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Proc. n.º 513/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. (ora reclamante) intentou, no Tribunal de Trabalho de Cascais, contra B.
(ora reclamada), providência cautelar de suspensão de despedimento, a qual foi julgada improcedente.
2. Inconformada, apelou a ora recorrente para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. O contrato de trabalho entre uma entidade patronal portuguesa e um trabalhador estrangeiro que se encontre em Portugal é válido, mesmo que o estrangeiro não disponha de autorização de residência ou de permanência.
2. A entidade patronal está obrigada, nos termos do artº 4°, 1 da referida lei a
'previamente à data do inicio da actividade pelo trabalhador estrangeiro, promover o depósito do contrato de trabalho na delegação ou subdelegação do IDICT .
3. O incumprimento deste normativo não prejudica a validade do contrato de trabalho celebrado com trabalhador estrangeiro se, entretanto, a entidade empregadora aceitar que ele inicie a prestação laboral.
4. Havendo uma normal e regular prestação da actividade laboral por um trabalhador contratado nestas condições, não pode pôr-se termo ao contrato de trabalho por despedimento, com fundamento [na] não prestação de informação favorável por parte do IDICT .
4. O princípio da igualdade dos estrangeiros, consagrado no artº 15° da Constituição e o principio da não discriminação consagrado no artº 59º ,1 da mesma Lei fundamental, justificam que, nestes caso, atenta a protecção constitucional do emprego, se lance mão do dispositivo excepcional do artº 88° do DL n° 244/98, de 8 de Agosto.
5. Conflituando uma disposição constitucional que garante a igualdade ao trabalhador estrangeiro em matéria de segurança no emprego com uma norma ordinária que exige como condição da prestação de trabalho um visto prévio de trabalho, deve prevalecer o respeito pelo normativo constitucional, abrindo-se mão do regime excepcional do referido artº 88° da Lei dos Estrangeiros, para assegurar a manutenção do vínculo laboral.
6. A douta sentença recorrida ofendeu, assim, os artºs 15°,1 e 59º da Constituição.
7. E ofendeu ainda o disposto no artºs 38° e 39° do CPT , na medida em que, não havendo processo disciplinar, sempre a providência haveria de ser decretada, tanto mais que expressamente se reconhece que houve um despedimento.
8. Decisões como a recorrida são adequadas a favorecer a exploração dos trabalhadores estrangeiros, que a Lei n° 20/98 quis proteger.”
3. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 4 de Junho de 2003, julgou o recurso improcedente, tendo afirmado, nomeadamente, o seguinte:
“[...]FUNDAMENTOS DE DIREITO
[...] No caso em apreço, a Requerente/Agravante não demonstrou sequer a aparência do seu direito, porquanto sendo cidadã estrangeira, extra-comunitária, a validade da celebração do contrato de trabalho estava dependente, pelo menos, da autorização de permanência, nos termos do art. 55° n° 1 al. a) do DL 244/98 de 8.08, na alteração introduzida pelo Dec-lei 4/2001 de 10.01 (diploma que veio permitir a legalização de estrangeiros a trabalhar ilegalmente em Portugal), a qual não foi concedida à requerente por não preencher os requisitos exigidos pela Resolução do Conselho de Ministros de 30.11.2001, razão pela qual a requerida declarou a cessação imediata do seu contrato de trabalho. Com efeito, nos termos do art. 3° n° 3 da Lei 20/98 de 12.05 deve ser apenso ao contrato de trabalho de trabalhador estrangeiro o documento comprovativo do cumprimento das disposições relativas à entrada e à permanência ou residência do cidadão estrangeiro em Portugal. E nos termos do art. Art. 4º n° 1 do mesmo diploma deve a entidade empregadora, previamente à data do início do contrato, promover o depósito do contrato de trabalho na competente delegação do IDJCT . O Dec-Lei 244/98 de 8.08 (com as alterações do DL 4/2001 de 10.01 e Dec. Regulamentar n 5-N2000 de 26.04 na redacção dada pelo Dec-Reg. 9/200l de 31.05 esclarece que sempre que um cidadão estrangeiro pretenda trabalhar em Portugal deve estar munido de um dos seguintes documentos: visto de residência (art. 27º al. d), 34 e 43), visto de trabalho (art. 27° al. f), 36 e 43), autorização de residência (art. 80°) devendo o requerente estar munido de visto de residência válido, autorização de permanência emitida nos termos do art. 55°. Ora, a requerente não possuía nenhum desses documentos. Apesar disso, era-lhe possível à data da celebração do contrato de trabalho obter a autorização de permanência nos termos do art. 55° do DL 244/98, na redacção dada pelo Dec-Lei 4/2001, bastando a posse de proposta ou contrato de trabalho com informação favorável da IGT. E foi nesta perspectiva que foi celebrado o contrato de trabalho em causa. Acontece, porém, que a decisão do IDICT não foi favorável devido à Resolução do Conselho de Ministros de
30.11.2001 (fls. 42 dos autos). Não tendo a requerente obtido a autorização de permanência, era legalmente vedado à Requerida manter o contrato de trabalho com a requerente, sob pena de ficar ela própria sujeita às coimas e medidas acessórias previstas no art. 7º do DL 20/98 e art. 144º do Dec-Lei 244/98. Aliás, do próprio contrato - cls. 7ª - consta a obrigação da requerente manter válidos os seus documentos comprovativos das disposições legais relativas à entrada e à permanência, para efeitos de trabalho em Portugal. E na cls. 9ª n° 2 refere-se que a 'a efectiva resolução deste contrato depende do deferimento do depósito do contrato por parte do IDICT'. Destas cláusulas resulta que as partes previram a celebração do contrato com a condição resolutiva do não deferimento pelo IDICT da autorização de permanência indispensável ao depósito do contrato. Pelo que a decisão da Requerida de resolver o contrato tinha sido expressamente prevista pelas partes, além de estar de acordo com a lei. Assim, concorda-se com a decisão recorrida, quando, citando Antunes Varela, afirma que 'a prestação torna-se impossível quando, por qualquer circunstância (legal, natural ou humana) o comportamento exigível do devedor se torna inviável' (Das Obrigações em Geral, 2° vol., 38 edição, pág.67)'. E continua:
'É nestes termos que deve ser interpretada a declaração da requerida, entidade patronal, consubstanciada na missiva aludida, que invoca, afinal, uma impossibilidade de receber o trabalho da requerente. Assim sendo, de tal missiva não pode concluir-se, com segurança, pela existência de um verdadeiro «despedimento», estando em causa, isso sim, apreciar da caducidade do contrato e não da sua cessação por despedimento, no caso sem precedência de processo disciplinar . E, não podendo concluir-se pela existência de um despedimento, não pode dar-se provimento à pretensão da Requerente. ' Na verdade, a requerente não demonstrou, de forma suficiente, quer a existência da validade do seu contrato de trabalho, que pressupunha, pelo menos a autorização de permanência, quer a existência de um despedimento em sentido próprio (pressuposto típico da providência cautelar de suspensão de despedimento
- cfr. neste sentido Ac. desta Relação de 16.06.99, CJ. 1999, III, pag. 172), pelo que não pode deixar de improceder a presente providência cautelar . Por outro lado, não se verifica, a nosso ver, qualquer violação dos art. 15° e
59° n° 1 da Constituição, que proíbem as discriminações em razão da igualdade ou da nacionalidade, porquanto esses preceitos constitucionais pressupõem que os cidadãos estrangeiros tenham legalizada a sua residência ou permanência no território português (cfr. art. 2º da Lei 20/98 de 12.05), sendo perfeitamente admissível que a lei ordinária possa impor como condição de validade dos contratos de trabalho celebrados com trabalhadores estrangeiros alguns requisitos relativos à legalidade da sua permanência ou residência no território nacional. Nestes termos, improcedem todas as conclusões do recurso. [...]”
4. Desta decisão foi interposto recurso de constitucionalidade, através de um requerimento com o seguinte teor:
“[...] recorrente nos autos à margem identificados, notificada do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do art.º 75° da Lei do Tribunal Constitucional. O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do art.º 70º da Lei do Tribunal Constitucional - cfr. o disposto no n° 1 do art.º 75°-A do mesmo diploma. Considera a recorrente que a aplicação do disposto no art.º 4°, alínea b) do Decreto-Lei 64-A/89, de 27/02, dos artºs 38° e 39º do Código de Processo Trabalho, art.º 55° do Decreto-Lei 244/98 de 08/08 com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 4/2001 de 10/01 e pelo Decreto Regulamentar
5-A/2000 de 26/04 na redacção dada pelo Decreto Regulamentar 9/2001 de 31/05 e a Resolução do Conselho de Ministros n° 164/2001, de 30 de Novembro, no caso concreto, é inconstitucional na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão sob recurso. A interpretação dada àqueles preceitos, no acórdão em referência, ofende os artºs 3°, 13°, 15°, 16°, 18°,53° e 59º da Constituição da República Portuguesa. A recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade no requerimento de providência cautelar de suspensão de despedimento e no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa.[...]”.
5. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do recurso (fls.193 a 199). É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
“Cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do objecto do presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. art. 76º, n.º 3 da LTC). O recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, designadamente, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua dimensão normativa. Importa, pois, começar por averiguar se a recorrente suscitou, durante o processo e de forma processualmente adequada, alguma questão de constitucionalidade normativa reportada às normas constantes dos artigos 4°, alínea b), do Decreto-Lei n.º
64-A/89, de 27 de Fevereiro, 38° e 39º do Código de Processo Trabalho, 55° do Decreto-Lei 244/98, de 8 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 4/2001, de 10 de Janeiro, bem como ao Decreto Regulamentar 5-A/2000, de 26 de Abril, na redacção dada pelo Decreto Regulamentar 9/2001, 31 de Maio, e
à Resolução do Conselho de Ministros n° 164/2001, de 30 de Novembro, em termos de permitir, em relação a qualquer delas, conhecer do recurso de constitucionalidade que pretendeu interpor. Ora, como vai sumariamente ver-se, é manifesto que o não fez. De facto, se atentarmos no teor da alegação de recurso apresentada no Tribunal da Relação de Lisboa - para que a recorrente remete no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional e cujas conclusões já transcrevemos integralmente - verificamos que a recorrente não cuida aí de imputar, como devia, a violação dos preceitos da Constituição ao sentido de quaisquer normas cuja constitucionalidade pretendesse ver apreciada, nomeadamente das que veio a referir no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, mas sim, quando muito, à própria decisão recorrida. Para o demonstrar bastará recordar aqui as conclusões 4 a 6, únicas onde a recorrente se refere a uma alegada violação da Constituição. Destas se deduz que, segundo a recorrente, o “princípio da igualdade dos estrangeiros, consagrado no art.º 15º da Constituição e o princípio da não discriminação consagrado no art.º 59º, 1 da mesma Lei Fundamental [...] justificam se lance mão do dispositivo excepcional do art.º 88º do DL n.º 244/98, de 8 de Agosto”, o qual permite que, “em casos excepcionais de reconhecido interesse nacional ou por razões humanitárias, o Ministro da Administração Interna [possa] conceder a autorização de residência a cidadãos estrangeiros que não preencham os requisitos exigidos no presente diploma. Ao não entender deste modo, ainda segundo a recorrente, “a douta sentença recorrida ofendeu, assim, os artsºs 15º,
1 e 59º da Constituição”. (Sublinhado nosso).
É, contudo, jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, não estando em causa uma dimensão normativa do preceito legal aplicado na decisão, mas sim a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82, e assim tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões. Na verdade, ao contrário dos sistemas em que é admitido recurso de amparo, nomeadamente na modalidade de amparo dirigido contra decisões jurisdicionais que, alegadamente, violam directamente a Constituição, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal não se destina ao controlo da decisão judicial recorrida, como tal considerada, como sucede quando a discordância se dirige a esta última, mas, pelo contrário, ao controlo normativo de constitucionalidade da norma aplicada. Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações, torna-se evidente que não pode conhecer-se do objecto do presente recurso, já que, não tendo a recorrente suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, como exige a alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC, ao abrigo da qual recorre, qualquer questão de constitucionalidade normativa, não está presente, pelo menos, um dos pressupostos da sua admissibilidade.
[...]”
6. Inconformada com esta decisão a recorrente veio reclamar para a Conferência, o que fez através de um requerimento (fls. 658 a 669), que se transcreve na
íntegra:
“1. Entendeu o Exm.º Senhor Juiz Conselheiro Relator não se poder conhecer do objecto do presente recurso pois a recorrente não suscitou, 'durante o processo e de forma processualmente adequada” “qualquer questão de constitucionalidade normativa.'
2. Não pode a recorrente concordar com tal decisão,
3. Salvo o devido respeito, o Exmº Senhor Juiz Conselheiro Relator, dá a entender que a decisão sumária que proferiu se baseou, numa frase, contida nas conclusões de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
4. Se por um lado, daquela frase não se pode extrair as conclusões retiradas pelo Exm.º Senhor Juiz Conselheiro Relator, de outro lado, a recorrente suscitou, também a questão da inconstitucionalidade no requerimento de providência cautelar de suspensão de despedimento, como, aliás, apontou no requerimento de interposição de recurso.
5. No recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa, a recorrente concluiu que 'a douta sentença recorrida ofendeu, assim, os art.ºs 15°, 1 e 59° da Constituição' (conclusão 6).
6. Ora, o recurso versava sobre matéria de direito. Nos termos do disposto da alínea a) do n° 2 do art.º 690° do Código de Processo Civil, 'Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) as normas jurídicas violadas'.
7. Aquelas normas jurídicas, que são de aplicabilidade directa, foram violadas na decisão recorrida, logo, cabia à recorrente, o ónus de formular tal conclusão.
8. Não podia a recorrente deixar de formular tal conclusão, apenas pela preocupação de vir a ser interpretada do modo que o foi.
9. Não podemos esquecer estamos que perante preceitos constitucionais, de aplicação directa e imediata, sendo certo que a interpretação destes, pela decisão recorrida, é inconstitucional.
10. Atente-se, Venerandos Conselheiros, na gravidade do que foi defendido na decisão recorrida: 'Esses preceitos constitucionais [os arts. 15° e 59° n° 1) pressupõem que os cidadãos estrangeiros tenham legalizada a sua residência ou permanência no território português' (sublinhado nosso).
11. A recorrente veio interpor recurso ao abrigo da alínea b) do n° 1 do artº
70° da LTC, porquanto foram aplicadas normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
12. A recorrente não suscitou a inconstitucionalidade apenas nas conclusões do recurso dirigido à Relação de Lisboa, sendo certo que, se por um lado é verdade que as conclusões delimitam o objecto do recurso, de outro lado apenas o delimitam perante o Tribunal ad quem.
13. Em sede de admissão de recurso para o Tribunal Constitucional, é jurisprudência assente que as inconstitucionalidades não têm de ser suscitadas meramente nas conclusões:
'Defere a reclamação contra não admissão de recurso, por a questão de constitucionalidade ter sido suscitada durante o processo: I - A questão de inconstitucionalidade é suscitada durante o processo quando é apresentada à decisão do tribunal recorrido a tempo e em termos de este a poder decidir. II - A inconstitucionalidade é questão do conhecimento oficioso de qualquer tribunal - Constituição, artigo 207 - pelo que os interessados podem invocá-la em qualquer via de recurso ordinário que a decisão consinta. III - A questão da natureza oficiosa do conhecimento da inconstitucionalidade não só prevalece perante o argumento da “questão nova' como igualmente se faz valer perante o da limitação do objecto do recurso pelo teor das conclusões das alegações, baseado no artigo 690, n.º 1 do Código de Processo Civil, nomeadamente porque, em processo constitucional, basta que a decisão do Tribunal aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. IV – É, assim, suscitada durante o processo a questão da constitucionalidade referida nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, apesar de não constar das respectivas conclusões'. Acórdão do Tribunal Constitucional 92-041-1 disponível in www.dgsi.pt
(sublinhado nosso).
14. Ora, esgrimiu a recorrente nas alegações que:
“Numa recomendação difundida na sequência da publicação da Lei n.º 27/2000, de 8 de Setembro, é a própria Inspecção-Geral do Trabalho quem afirma peremptoriamente o seguinte: A execução do contrato de trabalho ilegal produz todos os efeitos como se fosse válido enquanto estiver em vigor, incluindo naturalmente todas as obrigações em matéria de Segurança Social'.
É aliás, essa interpretação mais consonante com o art.º 59° da Constituição, que proíbe, logo no seu caput, qualquer discriminação em razão da nacionalidade'.
15. Mais abaixo: 'É por demais óbvio que esta cláusula é de realização impossível e, por isso mesmo, nula,'
16. E ainda: “Não se pode pôr em crise o contrato de trabalho ilegalmente celebrado pela entidade patronal, porque a relação laboral goza de protecção constitucional e um tal tratamento da recorrente ofenderia o disposto nos artºs
15°,1 e 59° da Constituição.”
17. Deve atentar-se no que foi alegado sem perder de 'vista o fundamento essencial da decisão de primeira instância, que se rebatia com aquela alegação, ou seja, a consideração de que o facto de um estrangeiro se encontrar ilegal no território nacional pode ser interpretado como uma causa de caducidade para os termos e efeitos do disposto na alínea b) do art.º 4° do Decreto-Lei n.º
64-A/89.
18. Acresce que a recorrente diz no seu requerimento de interposição de recurso que “suscitou a questão da inconstitucionalidade no, requerimento de providência
cautelar de suspensão de despedimento e no ' recurso...”
19. Ora, naquela peça processual, a recorrente esgrimiu no art.º 22 que 'Estamos no plano dos direitos fundamentais, (os artºs 15°, 18° e 53° da CRP foram invocados, respectivamente nos pontos 12, 14 e 15 do requerimento) oponíveis por natureza ao próprio Estado não sendo tolerável que se ponha em causa a estabilidade do emprego, garantida constitucionalmente por uma mera irregularidade, (subsumida in casu na alínea b) do art.º 4° do Decreto-Lei n°
64-A/89 de 27/02) que pode ser suprida por via administrativa, sem pôr em causa as garantias da trabalhadora. '
20. É forçoso concluir que, dada a aplicabilidade directa dos art.ºs 15° e 59° da Constituição, (porquanto improcede totalmente, salvo melhor opinião, a aplicabilidade destes preceitos está dependente de um prévio acto do poder executivo - a decisão que torna a permanência legal), subsumir o facto de um cidadão estrangeiro não ter legalizada a sua situação no território português, à estatuição prevista na alínea b) do art.º 4° do Decreto-Lei 64-A/89, de 27/02, é interpretar, de forma manifestamente inconstitucional este último preceito, daí que a decisão recorrida, por essa via, ofenda os art.ºs 15° e 59° da Constituição.
21. Do mesmo modo, indeferir a suspensão do despedimento no caso vertente, é entender que o facto de um cidadão estrangeiro não ter legalizada a sua situação no território português, é suficiente que exista probabilidade séria de existência de justa causa de despedimento, o que, dada a aplicabilidade directa dos artºs 15° e 59° da Constituição, corresponde a interpretar, de forma manifestamente inconstitucional, os artºs 38° e 39° do Código de Processo de Trabalho, daí que a decisão recorrida ofenda, por essa via, os artºs 15° e 59° da Constituição,
22. Em síntese, parece resultar claro, salvo melhor opinião, que a recorrente invocou, de modo processualmente adequado, a inconstitucionalidade das normas que foram aplicadas ao caso concreto, nas interpretações que lhe foram dadas nas decisões em causa.
23. Entende a recorrente que não se assemelha conforme à justiça material, ver precludido o seu direito de sindicar a constitucionalidade das normas, pelo facto de ter cumprido o ónus processual de concluir (“a douta sentença ofendeu, assim os artºs 15°,1 e 59° da Constituição'), porquanto, pelos motivos supra expostos, o entendimento expresso em causa não é acolhido numa eventual sede de requerimento de “recurso de amparo'.
24 Entender em sentido contrário significa redundar numa excessiva valorização do formal, em detrimento do que é substancial rejeitando o recurso por alegadamente se ter posto em crise a constitucionalidade da decisão e não das normas, porquanto, por um lado, salvo melhor opinião, “modo processualmente adequado de arguir a inconstitucionalidade das normas” não se reconduz à exigência de utilização de palavras rituais; cujo não emprego possa desembocar na preclusão do direito de agir.
25. De outro lado, é jurisprudência assente deste Tribunal que: '...nos recursos visando a fiscalização concreta da constitucionalidade (e é este que está em causa) a que aludem os artigos 280º n.º 1 da Lei Fundamental e 70° n° 1 alíneas a) b) g) e h) da Lei n° 28/82 embora o respectivo objecto seja o de normas constantes do ordenamento jurídico infraconstitucional o que é impugnado são as decisões tomadas pelos tribunais das várias ordens existentes em Portugal,' in Acórdão n° 293/03 do Tribunal Constitucional. (sublinhado nosso)
26. Aquela formulação expressa nas conclusões de recurso, que não pode ser apreciada isoladamente do requerimento da providência cautelar nem do corpo das alegações, não está, em bom rigor, incorrecta, nem pode determinar o não conhecimento do objecto do presente recurso.
27. Nestes termos, deve a presente reclamação proceder, devendo conhecer-se do objecto do presente recurso, seguindo-se os ulteriores termos”.
7. Por parte da recorrida não foi apresentada, dentro do prazo legal, qualquer resposta.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
8. A decisão reclamada concluiu pela impossibilidade de conhecer do objecto do recurso, que fora interposto pela ora reclamante ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por falta de um dos respectivos pressupostos legais de admissibilidade. Com a presente reclamação a ora reclamante vem fundamentalmente contestar que, conforme se considerou na decisão sumária reclamada, não tenha adequadamente suscitado durante o processo a inconstitucionalidade das normas por si referidas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade; a saber: os artigos 4°, alínea b), do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, 38° e 39º do Código de Processo Trabalho, 55° do Decreto-Lei 244/98, de 8 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 4/2001, de 10 de Janeiro, bem como ao Decreto Regulamentar 5-A/2000, de 26 de Abril, na redacção dada pelo Decreto Regulamentar 9/2001, 31 de Maio, e a Resolução do Conselho de Ministros n°
164/2001, de 30 de Novembro. Alega, em síntese, que a decisão sumária ora reclamada se terá baseado numa frase, contida nas conclusões das alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que não permitiria a conclusão tirada pelo relator, e que, ao contrário do que se decidiu na referida decisão sumária, a inconstitucionalidade daquelas normas foi adequadamente suscitada, quer no requerimento de providência cautelar de suspensão de despedimento que entregou no Tribunal de Trabalho de Cascais, quer nas alegações de recurso que apresentou perante o Tribunal da Relação de Lisboa.
Vejamos.
8.1. Desde logo, importa fixar que não cabe aqui discutir se a questão de constitucionalidade foi adequadamente suscitada no requerimento da providência cautelar de suspensão de despedimento, apresentado no Tribunal de Trabalho de Cascais. Com efeito, ainda que o tivesse sido – e não o foi – tal não seria suficiente para que se pudesse considerar cumprido o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, uma vez que, conforme dispõe o n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional, para que o recurso possa ser admitido, a questão de constitucionalidade há-de ter sido adequadamente suscitada “perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida”
(Sublinhado nosso).
8.2. Decisivo é, então, saber se a ora reclamante suscitou, de forma processualmente adequada, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, que proferiu a decisão recorrida, a questão da inconstitucionalidade dos preceitos - ou de uma sua interpretação normativa - por si referidos no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
Ora, ao contrário do que alega, é manifesto que o não fez. Nem o fez nas
“conclusões” da alegação de recurso que apresentou perante aquele Tribunal, onde se limita a imputar a violação de vários preceitos constitucionais à decisão da primeira instância e não, como devia, a normas por esta aplicadas, nem o fez, ao contrário do que agora invoca, no próprio “corpo” da alegação, onde não se vislumbra a formulação, em termos processualmente adequados, de qualquer questão de constitucionalidade normativa reportada aos preceitos a que a reclamante se refere no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade. Para o demonstrar, bastará apenas recordar aqui as passagens daquela alegação referidas pela ora reclamante nos pontos 14. 15. e 16. da reclamação - integralmente transcrita supra -, onde, na sua perspectiva, teria adequadamente suscitado a questão de inconstitucionalidade:
“[...]
14. Ora, esgrimiu a recorrente nas alegações que:
“Numa recomendação difundida na sequência da publicação da Lei n.º 27/2000, de 8 de Setembro, é a própria Inspecção-Geral do Trabalho quem afirma peremptoriamente o seguinte: A execução do contrato de trabalho ilegal produz todos os efeitos como se fosse válido enquanto estiver em vigor, incluindo naturalmente todas as obrigações em matéria de Segurança Social'.
É aliás, essa interpretação mais consonante com o art.º 59° da Constituição, que proíbe, logo no seu caput, qualquer discriminação em razão da nacionalidade'.
15. Mais abaixo: 'É por demais óbvio que esta cláusula é de realização impossível e, por isso mesmo, nula,'
16. E ainda: “Não se pode pôr em crise o contrato de trabalho ilegalmente celebrado pela entidade patronal, porque a relação laboral goza de protecção constitucional e um tal tratamento da recorrente ofenderia o disposto nos artºs
15°,1 e 59° da Constituição.
[...]”
E ainda se poderia referir o artigo 22 das citadas alegações, também mencionado no ponto 19. da reclamação, cujo integral teor é o seguinte:
'Estamos no plano dos direitos fundamentais oponíveis por natureza ao próprio Estado não sendo tolerável que se ponha em causa a estabilidade do emprego, garantida constitucionalmente por uma mera irregularidade, que pode ser suprida por via administrativa, sem pôr em causa as garantias da trabalhadora.'
Como pode ver-se, não é aqui suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade reportada aos artigos 4°, alínea b) do Decreto-Lei 64-A/89, de 27/02, dos artºs
38° e 39º do Código de Processo Trabalho, art.º 55° do Decreto-Lei 244/98 de
08/08 com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 4/2001 de 10/01 e pelo Decreto Regulamentar 5-A/2000 de 26/04 na redacção dada pelo Decreto Regulamentar 9/2001 de 31/05 e a Resolução do Conselho de Ministros n° 164/2001, de 30 de Novembro, os quais não são, sequer, referidos. Tal como, aliás, não tinha sido suscitada, de forma processualmente adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa em algum outro ponto das referidas alegações, conforme se demonstrou já na decisão reclamada, a qual, ao contrário do que afirma a reclamante, não “se baseou numa frase, contida nas conclusões de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa”, da qual não se poderia “extrair as conclusões retiradas pelo [...] Relator”, mas antes no facto de não estar preenchido um dos pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Assim sendo, e sem entrar na questão de saber se cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões proferidas no âmbito da providência cautelar de suspensão de despedimento (cfr. acórdão 151/85 e voto de vencido, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. VI, pág. 351 e segs.), igualmente pelas razões, já constantes da decisão reclamada, que não é infirmada pela reclamação apresentada e mantém inteira validade, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que a reclamante pretendeu interpor.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 10 de Outubro de 2003
Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida