a competência dos tribunais comuns (expressão que aqui se usa para designar todos os outros tribunais com excepção do Tribunal Constitucional) no acesso directo à Constituição é uma competência vinculada, no sentido de apenas compreender as questões de constitucionalidade que tenham por objecto as normas jurídicas susceptíveis de aplicação ao caso sujeito a julgamento.
Sempre que o tribunal da causa se pronunciar sobre a inconstitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma norma fora deste contexto, acaba por proferir uma decisão sem interesse para o seu julgamento, não podendo rigorosamente falar-se então em aplicação ou desaplicação normativa susceptível de abrir a via do recurso de constitucionalidade.
A este respeito, escreveu-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 169/92, Diário da República, II série, de 18 de Setembro de
1982, e agora se repete que 'só quando a norma desaplicada, com fundamento em inconstitucionalidade (ou aplicada, não obstante a suspeita de inconstitucionalidade que sobre ela foi lançada) for relevante para a decisão da causa (isto é, só quando tal norma for aplicável ao julgamento do caso decidido pelo tribunal recorrido), é que se justifica a intervenção do Tribunal Constitucional, em via de recurso. Só nesse caso, com efeito, a decisão que o Tribunal Constitucional vier a proferir sobre a questão de constitucionalidade, que foi apreciada pelo tribunal recorrido, é susceptível de se projectar utilmente sobre a decisão da questão de fundo (ou seja, sobre a decisão da causa julgada por este último tribunal). Ora, o Tribunal Constitucional tem dito repetidamente que o recurso de constitucionalidade desempenha uma função instrumental, só devendo, por isso, conhecer-se das questões de constitucionalidade, se a sua decisão puder influir utilmente na decisão da questão de fundo' (cfr. neste mesmo sentido, os Acórdãos nºs 82/92 e 239/92, Diário da República, II série, respectivamente, de 18 de Agosto e 16 de Novembro de 1992, que se inscrevem numa linha jurisprudencial reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional).
Cabe então, revertendo ao caso sub judice, proceder
à aplicação concreta destes princípios de orientação geral.
Vejamos então.
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5 - No entendimento dos recorrentes, o presente recurso tem como objecto a apreciação da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 11º, 20º, 21º, corpo e nºs 1º, 3º, 6º e 9º do Decreto-Lei nº 30689, que teriam sido aplicados na decisão recorrida.
Mas será efectivamente assim?
Na acção condenatória movida pela Autora, os recorrentes contestaram apenas por excepção, alegando expressamente que 'a comissão liquidatária, que outorgou na procuração forense e que propôs a presente acção, não representa a A., do mesmo modo a dita comissão liquidatária não tem capacidade de exercício do direito de que se arroga e não pode, por si, estar em juízo - artigo 9º do Cód. de Proc. Civil - não possuindo capacidade judiciária'.
A decisão proferida no 9º Juízo Cível, depois de reconhecer à Autora capacidade judiciária e regularidade de representação - e improcedentes as excepções deduzidas - julgou a acção procedente e provada e condenou os réus no pedido.
E esta decisão, como se viu, logrou inteira confirmação no acórdão ora recorrido.
Assim, à luz dos princípios que se deixaram expostos, e tendo presente a natureza instrumental deste recurso, há-de dizer-se que a apreciação constitucional das normas do Decreto-Lei nº 30689, no caso sub judice, só terá sentido, quando a sua estatuição se conexionar por forma directa com a relação juridico-processual discutida na acção, isto é, para tais normas poderem ser objecto do recurso hão-de ter constituído um dos fundamentos do acórdão recorrido, representando a sua ratio decidendi.
Por isso, na economia daquele diploma, cabe averiguar, tão somente, se é constitucionalmente consentido ao Governo retirar, em determinadas condições, a autorização de exercício do comércio bancário a uma instituição comum de crédito e ordenar do mesmo passo a sua imediata liquidação, confiando a prática de todos os actos necessários à liquidação e partilha da massa do estabelecimento a uma comissão liquidatária, presidida por um seu comissário, à qual, nomeadamente, pertence, administrar a massa e representá-la activa e passivamente em juízo e fora dele e tornar efectivos, pelos meios competentes, todos os direitos do estabelecimento bancário.
Vale isto por dizer, face a este quadro jurídico-material, que as normas do Decreto-Lei nº 30689 a sujeitar à sindicância deste Tribunal, são unicamente as normas dos artigos 11º, 20º e 21º
(corpo) e nºs 1 e 3, que fundamentaram e foram utilizadas, explicita ou implicitamente, na decisão recorrida.
E não pode afirmar-se, como o faz a recorrida, que, relativamente a estas normas, os recorrentes não hajam dado cumprimento ao disposto no artigo 75º-A, nº 2 da Lei do Tribunal Constitucional, pois que, tanto na alegação do recurso para o Tribunal da Relação, como no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, e na subsequente alegação, fizeram, não só, expressa indicação das normas a sindicar, como também dos princípios e normas constitucionais que consideram violados por aquelas normas.
Assim sendo, não se tomará conhecimento do recurso no que respeita aos nºs 6 e 9 do artigo 21º do diploma citado, porquanto a estatuição a propósito da competência da comissão liquidatária, neles versada
(proceder ao arrolamento e tomar conta dos bens do estabelecimento bancário e proceder à liquidação do activo) não serviu de suporte normativo à decisão recorrida, não tendo por isso sido ali objecto de aplicação.
Deste modo, concede-se parcial atendimento à primeira questão prévia, desatendendo-se a segunda.
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II - A fundamentação
1 - Considerando a necessidade de adoptar normas especiais que regessem a liquidação de bancos e casas bancárias foi editado o Decreto nº 19212, de 8 de Janeiro de 1931, posteriormente complementado por numerosa legislação (cfr. Decretos nºs 19597, de 15 de Abril de 1931, 20287, de
7 de Setembro de 1931, 21246, de 17 de Maio de 1932, 22311, de 15 de Março de
1933, 22420, de 8 de Abril de 1933, 23013, de 1 de Setembro de 1933, 23222, de
13 de Novembro de 1933 e 24264, de 31 de Julho de 1934).
Aquando da publicação do Código de Processo Civil de 1939, o diploma que o aprovou - Decreto-Lei nº 29637, de 28 de Maio de 1939 - manteve o regime instituído por aquela normação, exceptuando no seu artigo 3º, §
único, da revogação da legislação anterior sobre processo civil e comercial
(incluindo o Código de Falências), as disposições especiais de processo sobre liquidação de casas bancárias.
Entretanto, com o confessado objectivo de
'harmonizar as disposições legais sobre liquidação de estabelecimentos bancários com as da lei geral de processo, de modo que apenas divirjam onde a particular natureza dos interesses a regular assim o recomende' (cfr. exposição preambular) foi publicado o Decreto-Lei nº 30689, de 27 de Agosto de 1940, que determinou a revogação do Decreto nº 19212 e da sua legislação complementar.
Este diploma compreende oito capítulos, assim distribuídos: Suspensão de pagamentos dos estabelecimentos bancários (Cap. I); Declaração de falência (Cap. II); Comissário do Governo e comissão liquidatária
(Cap. III); Verificação do passivo (Cap. IV); Valorização e liquidação do activo
(Cap. V); Pagamento aos credores (Cap. VI); Disposições especiais relativas às sociedades (Cap. VII) e Disposições finais (Cap. VIII).
Nele se estabelece um processo de liquidação coactiva dos estabelecimentos bancários que suspendam pagamentos e não restabeleçam, no prazo de noventa dias a contar da data daquela suspensão, as condições normais de funcionamento.
Quando tal aconteça, por portaria do Ministro das Finanças será retirada a autorização de exercício do comércio bancário e ordenada a imediata liquidação desses estabelecimentos, constituindo tal portaria, para todos os efeitos, declaração de falência não sujeita a impugnação ou recurso (o Decreto-Lei nº 23/86, de 18 de Fevereiro, veio revogar tacitamente a norma impeditiva do recurso, passando assim a ser consentida a impugnação contenciosa junto do Supremo Tribunal Administrativo).
A prática de todos os actos necessários à liquidação e partilha da massa dos estabelecimento bancários, nomeadamente, a administração da massa, a verificação do passivo e a valorização e liquidação do activo e pagamento dos credores, é da competência de uma comissão liquidatária presidida por um comissário de nomeação governamental.
Estando a função jurisdicional do Estado reservada exclusivamente aos tribunais, que são órgãos de soberania que administram a justiça e dirimem os conflitos de interesses, públicos e privados, entende o recorrente que as normas sujeitas a fiscalização de constitucionalidade - artigos 11º, 20º, 21º, nºs 1 e 3 - ao subtraírem o processo de liquidação dos estabelecimentos bancários à jurisdição dos tribunais, confiando-o a uma comissão liquidatária, colidem com o princípio da reserva da função jurisdicional consagrado nos artigos 205º e 206º da Constituição.
Será efectivamente assim?
Na averiguação subsequente não vai ser testado, na sua globalidade, o sistema jurídico-legal da liquidação coactiva administrativa de estabelecimentos bancários instituído pelo Decreto-Lei nº 30689, mas apenas as normas que atrás se considerou como integradoras do objecto do recurso.
Todavia, a avaliação destas normas pode justificar, aqui e ali, em ordem a uma melhor apreensão e inteligibilidade da matéria, um visionamento do quadro geral definido naquele diploma, sendo certo porém que só elas serão objecto de cotejo e aferição constitucional.
Passar-se-á agora a examinar cada uma daquelas normas de per si.
A - A norma do artigo 11º
1 - O artigo 11º do Decreto-Lei nº 30689, dispõe do modo seguinte:
'Artigo 11º - Não tendo o estabelecimento bancário podido restabelecer, dentro do prazo fixado no artigo 1º, as condições normais de funcionamento, o comissário do Governo dará conhecimento do facto à Inspecção do Comércio Bancário para o efeito de, por portaria do Ministro das Finanças, lhe ser retirada a autorização de exercício do comércio bancário e ordenada a sua imediata liquidação, que abrangerá os bens presentes e os que ulteriormente lhe advenham e será da competência da comissão constituída nos termos do artigo
20º'.
A revogação do acto de licenciamento do exercício de actividades bancárias que aqui se acha prevista envolve dois procedimentos conexos: (1) revogação da licença de exercício do comércio bancário, com a consequente interrupção da actividade bancária por parte da entidade a quem é retirada a referida licença; (2) imposição da liquidação do património comprometido na actividade bancária através do sistema de liquidação coactiva administrativa.
Começar-se-á por analisar aquele primeiro segmento normativo.
O exercício do comércio bancário pela particular importância que reveste na vida da comunidade e pelas diferentes implicações que o seu regular funcionamento assume, sejam de ordem económica, financeira ou social, acha-se sujeito a um conjunto de condicionamentos destinados a garantir a segurança dos depositantes e a confiança geral do sistema financeiro.
No plano desses condicionamentos avultam, desde logo, por um lado, o acto permissivo ou autorizador das entidades públicas de que depende o próprio exercício da actividade do comércio bancário, e por outro lado o acto revogatório dessa mesma autorização.
Com efeito, no actual ordenamento, (anteriormente esta matéria achava-se disciplinada em diversas normas dos Decretos-Leis nºs
41403, de 27 de Novembro de 1957 e 42641, de 12 de Novembro de 1959) o Decreto-Lei nº 23/86, que regula a constituição e condições de funcionamento de instituições de crédito com sede em Portugal, bem como a abertura e condições de funcionamento de filiais ou sucursais de instituições de crédito com sede no estrangeiro, no artigo 3º, faz depender a constituição das instituições referidas em primeiro lugar, de autorização a conceder, caso a caso, sob forma de portaria conjunta do Primeiro Ministro e do Ministro das Finanças, estando a concessão desta autorização dependente de um conjunto de condições gerais definidas no artigo 4º do mesmo diploma.
Sem prejuízo dos fundamentos admitidos na lei geral, a autorização pode ser revogada nos termos do artigo 10º, isto é, quando se configurem, além de outras, algumas das seguintes situações: a) Verificarem-se infracções graves na administração, na organização contabilística ou na fiscalização interna da instituição; b) Não dar a instituição garantias de cumprimento das suas obrigações para com os credores, em especial quanto à segurança dos fundos que lhe tiverem sido confiados; c) A instituição não cumprir as leis, regulamentos e instruções que disciplinam a sua actividade.
Quando for revogada a autorização de instituição já constituída, em conformidade com o mesmo preceito, será nomeada uma comissão liquidatária, nos termos e para os efeitos do Decreto-Lei nº 30689.
A decisão da revogação, como resulta do artigo 11º, deve ser fundamentada, cabendo dela recurso para o Supremo Tribunal Administrativo nos termos gerais, não sendo porém admitida a suspensão da sua executoriedade.
Sublinhe-se que toda esta disciplina jurídica é aplicável, por força do artigo 1º, nº 4, a contrario do Decreto-Lei nº 23/86, às caixas económicas que tenham a forma de sociedade anónima de responsabilidade limitada, como é o caso da entidade recorrida.
As caixas económicas são instituições especiais de crédito que têm por objecto uma actividade bancária restrita, regendo-se pelas normas do Decreto-Lei nº 136/79, de 18 de Maio (que veio dar cumprimento ao disposto no artigo 3º, nºs 2 e 4 da Lei nº 46/77, de 8 de Julho), pela legislação aplicável ao conjunto das instituições especiais de crédito e ainda, subsidiariamente, pelas disposições que regulam a actividade das instituições de crédito, com as necessárias adaptações.
O acto de licenciamento do exercício de actividade bancária, tendo em conta o complexo de interesses públicos nesta envolvidos, parte de uma valoração amplamente discricionária da Administração pressupondo um controle permanente e sistemático que pode culminar na revogação do respectivo acto autorizador.
Este envolvimento do Estado no processo de constituição e modo de funcionamento das instituições de crédito, imposto pela natureza das coisas e prescrito na lei, dispõe seguramente de suporte constitucional, não só por força da 'subordinação do poder económico ao poder político democrático' um dos princípios em que a assenta a organização económica-social [artigo 80º, alínea a)], mas também por incumbir prioritariamente ao Estado, no âmbito económico e social, a repressão 'dos abusos do poder económico e todas as práticas lesivas do interesse geral'
[artigo 81º, alínea e)].
Por outro lado, o interesse financeiro é estruturado por lei, de modo a garantir a função, a captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social, cabendo ao Banco de Portugal, como banco central nacional, colaborar na definição e execução das políticas monetária e financeira e emitir moeda nos termos da lei (artigos 104º e 105º da Constituição).
Neste contexto normativo, seguramente que haveria de pertencer ao Governo, enquanto 'órgão de condução da política geral do país', na prossecução de tarefas de direcção política materialmente caracterizadoras da actividade estadual, desde logo das políticas monetária e financeira, um quadro de vigilância e condicionamento da actividade bancária susceptível de acautelar e garantir o interesse público no bom funcionamento do respectivo sistema.
Assim, tanto o acto permissivo da Administração, como o controlo permanente das condições de exercício da actividade bancária ou creditícia, como ainda a revogação do acto autorizador, inscrevem-se naquele quadro de vigilância, e acham-se inteiramente legitimados pela defesa e acautelamento do interesse público que com eles se visa alcançar.
Do exposto pode extrair-se que a revogação da licença de exercício do comércio bancário aos estabelecimentos que, tendo suspendido os pagamentos, não tenham restabelecido as normais condições de funcionamento no prazo de noventa dias - é este o sentido da estatuição contida na primeira parte da norma sob exame - se inscreve legitimamente no âmbito da função administrativa do Estado, não sendo consentido invocar-se a seu respeito qualquer violação do princípio da reserva da função jurisidicional contido nos artigos 205º da Constituição (artigos 205º e 206º da versão originária).
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2 - Passar-se-á agora a conhecer do segundo segmento da norma do artigo 11º, qual seja, o da imposição da liquidação do património comprometido na actividade bancária através do sistema de liquidação coactiva administrativa.
Liminarmente, convém não ignorar a distinção existente, entre, por um lado, o acto administrativo que revoga a autorização de exercício do comércio bancário por parte de uma certa instituição de crédito e ordena a sua imediata liquidação, e por outro lado, a própria liquidação em si mesma, enquanto instrumento processual de divisão e partilha de uma determinada massa patrimonial.
A propósito desta distinção, Raúl Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Coimbra, 1987, p. 210 a 212, depois de referir que 'a palavra liquidação é usada na lei em dois sentidos: como situação jurídica da sociedade
(ou fase da vida social) ou como processo, isto é, série de actos a praticar durante aquela fase', desenvolve o respectivo conteúdo conceitual, escrevendo assim:
'(...) a situação pode existir sem que o processo se efective, isto é, pode acontecer que uma sociedade seja colocada em situação de liquidação, durante a qual deveria realizar-se o processo de liquidação, e todavia os sócios ou os liquidatários não pratiquem os actos em que esse processo consiste.
Desligando a situação e o processo, também se compreende que a situação se mantenha inalterada, embora o processo varie. A situação que para a sociedade resulta da dissolução define-se por certas características que não são afectadas pela forma que, no caso concreto, for usada para o processo; assim, por exemplo, os interessados têm à escolha um processo extrajudicial e um processo judicial de liquidação, mas, quer se pronunciem por um ou por outro, a situação jurídica da sociedade em liquidação é idêntica'.
Na situação em apreço, estando em causa apenas a norma do artigo 11º e não já a disposição contida no artigo 12º (A portaria que determina a liquidação do estabelecimento bancário constitui para todos os efeitos declaração de falência do mesmo estabelecimento) ganha prevalência o conceito de liquidação/situação, isto é, a liquidação entendida enquanto situação em que fica a instituição de crédito após lhe ter sido revogada a licença de exercício do comércio bancário.
E neste contexto, cabe averiguar se o acto gerador desta liquidação/situação, isto é, se o acto que determina a 'imediata liquidação' da instituição que suspendeu pagamentos, deve ser considerado um acto jurisdicional inscrito no âmbito da reserva do juiz ou antes um acto próprio da função administrativa.
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3 - Em conformidade com o disposto no artigo 205º da Constituição, os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (nº 1), incumbindo-lhes para tanto assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (nº 2).
No entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira
'Constituição da República Portuguesa Anotada', 2º vol., 2ª ed., pp. 311 e 312, o principal alcance da primeira norma 'consiste em determinar que só aos tribunais compete administrar a justiça (reserva do juiz), não podendo ser atribuídas funções jurisidicionais a outros órgãos, designadamente à Administração Pública', enquanto na segunda se 'ensaia uma definição da função jurisdicional, que na doutrina é assaz controvertida. São três as áreas especialmente enunciadas: (a) a defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos (o que aponta directamente para a justiça administrativa); (b) a repressão das infracções da legalidade democrática (o que aponta especialmente para a justiça criminal); (c) a resolução dos conflitos de interesses públicos e privados (o que abrange principalmente a justiça cível)'. Em sentido similar cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., pp.665 e ss. e Jorge Miranda, A Constituição de 1976 - Formação, Estrutura, Princípios Fundamentais, pp. 476 e 479.
Mas, desta caracterização finalística da função jurisdicional, não se alcança um critério de segura diferenciação ente a função jurisdicional e a função administrativa sendo certo, existirem múltiplos pontos de onde decorre paralelismo e até analogia entre tais funções, uma e outra expressão do imperium emanado da soberania popular.
Poderá contudo adiantar-se que na função jurisdicional a resolução do conflito de interesses tem como fim específico a realização do direito e da justiça, destinando-se, consequentemente, a servir o interesse público da própria composição dos conflitos, e o órgão que decide em atenção aos interesses, que lhe cumpre especificamente prosseguir, da pessoa em que se integra ou a que pertence - não é interessado no conflito, estando portanto numa situação de indiferença, como que de neutralidade, perante o mesmo, ao passo que na função administrativa, contrariamente, a resolução do conflito de interesses em causa tem em vista a prossecução de outro qualquer dos interesses públicos que ao Estado - utilizando este termo num sentido amplo - incumbe realizar, representando tal composição, um simples meio ou instrumento para a satisfação desse outro interesse, pelo que o órgão que profere a decisão não se encontra numa situação de indiferença ou de neutralidade perante o conflito, já que nele tem um determinado interesse (cfr. neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20 de Janeiro de 1983, Boletim do Ministério da Justiça, nº 323, pp. 240 e ss.).
Revertendo à situação em apreço, há-de reconhecer-se que a liquidação coactiva dos estabelecimentos bancários assume um carácter administrativo, dirigida que é, prioritariamente, à prossecução dos interesses públicos a cargo da Administração, não se descurando embora, os interesses dos particulares cuja participação é assegurada pela comissão liquidatária.
E é essencial acentuar que esta forma de liquidação, representando embora um procedimento administrativo, transporta já dimensões materiais de justiça em termos de acautelar e defender os interesses particulares dos credores e dos titulares do respectivo estabelecimento, sem embargo de se reconhecer que algumas das suas normas (diversas daquelas que constituem objecto do presente recurso) possam representar desvio à garantia da via judiciária (cfr. os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 443/91, 171/92 e
179/92, Diário da República, II série, de, respectivamente, 2 de Abril e 18 de Setembro de 1992).
Mas, verdadeiramente, a imposição da liquidação do património comprometido na actividade bancária, decorrente da revogação da autorização de exercício, ao subtrair as instituições sujeitas à liquidação, não só a faculdade de destinar os respectivos patrimónios a outras actividades, mas também o poder de gerir a própria liquidação segundo as regras gerais do direito falimentar, representa ainda um 'momento de controle' das instituições creditícias em termos de defesa do interesse público na normalidade do funcionamento e da segurança do sistema financeiro.
Mas, será que a ordem de liquidação deveria pertencer a um juiz enquanto acto compreendido no âmbito da reserva jurisdicional?
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4 - A reserva do juiz entendida no sentido de monopólio do juiz, tem subjacentes duas dimensões fundamentais: (a) a função jurisdicional, materialmente definida, só pode ser exercida pelos tribunais, e, no âmbito destes, pelo juiz; (b) o monopólio do juiz é também um monopólio da palavra do juiz, pois é a ele que cabe não apenas a última como a primeira palavra nas questões submetidas à sua jurisdictio.
O monopólio do juiz, em sentido rigoroso, implicará, pois, a proibição constitucional do exercício dessa função por parte de outras autoridades - administrativas, legislativas, 'judiciais/não jurisdicionais' - mesmo que das decisões destas últimas possa haver recurso para um juiz.
Diferente da reserva de juiz ('monopólio de juiz',
'garantia jurídico/constitucional de reserva de juiz') é aquilo que se costuma designar por garantia jurídico-constitucional da via judiciária.
Diversamente do que acontece com a reserva de juiz, através da garantia da via judiciária assegura-se que a última palavra - mas não já a primeira - pertença a um tribunal e, consequentemente a um juiz. Assim, por exemplo, o poder de aplicar medidas disciplinares sancionatórias - civis ou militares, inclusive neste último caso, a pena de prisão disciplinar - não é um monopólio do juiz, pois não lhe cabe a primeira palavra, mas sim a última, em caso de recursos e acções constitucional ou legalmente previstos. O mesmo se diga quanto à aplicação de sanções profissionais e medidas contra-ordenacionais
(neste sentido se pronunciou o Prof. Gomes Canotilho em parecer apresentado neste Tribunal pela recorrida, no Proc. nº 35/92, 2ª secção). E ainda é uma forma de garantia da via judiciária o recurso de impugnação contenciosa junto dos tribunais administrativos.
Ora, à luz das considerações expostas, pode seguramente afirmar-se que o acto gerador da liquidação forçada não se inscreve no âmbito do monopólio do juiz, nem seria minimamente razoável que, revogando a Administração a autorização para o exercício da actividade bancária, se exigisse a intervenção dos tribunais apenas para ordenar a liquidação da instituição de crédito, que constitui, afinal, mera consequência do acto revogatório e com o qual se encontra em íntima conexão.
Poderia até afirmar-se que o acto de revogação comporta um duplo conteúdo: revogação da autorização do exercício da actividade bancária e 'colocação' em liquidação coactiva do estabelecimento bancário (cfr. Luigi Desiderio, La Liquidazione Coatta, p. 10).
E, como quer que seja, o acto determinante da liquidação, é passível de impugnação pela via de recurso contencioso para o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos gerais.
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5 - O entendimento que se vem sustentando é confirmado pelas soluções encontradas na definição do regime de autorização, funcionamento e liquidação dos estabelecimentos bancários em diversas directivas comunitárias e também num diploma recentemente publicado e de irrecusável importância nesta matéria - o Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, que aprovou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.
Ao proceder-se à reforma da regulamentação geral do sistema financeiro português, com excepção do sector de seguros e de fundos de pensões, transpuseram-se para a ordem jurídica interna diversos actos comunitários: (a) Directiva nº 77/780/CEE do Conselho, de 12 de Dezembro de
1989, na parte que, a coberto das derrogações acordadas, ainda não fora acolhida na legislação nacional; (b) Directiva nº 897/646/CEE do Conselho, de 15 de Dezembro de 1989 (Segunda Directiva de Coordenação Bancária); (c) Directiva nº
92/30/CEE do Conselho, de 6 de Abril de 1992, sobre supervisão das instituições de crédito de base consolidada.
O direito comunitário, importando aqui destacar, em especial, a Directiva 77/780/CEE, (algumas das suas disposições foram objecto de alterações), regula genericamente a actividade dos estabelecimentos de crédito definindo as condições de acesso a tal actividade, as formas do seu exercício e as medidas de saneamento e liquidação a impor em situações de crise.
Este regime admite não só a existência de uma entidade administrativa de controle e vigilância das instituições creditícias em nome do interesse público na preservação da confiança e do bom funcionamento destas instituições, como atribui a esta entidade competência para revogar a autorização de exercício da actividade bancária e também para tutelar um processo tramitado fora da via judiciária e que pode conduzir ao saneamento, dissolução ou liquidação daquelas instituições.
Por seu lado, o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras mantém a orientação, tradicional entre nós, no sentido da existência de um regime especial de saneamento das instituições de crédito, se bem que haja introduzido diversas modificações em relação ao sistema anterior.
Contudo, a constituição das instituições de crédito continua a carecer de uma autorização a conceder, caso a caso, pelo Banco de Portugal (artigo 16º), cabendo também à mesma entidade a competência para, verificados os pressupostos definidos na lei, definir a sua revogação (artigos
22º e 23º).
Ali se prevê também um conjunto de normas prudenciais e supervisão (artigos 91º a 138º), bem como normas de saneamento
(artigos 139º a 152º), em termos de, por força destas últimas, tendo em vista a protecção dos interesses dos depositantes, investidores e outros credores e a salvaguarda das condições normais de funcionamento do mercado monetário, financeiro ou cambial, o Banco de Portugal poder adoptar, relativamente às instituições de crédito com sede em Portugal diversas providências extraordinárias de saneamento.
E por força do disposto no artigo 152º, quando se verificar que, com as providências adoptadas, não foi possível recuperar a instituição, será revogada a autorização para o exercício da respectiva actividade a seguir-se-á o regime de liquidação estabelecido na legislação aplicável.
Assim, na parte que aqui importa considerar, há-de dizer-se que neste novo regime, já tributário do processo de concretização da união económica e monetária na Europa, foi integralmente seguido o sistema anterior, não se acolhendo uma solução que subordinasse estes actos à reserva do juiz, entendida esta como monopólio do juiz.
Do exposto decorre também não ser legítimo invocar-se a respeito do segundo segmento da norma do artigo 11º, a violação do princípio da reserva da função jurisdicional, contido no artigo 205º da Constituição.
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B - A norma dos artigos 20º e 21º, nºs 1 e 3
1 - Os artigos 20º e 21º, nºs 1 e 3 do Decreto-Lei nº 30689, contêm a seguinte formulação:
'Artigo 20º - A comissão liquidatária é constituída pelo comissário do Governo, que será o presidente, e por dois outros vogais, um dos quais será o representante dos credores e outro o do banqueiro singular ou dos sócios do estabelecimento bancário.
Artigo 21º - À comissão liquidatária compete, salvas as restrições constantes deste decreto, praticar todos os actos necessários à liquidação e partilha da massa do estabelecimento bancário e especialmente:
1º Administrar a massa e representá-la activa e passivamente em juízo e fora dele;
.....................................................
3º Tornar efectivos, pelos meios competentes, todos os direitos do estabelecimento bancário;
.....................................................
No regime regulado pelo Código das Sociedades Comerciais, após a dissolução da sociedade, não se alterando radicalmente a sua organização, há lugar a diversas modificações na sua estrutura orgânica, como seja a nomeação de liquidatários.
E, nos termos do artigo 151º deste diploma, a designação de liquidatários pode revestir três modalidades: (a) designação resultante da lei (os administradores ou gerentes à data da dissolução da sociedade); (b) nomeação pelos sócios (feita no contrato de sociedade ou por deliberação); (c) nomeação judicial (quando não haja nenhum liquidatário, apresentando-se esta forma de designação como um último recurso e não como um meio alternativo de provimento do cargo).
A comissão liquidatária prevista no processo de liquidação administrativa é composta por três membros, representando, respectivamente, o Governo, os credores e os sócios do estabelecimento bancário, o que, de algum modo, traduz uma solução não muito diversa daquela que na lei se estabelece para as sociedades comerciais.
Mas, o que releva para a questão a decidir é a não exigência, constitucional ou sequer legal, de se estabelecer aqui uma qualquer reserva da função jurisdicional, seja no plano da sua composição, seja meramente na forma da sua designação.
E assim sendo, a norma do artigo 20º, não viola qualquer princípio ou preceito constitucional, nomeadamente o disposto no artigo
205º da Constituição.
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2 - Nos termos do artigo 152º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais 'os liquidatários têm, em geral, os deveres, os poderes e a responsabilidade dos membros do órgão de administração da sociedade'.
Os liquidatários são, na verdade, os únicos representantes legais da sociedade em liquidação, pertencendo-lhes tanto a representação judicial como extrajudicial.
As instituições de crédito em liquidação são representadas activa e passivamente em juízo e fora dele pela comissão liquidatária, a quem compete praticar todos os actos necessários à liquidação e partilha da massa e também tornar efectivos todos os direitos daquelas instituições, o que se traduz num sistema similar ao que vigora para as sociedades comerciais.
A propósito destas específicas competências da comissão liquidatária (as únicas que importa considerar), não se pode falar em qualquer violação do princípio da reserva da função jurisdicional como também, adquirida que está a validade constitucional da norma que determina a liquidação coactiva, não é possível invocar-se a este respeito uma qualquer inconstitucionalidade consequencial.
Não se verifica assim, também quanto às normas do artigo 21º e seus nºs 1 e 3, ofensa do disposto no artigo 205º da Constituição.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso confirmando-se, consequentemente, o acórdão recorrido.
Lisboa, 15 de Julho de 1993
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa