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Processo n.º 129/01
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório Por Acórdão de 14 de Julho de 2000, do Tribunal Judicial de Torres Vedras, A foi condenado, como autor material de um crime de homicídio na forma consumada, previsto e punido no artigo 131º do Código Penal, na pena de 12 (doze) anos de prisão, bem como no pagamento de uma indemnização no valor total de
28.236.422$00 à assistente B, que vivia em união de facto com a vítima, e filhos menores da assistente e da vítima, na seguinte proporção (conforme citado acórdão):
'(...) a pagar à assistente e aos filhos menores da assistente e da vítima, C e D , a título de danos patrimoniais, a quantia de Esc: 14.236.422$00;
(...) a pagar aos filhos menores da vítima, a título de danos não patrimoniais, a quantia de Esc: 14.000.000$00, sendo 8.000.000$00 pela perda do direito à vida da vítima e 3.000.000$00 por danos morais para cada um dos filhos.' Não concordando com esta decisão, na parte em que julgou improcedente o pedido de indemnização por danos não patrimoniais de 5.000.000$00 pelo sofrimento da vítima desde o disparo até à sua morte, bem como o pedido de 5.000.000$00 de indemnização por danos morais devidos à assistente, veio esta interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça alegando '(...) uma questão de igualdade entre os casais e de respeito pelo facto de viver, como viveu em União de Facto com o infeliz F', logo pedindo que fosse julgado inconstitucional '(...) por violação do artigo 13 da Lei Fundamental, o artigo 496-2 do Código Civil, na parte em que não admite, que a pessoa que viva em União de Facto com a vítima de um crime de que resulte a morte dessa vítima, tem direito a, por esse facto, receber uma indemnização por danos não patrimoniais.' Respondeu o Ministério Público na primeira instância, bem como o arguido, no sentido de dever ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida
' por justa, correcta e legal.' Por Acórdão de 7 de Dezembro de 2000, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu negar provimento ao recurso e confirmar o Acórdão recorrido, com os seguintes fundamentos:
'Alegam os recorrentes que a vítima teve ‘uma agonia atroz, com dores lacinantes
(...), mas o certo é que aquela ‘agonia atroz, com dores lacinantes’, que fundamentaria uma indemnização, não se revela de entre os factos dados como provados, dos quais, aliás, isso também se não pode presumir, mesmo com recurso
às regras da experiência comum, o que quer dizer que infundada é a pretensão dos recorrentes, neste particular. Tal como é no que respeita ao desiderato da recorrente de condenação do arguido e demandado civil a pagar-lhe 5.000.000$00 de indemnização por danos morais, que ela funda no evidenciado facto de viver maritalmente, ou, por outras palavras em união de facto com a vítima. E ela própria o reconhece quando alega que ‘o legislador quis proteger a união de facto com a transmissão do arrendamento post mortem – art. 85-1-E do R.A .U.
– Dec.-Lei 321/B/90 – 15 Out., com os alimentos – art. 2020 do Cód. Civil –, mas por razões que se desconhecem, não protegeu o afecto, a dor e a perda de uma vida daquele que vive em união de facto, impondo-se a alteração do disposto no art. 496-2 do Cód. Civil de molde a incluir aqueles que vivam em união de facto com o inditoso F e recorrente’. Outro não podia ser o decidido pelo Tribunal a quo neste particular. Na falta de direito positivo, não lhe cabia criar normativo para acolher o pretendido pela recorrente, sendo indubitável também estar fora das suas atribuições pronunciar-se sobre situações e soluções a ponderar, eventualmente, no plano do direito constituendo. De resto, não se alcança que o art. 496, n.º 2 do Cód. Civil, esteja ferido de inconstitucionalidade por violação do art. 13º da C.R.P., que consagra o princípio da igualdade, sendo que as situações invocadas pela recorrente manifestamente que se reconduzem a excepções em relação a princípios gerais do direito civil.' Notificada deste Acórdão, veio a demandante, por si e em representação dos seus filhos, pedir a sua aclaração e apontar àquele aresto omissão de pronúncia sobre a não interposição de recurso por parte do Ministério Público na 1ª Instância, o que a seu ver, conduziria 'à improcedência do recurso no tocante ao pedido de agravamento da pena', bem como, relativamente à alegada inconstitucionalidade da interpretação do artigo 496º, n.º 2 do Código Civil, sobre as razões em concreto pelas quais um casal em 'união de facto não tem, relativamente aos casamentos constituídos no plano dos direitos civis/católicos os mesmos direitos'. Por Acórdão de 29 de Janeiro de 2000, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o pedido de aclaração com os seguintes fundamentos:
' Há que conhecer: E, conhecendo, diremos que nada há a esclarecer. E isto porque o acórdão recorrido não contem, a nosso ver, qualquer deficiência, obscuridade ou contradição, sendo certo que só tais vícios justificariam um esclarecimento.
(...) E que também se não impunham mais considerandos sobre a questão da inconstitucionalidade do art. 496º, nº 2, do Cód. Civil por violação do art. 13º da C.R.P., certo como é que o que a ora recorrente pretendia era a extensão daquela norma de direito civil aos casais em ‘união de facto’, ou seja, criação de direito vedada ao poder judicial, e não a inaplicabilidade da mesma norma com fundamento em inconstitucionalidade. Acresce que dissertar sobre direito a constituir se traduziria numa prática de actividade inútil.' Inconformada, a demandante interpôs o presente recurso de constitucionalidade ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade do artigo 496º, n.º 2 do Código Civil, que a recorrente considera inconstitucional, por violação do art. 13º da Constituição da República, na medida em que, com base nele, 'a Douta Decisão sob recurso
(...) considera inexistir direito à recorrente de, em consequência da morte do companheiro em União de Facto, receber qualquer indemnização por danos não patrimoniais.' . A recorrente concluiu as suas alegações nos seguintes termos:
'1ª A improcedência do pedido de condenação do arguido A em quantia, mesmo que simbólica, por danos morais devidos à assistente pelo facto de esta viver em união de facto com a vítima é desajustada e imerecida.
2ª Na verdade, o actual ius connubi não pode afastar as tradições familiares, os ritos, as diversas religiões, seitas e formas de constituição da família na comunidade.
3ª A morte de um pai ou de um filho, de um ‘enteado’ ou de um ‘padrasto’, de um companheiro em ‘união de facto’ não depende de um casamento e tão respeitável é a dor de um cônjuge ‘casado segundo os ritos da Igreja Católica/ Conservatória do Registo Civil’, como sofrimento de um praticante de budismo, da Igreja Ortodoxa ou de uma ‘companheira em união de facto’...
4ª O legislador quis proteger a união de facto com a transmissão do arrendamento post mortem – art. 85-1-E do R.A .U.- Dec.-Lei 321/B/90 – 15 Out., com os alimentos – art. 2020 do Cód. Civil, mas por razões que se desconhecem, não protegeu o afecto, a dor e a perda de uma vida daquele que vive em união de facto, impondo-se a alteração do disposto no art. 496-2 do Cód. Civil de molde a incluir aqueles que vivam em união de facto com o inditoso F e recorrente.
5ª Na verdade, ‘a igualdade consiste em tratar por igual o que é essencialmente igual e em tratar diferentemente o que essencialmente for diferente. A igualdade não proíbe pois o estabelecimento de distinções, proíbe , isso sim, as distinções arbitrárias ou sem fundamento material bastante...’ – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n. 433/87 in B.M.J. 371, 145 e ss, pelo que,
6ª deverá ser declarado inconstitucional, por violação do art. 13 da Lei Fundamental, o artigo 496 – 2 do Código Civil, na parte em que não admite, que a pessoa que viva em união de facto com uma vítima de um crime de que resulte a morte dessa vítima, tem direito a, por esse facto, receber uma indemnização por danos não patrimoniais.' O Exm.º representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade da norma objecto do recurso, concluindo as suas contra-alegações nos seguintes termos:
'1 - A norma constante do n.º 2 do artigo 496º do Código Civil, interpretada em termos de desconsiderar – para efeitos de atribuição de um direito de indemnização por danos morais pessoalmente sofridos por quem convivia maritalmente com a vítima de um crime doloso – a existência de uma situação de união de facto, estável e duradoura, existindo filhos menores do casal, viola o disposto no nº 1 do artigo 36º da Constituição da República Portuguesa.
2 - Na verdade, constitui solução manifestamente excessiva e desproporcionada a que se traduz em negar sempre relevância jurídica ao dano moral sofrido por quem, nessas condições, convivia em união de facto com o falecido.' Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos A) Delimitação do objecto do recurso O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e tem por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 496º, n.º 2, 'na parte em que não admite que a pessoa que viva em união de facto com uma vítima de um crime de que resulte a morte dessa vítima tem direito a, por esse facto, receber uma compensação por danos não patrimoniais'. Como se sabe, são requisitos específicos do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, além do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, que a inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo e que a norma em causa haja sido aplicada, pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi. Tais requisitos estão verificados no presente caso, pois a inconstitucionalidade da norma em causa foi suscitada pela recorrente nas suas alegações perante o tribunal a quo, e veio a ser devido à aplicação dessa norma que este tribunal, no acórdão de 7 de Dezembro de 2000, negou à demandante o direito a uma compensação por danos não patrimoniais sofridos com a morte da pessoa com quem vivia em união de facto, considerando expressamente que tal norma não enfermava de inconstitucionalidade. Importa, porém, como bem se nota nas alegações do Ministério Público, delimitar rigorosamente a dimensão normativa do artigo 496º, n.º 2, do Código Civil em causa, pois que este diz respeito à indemnização 'por morte da vítima', mas existem diversos danos (e, mesmo, de diverso tipo), que são normalmente causados por tal evento lesivo – cfr. os artigos 495º (danos patrimoniais causados pela morte) e 496º, n.º 3, 2ª parte, do Código Civil. Dispõem os n.ºs 2 e 3 do artigo 496º do Código Civil:
'Artigo 496º Danos não patrimoniais
(...)
2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos número anterior.' No presente caso, é claro, antes de mais, que não estão em causa os danos patrimoniais causados pela morte, aos quais o Código Civil se refere no artigo
495º (incluindo neles as despesas feitas para salvar o lesado e todas as outras, incluindo as do funeral, as despesas dos que socorreram ou contribuíram para o tratamento ou assistência da vítima, e o prejuízo daqueles que podiam exigir alimentos ao lesado ou a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural). Mesmo dentro dos danos não patrimoniais, a que se refere o artigo 496º daquele diploma, há, porém, ainda que excluir a compensação pelo dano consistente na morte, a 'indemnização' pelos danos não patrimoniais sofridos pelos filhos da vítima, e a compensação pelos restantes danos não patrimoniais sofridos pela vítima. Quanto à primeira, a decisão de primeira instância reconheceu-a, atribuindo uma
'indemnização pela perda do direito à vida do falecido' aos filhos da vítima, com invocação do artigo 496ºdo Código Civil. Tal parte da decisão não foi, porém, objecto de recurso (v. logo a fls. 543, a delimitação do recurso dessa decisão), pois a recorrente concordou com tal atribuição – tornando-se, assim, irrelevante, não só apurar se uma problemática de constitucionalidade semelhante
à trazida à apreciação deste Tribunal no presente recurso se poderia suscitar em relação a tal indemnização, como quaisquer divergências doutrinais e jurisprudenciais quanto à forma de conceber tal indemnização (designadamente, quanto à sua aquisição originária ou derivada, e pelas pessoas referidas no artigo 496º, n.º 2 ou pelos sucessores mortis causa segundo as regras gerais). Em segundo lugar, também não foi interposto recurso quanto à compensação dos danos não patrimoniais sofridos pelo filho e pela filha da vítima, que lhes foi arbitrada pela decisão de 1ª instância. Pelo que também nessa medida não está em causa a norma do artigo 496º, n.º 2 do Código Civil. Já quanto à 'indemnização' por danos não patrimoniais sofridos pela vítima – mais propriamente 'pelo sofrimento da vítima desde o disparo até à sua morte' –
, foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão do Tribunal Judicial de Torres Vedras que a negou por não considerar provado o respectivo suporte factual. Não é, porém, também nessa parte que está agora em causa a norma do artigo 496º, n.º 2 do Código Civil, pois quanto a tais prejuízos o tribunal ora recorrido manteve a decisão de 1ª instância, não por aplicação dessa norma, mas sim por ter entendido que 'aquela ‘agonia atroz, com dores lacinantes’, que fundamentaria uma indemnização, não se revela de entre os factos dados como provados, dos quais, aliás, isso também se não pode presumir' – e afigura-se, aliás, que a própria recorrente não pretende abranger tais danos no presente recurso de constitucionalidade, já que se refere nas alegações aos danos morais sofridos por ela, e não pela vítima. Estão, pois, apenas em causa os danos não patrimoniais sofridos, com a morte da vítima, directamente pela pessoa que com ela convivia em união de facto. Como se viu, em caso de lesão de que provenha a morte, o Código Civil prevê expressamente um direito a 'indemnização por danos não patrimoniais' sofridos, além da vítima, pelas pessoas referidas no 496º, n.º 2: isto é, pelo cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e pelos filhos ou outros descendentes
(e só na falta destes pelos pais ou outros ascendentes, e, por último pelos irmãos ou sobrinhos que os representem). Ora, esta disposição foi interpretada pelo tribunal a quo no sentido de dela resultar a exclusão da possibilidade de compensar os danos não patrimoniais sofridos, devido à morte da vítima, pela pessoa que com ela convivia em situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges. Segundo tal entendimento da norma do artigo 496º, n.º 2, a enumeração dos possíveis titulares da 'indemnização' constante do n.º 2 do artigo 496º do Código Civil é taxativa e exclui a consideração dos danos não patrimoniais resultantes da morte para outras pessoas, como aquela que convivia em união de facto com a vítima de um homicídio doloso – e isto, ainda que, segundo as regras gerais, houvesse lugar a tal indemnização, por os respectivos danos serem tais que, nos termos da fórmula do n.º 1 do mesmo artigo, 'pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito'. Foi, na verdade este entendimento do referido artigo 496º, n.º 2 que fundamentou a decisão do tribunal recorrido de excluir a
'indemnização pelos danos não patrimoniais' sofridos pela recorrente. O objecto do presente recurso é, pois, a apreciação da conformidade com a Constituição do artigo 496º, n.º 2 do Código Civil, na parte em que, em caso de morte da vítima de um crime doloso, exclui a atribuição de um direito de
'indemnização por danos não patrimoniais' pessoalmente sofridos pela pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges – ou seja, uma indemnização que seria adquirida originariamente por tal pessoa e por danos não patrimoniais (dor, sofrimento, etc.) sofridos por ela própria. B) A questão de constitucionalidade Segundo a recorrente, a solução normativa em apreciação ofenderia o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição. O Ministério Público, nas suas contra-alegações, diversamente, fundamenta a conclusão da inconstitucionalidade dessa solução normativa na violação do artigo 36º, n.º 1, da Constituição, conjugada com o princípio da proporcionalidade (constituiria solução manifestamente excessiva e desproporcionada negar sempre relevância ao dano não patrimonial sofrido por quem, em determinadas circunstâncias que se verificam no caso, vivia em união de facto com a vítima). Ora, estando em causa a conformidade constitucional de uma norma da qual resultaria a diferenciação, para efeitos de atribuição de compensação por danos não patrimoniais, entre a situação do cônjuge (não separado judicialmente de pessoas e bens) e da pessoa que vivia com a vítima em união de facto, importa lembrar o enquadramento legal destas duas situações. Segundo a versão originária do Código Civil, enquanto o casamento era considerado como fonte das relações jurídicas familiares (artigo 1576º), a convivência em situação de união de facto, em condições análogas às dos cônjuges, era praticamente irrelevante, considerada como pura relação de facto – que interessava apenas para efeitos da determinação da paternidade, ou para efeitos de invalidade das disposições testamentárias ou de liberalidades, se o testador ou doador fossem casados; e ainda, eventualmente, para efeitos do artigo 495º, n.º 3, se pudesse entender-se que o falecido prestava alimentos ao sobrevivo 'no cumprimento de uma obrigação natural'. A Constituição da República consagrou, logo em 1976, no artigo 36º, n.º 1, o
'direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade', inculcando, assim, que a família constitucionalmente protegida não assenta necessariamente no casamento, pois previa-se a constituição de família não fundada no matrimónio. Posteriormente, o Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro veio conceder relevância
à convivência 'há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges', passando a prever-se, designadamente, no artigo 2020º do Código Civil (sobre a epígrafe 'união de facto'), um direito do sobrevivo de exigir alimentos da herança do falecido (desde que este não fosse casado ou estivesse separado judicialmente de pessoas e bens e que os alimentos não pudessem ser obtidos do cônjuge ou ex-cônjuge, dos descendentes, dos ascendentes ou dos irmãos), e a permitir-se, no artigo 1911º, n.º 3, do mesmo diploma, o exercício conjunto do poder paternal, como se fossem casados, pelos progenitores que convivessem maritalmente, se fosse essa a sua vontade. Por outro lado – e para nos cingirmos
à área do direito privado (sem considerar, por exemplo, efeitos no domínio da segurança social) –, a partir de 1985 (com a Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro) passou a prever-se no artigo 1111º, n.º 2, do Código Civil, que, em caso de falecimento do inquilino não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, a sua posição se transmitia para aquele 'que no momento da sua morte vivia com ele há mais de 5 anos em condições análogas às dos cônjuges' (assim também, depois de 1990, o artigo 85º, n.º 1, alínea e) do Regime do Arrendamento Urbano). E não admira, pois, que se discutisse se a união de facto deveria ou não ser qualificada igualmente como relação familiar. A protecção jurídica da união de facto veio, mais recentemente, a ser objecto da atenção do legislador, através da aprovação de dois diplomas adrede aprovados: a Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, que definira a união de facto como 'a situação jurídica das pessoas de sexo diferente que vivem em união de facto há mais de dois anos'; e a Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, que revogou aquela, e veio, no seu artigo 1º, n.º 1, a alargar a noção por forma a torná-la independente do sexo das pessoas em causa. Os efeitos que neste último diploma (ainda não regulamentado, pese embora o prazo de 90 dias previsto no seu artigo 9º) se atribuem à união de facto encontram-se enumerados no artigo 3º, compreendendo os direitos a: a. Protecção da casa de morada de família, nos termos do artigo 4º desta lei; b. Beneficiar de regime jurídico de férias, faltas, licenças e preferência na colocação dos funcionários da Administração Pública equiparado ao dos cônjuges; c. Beneficiar de regime jurídico das férias, feriados e faltas, aplicado por efeito de contrato individual de trabalho, equiparado ao dos cônjuges; d. Aplicação do regime do imposto de rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens; e. Protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei; f. Prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, nos termos da lei; g. Pensão de preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País, nos termos da lei.
Às pessoas de sexo diferente que vivam em união de facto estendeu-se, ainda, o direito de adopção em condições análogas às previstas para os cônjuges no Código Civil (embora sem prejuízo das disposições legais respeitantes à adopção por pessoas não casadas). A previsão legal da protecção das pessoas que convivem em situação de união de facto resultou, pois, consideravelmente alargada com estes diplomas a tanto destinados, podendo, eventualmente, questionar-se se a pretendida extensão a tais pessoas do direito a indemnização por danos não patrimoniais por morte da vítima, previsto para o cônjuge no artigo 496º, n.º 2 do Código Civil, em causa no presente recurso, não poderá já hoje fazer-se decorrer da alínea e) do artigo
3º da referida Lei n.º 7/2001 (que reproduz, neste ponto, o diploma de 1999), na qual se prevê o direito a 'protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral (...) da lei'. A questão de constitucionalidade a apreciar no presente recurso afigura-se, porém, independente da resposta que deva dar-se à interrogação referida no final do ponto anterior, relativa à eventual extensão, decorrente dos diplomas de 1999 e 2001 sobre protecção jurídica da união de facto, do regime geral previsto na lei civil para o direito de indemnização de danos não patrimoniais em caso de morte, às pessoas que se encontrem naquela situação. É que não só o evento lesivo ocorreu antes da entrada em vigor de tais diplomas, como a decisão recorrida não os considerou. O enquadramento constitucional da questão a apreciar no presente recurso deve, ainda, ser distinguido daquele que foi dado, na nossa jurisprudência constitucional, em decisões que se pronunciaram sobre normas que previam uma diferenciação de tratamento entre pessoas casadas e pessoas em situação de união de facto, mas que, ou consideravam relevante na própria hipótese da norma, ou se projectavam ainda sobre o interesse dos respectivos filhos – decisões, essas, que, por aplicação da proibição constitucional de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36º, n.º 4), chegaram a uma decisão de inconstitucionalidade.
É o caso, designadamente, do Acórdão n.º 359/91 (Diário da República [DR], I série-A, de 15 de Outubro de 1991), no qual, com tal fundamento, se declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de um assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1987 (publicado no DR, I série, de 28 de Maio de 1987) segundo o qual 'as normas dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil não são aplicáveis às uniões de facto, mesmo que destas haja filhos menores.' Neste aresto discutia-se, pois a constitucionalidade de uma norma que decretara a impossibilidade de aplicação analógica da norma sobre atribuição judicial do direito ao arrendamento da casa de morada da família às situações de união de facto em que houvesse filhos menores. E este Tribunal decidiu que tal norma era inconstitucional por violação do princípio da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, uma vez tal norma indicava expressamente o
'interesse dos filhos' como um dos critérios que deveria servir de base aos tribunais quando confrontados com a questão da atribuição da casa de morada da família por ocasião do divórcio. E é o caso também do já citado Acórdão n.º 286/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional [ATC], vol. 43º, págs. 503 e segs.), que julgou inconstitucionais, por violação do referido artigo 36º, nº 4, as normas dos artigos 42º, nº 1, e 46º do Decreto-Lei nº 18/88, de 21 de Janeiro, na medida em que excluíam da preferência para colocação os professores que, sendo pais de filhos menores, mas não casados, convivessem em condições idênticas às dos cônjuges e coabitassem com aqueles filhos. Neste aresto, o Tribunal entendeu que tal preferência ainda visava também o interesse dos filhos, pelo que a sua exclusão para pais não casados configuraria uma discriminação entre filhos nascidos do casamento e filhos nascidos fora do casamento. Ora, independentemente da questão de saber se existiria alguma diferença relevante entre as normas apreciadas neste último aresto (para as quais os filhos, se existissem, apareciam como portadores de um interesse cuja protecção podia ser apenas objectivo do legislador, mas não elemento da sua hipótese) e no Acórdão n º 359/91 (que referiam, logo na sua previsão, o interesse dos filhos como interesse a ser tomado em conta para atribuição do direito ao arrendamento), o certo é que não pode, na apreciação da norma em causa no presente recurso, conceder-se relevância autónoma à posição e ao interesse dos filhos. Na verdade, como se referiu, os danos não patrimoniais sofridos pelos filhos foram já considerados pela decisão da 1ª instância, que lhes atribuiu a correspondente compensação (além da devida pelo próprio dano da morte, isto é, pela perda da vida da vítima). Tendo os danos sofridos pelo filhos já sido considerados, está, pois, apenas em questão a norma do n.º 2 do artigo 496º do Código Civil, na parte em que exclui a atribuição de um direito de 'indemnização por danos não patrimoniais' por morte da vítima, sofridos pessoalmente pela pessoa que convivia com aquela em situação de união de facto, e não pelo filhos. A existência e o interesse dos filhos não relevam, pois, autonomamente para efeito do confronto da norma em causa com a proibição da discriminação de filhos nascidos fora do casamento, estando apenas em questão, como estão, os danos não patrimoniais sofridos directamente pela demandante. Não será, porém, despiciendo para a caracterização da situação desta e da vítima como a de convivência em união de facto, estável e duradoura – certamente com mais do que os dois anos exigidos pelos citados diplomas que alargaram a protecção da união de facto –, verificar que dela haviam resultado dois filhos menores que viviam com os pais, e que estes viviam em condições análogas às dos cônjuges. Numa certa perspectiva, segundo a qual a distinção entre pessoas casadas e pessoas em situação de união de facto, para efeitos de atribuição de uma compensação por danos não patrimoniais sofridos por morte da vítima, se afigura destituída de fundamento razoável, constitucionalmente relevante, poder-se-ia chegar, no presente recurso, logo a uma conclusão de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade. A aplicação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado tem sido reconduzida à censura de distinções sem fundamento racional, justo ou objectivo
(veja-se, no direito privado, e a propósito do direito da família, Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 3ª ed., Coimbra, 1985, págs. 78-80 e 148, nota 2). Como se disse no Acórdão n.º 14/2000 (DR, II série, de 19 de Outubro de 2000):
'A propósito do princípio da igualdade, teve já este Tribunal, por inúmeras vezes, oportunidade de sobre o mesmo discretear, citando-se, a título de exemplo o Acórdão n.º 1007/96 (publicado no Diário da República, 2ª Série, de 12 de Dezembro de 1996), onde, uma vez mais, se realçou que o princípio da igualdade
‘obriga que se trate como igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente; não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, o que aquele princípio proíbe são as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante. Prossegue-se assim uma igualdade material, que não meramente formal’. E acrescentou-se nesse aresto que ‘[p]ara que haja violação do princípio constitucional da igualdade, necessário se torna verificar, preliminarmente, a existência de uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminação’. Nas palavras de Maria Glória Ferreira Pinto (in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, pág. 44), ‘[o] critério valorativo a que o princípio da igualdade, enquanto princípio jurídico, apela, não deve ser, em consequência, um critério de valores subjectivos, mas, pelo contrário, um critério retirado do quadro de valores vigentes numa sociedade, interpretados objectivamente. É certo que tais valores vivem no âmbito das alterações históricas e civilizacionais, só sendo materialmente determináveis em presença de uma sociedade em concreto, mas nem por isso deixa de ser um quadro de valores objectivo’.' E pode, ainda, recordar-se o que, recentemente, se escreveu a propósito no Acórdão n.º 187/01 (DR, II série, de 26 de Junho de 2001):
«(...)
É sabido que o princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na jurisprudência deste Tribunal, não proíbe ao legislador que faça distinções – proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes. É esta, aliás, uma formulação repetida frequentemente por este Tribunal (cf., por exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 39/88, 325/92, 210/93, 302/97, 12/99 e
683/99, publicados, nos ATC, respectivamente, vol. 11º, pp. 233 e ss.,vol. 23º, pp. 369 e ss., vol. 24º, pp. 549 e ss., vol. 36º, pp. 793 e ss., e no Diário da República, II Série, de 25 de Março de 1999, e de 3 de Fevereiro de 2000). Como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante. Ao impor ao legislador que trate de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual, esse princípio supõe, assim, uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade, e, consequentemente, a justificação para o tratamento desigual, não podem ser arbitrárias. Antes tem de se poder considerar tal justificação para a distinção como razoável, constitucionalmente relevante. O princípio da igualdade apresenta-se, assim, como um limite à liberdade de conformação do legislador. Como se salientou no Acórdão n.º 425/87 (ATC, vol.
10º, pp. 451 e ss.),
'O âmbito de protecção do princípio da igualdade abrange diversas dimensões: proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação pelos poderes públicos de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 2ª ed., Coimbra, 1984, pp. 149 e segs.). A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo do controlo. Todavia, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por carência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada. Por outro lado, as medidas de diferenciação devem ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não se baseando em qualquer razão constitucionalmente imprópria.' Mais recentemente, no Acórdão n.º 409/99 (DR, II série, de 10 de Março de 1999) disse-se que:
'O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (cf., quanto ao princípio da igualdade, entre outros, os Acórdãos nºs 186/90,187/90,188/90,1186/96 e 353/98, publicados in ‘Diário da República’, respectivamente, de 12 de Setembro de 1990, 12 de Fevereiro de 1997, e o último, ainda inédito).' E no Acórdão 245/00 (DR, II série, de 3 de Novembro de 2000) salientou-se que
'(...) tem, de há muito, vindo a afirmar este Tribunal que é ‘sabido que o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionaridade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias – e assumem, desde logo, este carácter as diferenciações de tratamentos fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º da Lei Fundamental –, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável
(vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot)’ (cfr., por entre muitos outros, o Acórdão nº 1186/96, publicado no Diário da República,
2ª Série, de 12 de Fevereiro de 1997), ou, dito ainda de outra forma, o
‘princípio da igualdade (...) impõe se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e se trate diferentemente o que diferente for. Não proíbe as distinções de tratamento, se materialmente fundadas; proíbe, isso sim, a discriminação, as diferenciações arbitrárias ou irrazoáveis, carecidas de fundamento racional’ (verbi gratia, Acórdão nº 1188/96, ob. cit., 2ª Série, de
13 de Fevereiro de 1997).'» Ora, admitir-se-á que, na perspectiva referida, se entenda que a diferenciação entre o cônjuge e a pessoa que convivia com a vítima em união de facto estável e duradoura, para o efeito de excluir a possibilidade de compensar os danos não patrimoniais sofridos por esta última com a morte da vítima, é destituída de fundamento razoável. Na verdade, como destituída de fundamento razoável não há que considerar apenas a diferenciação de tratamento que possa considerar-se verdadeiramente arbitrária, mas também aquela que se baseie num critério que não possa ser relevante, considerando o efeito jurídico visado. E, na referida perspectiva, aceitar-se-á que a existência de um vínculo matrimonial, por contraposição à convivência em união estável e duradoura, não constitui só por si um fundamento razoável para excluir a compensação do sofrimento e da dor sofridos com a morte pela(o) companheira(o) da vítima de um homicídio doloso. Designadamente, o fundamento apontado em geral para a previsão de um conjunto de pessoas cujos danos não patrimoniais, resultantes da morte da vítima, são susceptíveis de ser levados em conta, consistente em evitar a multiplicação das pretensões indemnizatórias em consequência desta lesão (razão pela qual as
'excelências da equidade' teriam de ser 'sacrificadas às incontestáveis vantagens do direito estrito' – Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. I, 4ª ed., com a colab. de Henrique Mesquita, pág. 501), não é aplicável à dimensão normativa em causa, em que está em causa a compensação da dor e do sofrimento da pessoa que convivia em união estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges, da qual existiam até dois filhos menores, com a vítima de um homicídio doloso.
É certo que a morte de uma pessoa é um evento que é susceptível de causar danos não patrimoniais a um círculo alargado de pessoas. E pode também concordar-se com a conveniência em evitar que o lesante por mera culpa se veja assoberbado por pretensões indemnizatórias deduzidas por um número ilimitado de pessoas. Por estas razões, compreende-se que no n.º 2 do artigo 496º o legislador se tenha preocupado em enumerar o círculo de pessoas cujos danos não patrimoniais, causados pela morte da vítima, são atendíveis, e que se tenha mesmo preocupado em dividir tais pessoas em dois grupos (primeiro, o cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e os filhos ou outros descendentes; 'na falta destes', os pais ou outros ascendentes; e, 'por último', os irmãos ou sobrinhos que os representem). Isto, aliás, diversamente do que acontecia no anteprojecto do articulado relativo ao direito das obrigações, para o Código Civil de 1966, o qual previa, no seu artigo 759º, n.º 3, que no caso de morte de uma pessoa,
'quando as circunstâncias o impuserem, pode reconhecer-se direito de satisfação a outros parentes, a afins ou estranhos à família, desde que tais pessoas estivessem ligadas à vítima de maneira a constituírem de facto família dela' – Adriano Vaz Serra, Direito das obrigações (com excepção dos contratos em especial) – Anteprojecto, Lisboa, 1960, artigo 759º, n.º3, pág. 624. Na dimensão normativa em causa, porém, não só o beneficiário da indemnização se encontra perfeitamente delimitado, e é apenas um (pretendendo ser colocado no mesmo plano do cônjuge, e, portanto, no primeiro grupo dos titulares de indemnização), como – conforme bem nota o Ministério Público – não merece certamente tutela o eventual interesse do homicida doloso em se eximir à compensação de todos os danos que provocou com o homicídio. Por outro lado, sob a perspectiva do fundamento para o reconhecimento da compensação – que reside, obviamente, na verificação da dor e do sofrimento por causa do falecimento da vítima, e na justeza de uma compensação por tais danos
–, não se vê como possa relevar a existência de um vínculo matrimonial, em lugar apenas de uma convivência em união estável e duradoura com outra pessoa, em condições análogas às dos cônjuges, para excluir completamente a atendibilidade dos padecimentos sofridos por esta. Estes não são, na verdade, nem qualitativa nem quantitativamente menos merecedores da tutela do direito por não existir um vínculo matrimonial. Não se divisando, pois, fundamento razoável na exclusão da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais sofridos por quem vivia em união de facto com a vítima, chegar-se-ia, por esta via, a uma conclusão de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição. Entende-se, porém, que, mesmo a não se perfilhar tal entendimento do princípio da igualdade, não se é por isso necessariamente conduzido a uma solução de compatibilidade com a Constituição da solução normativa em apreciação no presente recurso de constitucionalidade. Segundo uma outra perspectiva, não se pode excluir a liberdade do legislador de prever um regime jurídico específico para os cônjuges, visando, por exemplo, a prossecução de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio. Considerando desde logo a existência de especiais deveres entre os cônjuges, dir-se-ia, como se afirmou no citado Acórdão n.º 14/2000, que '(...) de harmonia com o nosso ordenamento (ainda suportado constitucionalmente), o regime das pessoas unidas pelo matrimónio confrontadamente com a união de facto não permite sustentar que nos postamos perante situações idênticas à partida e, consequentemente, que requeiram tratamento igual'. E, portanto, não se divisaria na norma em apreço violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Lei Fundamental. Ainda quem adopta tal perspectiva, há-de, porém, necessariamente interrogar-se sobre a existência de uma justificação atendível para a solução de excluir de plano e em abstracto todos e quaisquer danos não patrimoniais sofridos pessoalmente por quem convivia com a vítima de um homicídio doloso em condições análogas às dos cônjuges. Na verdade, como este Tribunal já afirmou, o legislador constitucional dispensa no artigo 36º, n.º 1, protecção à família, enquanto 'elemento fundamental da sociedade', distinguindo-a, no n.º 1 e no n.º 2 desse artigo, do casamento. E, portanto, dispensa protecção a uma realidade social que se não funda necessariamente no matrimónio – uma família não fundada no casamento. Tal
'distinção constitucional entre família, por um lado, e matrimónio por outro', que 'parece espelhar um entendimento e reconhecimento da família como uma realidade mais ampla do que aquela que resulta do casamento, que pode ser denominada de família conjugal', foi referida por este Tribunal, recentemente, no Acórdão 690/98 (ATC, vol. 41º, págs. 579 e segs.); na doutrina civilística, veja-se C. Mota Pinto, ob. cit., pág. 149. No artigo 36º, n.º 1, a Constituição da República consagra, na verdade, o
'direito de constituir família e de contrair', distinguindo as duas realidades – e regista-se, a propósito, que também a recente Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a qual, apesar de não ter eficácia jurídica obrigatória, pode aqui ser convocada por exprimir princípios comuns aos ordenamentos europeus) consagra diferenciadamente, no seu artigo 9º, o 'direito de contrair casamento e o direito de constituir família', podendo ler-se, nas anotações explicativas pela mesa da Convenção que elaborou a Carta, que a redacção deste artigo, fundada no artigo 12º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem 'foi modernizada de modo a abranger os casos em que as legislações nacionais reconhecem outras formas de constituir família além do casamento'. A Constituição da República Portuguesa, depois de reconhecer o direito a constituir família, que se não funda necessariamente no casamento, reconhece no artigo 67º, n.º 1 à 'família, como elemento fundamental da sociedade', o
'direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.' Ainda que se entenda que daquela distinção e desta norma não resulta uma imposição para o legislador de reconhecer e proteger, em geral, a união de facto estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges, e a família nela fundada, em termos idênticos aos da família baseada no casamento, há-de certamente extrair-se daí, pelo menos, o dever de não desproteger, sem uma justificação razoável, a família que se não fundar no casamento – isto, pelo menos quanto àqueles pontos do regime jurídico que directamente contendam com a protecção dos seus membros e que não sejam aceitáveis como instrumento de eventuais políticas de incentivo à família que se funda no casamento. Ora, é justamente tal justificação que não se divisa para a dimensão normativa em análise, permitindo tal falta distinguir também a situação presente de outras, já apreciadas por este Tribunal. Na verdade, já se disse que não procede, em relação à compensação dos sofrimentos e da dor sofrida por quem convivia com a vítima de um homicídio doloso em condições análogas às dos cônjuges, nem a justificação consistente na necessidade de limitar as pretensões indemnizatórias, nem a que valoriza a necessidade de uma solução certa, já que a expectativa do lesante de se não ver confrontado com um número não definido de pretensões indemnizatórias não merece protecção e que o titular do direito à compensação se encontra perfeitamente determinado. E já se disse também que, para o fundamento do reconhecimento da compensação por danos não patrimoniais – a verificação da dor e do sofrimento por causa do falecimento da vítima, e a justeza de uma compensação por tais danos –, a existência de um vínculo matrimonial, em lugar apenas de uma convivência em união estável e duradoura com outra pessoa, em condições análogas
às dos cônjuges, é irrelevante. Acresce, com relevo para a determinação dos limites da discricionariedade legislativa, que a solução normativa em apreço se reporta a um problema que se afigura como inadequado para a prossecução de eventuais objectivos políticos de protecção ou incentivo ao casamento. Basta, para o concluir, considerar que não está em causa a concessão de um benefício em relação ao qual se verifique a previsibilidade necessária para se poder descortinar qualquer efeito de incentivo (ao contrário do que, em certa perspectiva, poderia ser o caso de outras medidas, como, por exemplo, a concessão de uma preferência para as pessoas casadas, por exemplo, na colocação como funcionário). Na norma em questão trata-se, antes, de compensar um dano – e um dano normalmente de grande gravidade, consistente em sofrimentos e dores, cuja compensação 'merece a tutela do direito', sendo 'indemnizável' nos termos do regime geral do artigo 496º, n.º 1, do Código Civil. E trata-se de um dano que resulta de um evento que é evidentemente imprevisível (um homicídio doloso). Pelo que, mesmo dispensando outras considerações, não se afiguraria adequada e aceitável, à luz do reconhecimento constitucional de protecção também da família não fundada no casamento – e do próprio valor da dignidade humana –, a utilização do regime da 'indemnização' pela dor e pelo sofrimento resultantes da morte para as pessoas que conviviam com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, como instrumento para a prossecução de eventuais objectivos políticos de incentivo à família fundada no casamento. Nesta linha, cumpre anotar, por último, que, se já se não encontra justificação atendível para a desprotecção da família não fundada no casamento, que resultaria da proibição de consideração dos danos não patrimoniais sofridos pela pessoa que convivia em união estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges, com a vítima de um homicídio doloso, menos ainda será divisável tal justificação no actual normativo, considerando o regime de protecção da união de facto actualmente em vigor, previsto na Lei n.º 7/2001. Na verdade, não se encontra justificação para se reconhecer a tais pessoas variados direitos (cfr. o artigo 3º do citado diploma), que podem ter como destinatários também particulares, mas limitar aos cônjuges a protecção que, em caso de morte, resulta da compensabilidade dos danos não patrimoniais pessoalmente sofridos – que se refere a danos de grande gravidade e pessoais, que por natureza revestem sempre uma dimensão individual e de incomensurabilidade. Também nesta perspectiva – próxima da que, nas suas contra-alegações, adopta o Ex.mº representante do Ministério Público neste Tribunal – se chegará, pois, a uma solução de inconstitucionalidade, por violação do artigo 36º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade, da norma do n.º 2 do artigo 496º do Código Civil por, em caso de morte da vítima de um crime doloso, excluir o direito de 'indemnização por danos não patrimoniais' sofridos pela pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a. Julgar inconstitucional, por violação do artigo 36º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade, a norma do n.º 2 do artigo 496º do Código Civil, na parte em que, em caso de morte da vítima de um crime doloso, exclui a atribuição de um direito de 'indemnização por danos não patrimoniais' pessoalmente sofridos pela pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges; b. Consequentemente, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 19 de Junho de 2002 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Bravo Serra (vencido, nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa (vencido, acompanhando, no essencial, a declaração de voto do Exmº Conselheiro Bravo Serra). DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à solução de inconstitucionalidade a que se chegou no presente aresto de que esta declaração faz parte integrante.
Na verdade, tenho para mim que diferentes são, à partida, as situações em que dois seres se encontram unidos pelo matrimónio e as de haver, entre eles, uma situação de convivência semelhante à que decorre do casamento mas em que a união por força do respectivo contrato não existe. Tudo repousará, pois, numa opção tomada pelas pessoas envolvidas na convivência, em que, de um lado, o casal se sujeita aos ónus, direitos e obrigações advindas do contrato de casamento e, de outro, o casal não intenta ficar submetido a tal sujeição.
Assim, e desde logo numa primeira aproximação, não descortino que o legislador tenha de tratar semelhantemente situações que, à partida não são semelhantes, sendo-lhe, pois, lícito, não estabelecer uma paridade de tratamento.
Dir-se-á, porém, que a questão sub iudicio se não posta num prisma de igualdade, mas sim numa óptica do dever imposto ao legislador - que está adstrito a, nas soluções legislativas, observar a proporcionalidade - de, tendo em conta que a Constituição reconhece e protege a família não fundada no casamento, vir a consagrar uma medida que o direito ordinário apenas prescreve tendo em vista as situações consorciais, consequentemente desprotegendo a família (recte a pessoa que estava ligada ao decesso por mera união de facto) não fundada no casamento.
Simplesmente, mesmo neste prisma, é para mim líquido que o direito atribuído pela norma em apreço ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens não pode ser perspectivado como um direito que tenha de ser imposto constitucionalmente em nome da protecção da família. Para demostrar esta asserção, basta pensar que pela dita norma, e ainda que relativamente a uma família «tradicionalmente constituída», nem todos os respectivos membros - mesmo os mais próximos (pense-se, verbi gratia, nos casos dos ascendentes e colaterais do primeiro grau, tendo o falecido deixado cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e filhos ou outros descendentes) - são objecto de uma protecção tal como a conferida àquele cônjuge.
O escopo do legislador da norma constante do nº 1 do artº 496º do Código Civil foi, como é reconhecido pela doutrina, o de evitar uma multiplicidade de pretensões indemnizatórias (como forma de ressarcimento, por quem deduzisse essas pretensões, de danos não patrimoniais próprios sofridos pela ocorrência da morte da vítima), ainda que, em abstracto, fossem perfeitamente pertinentes - e, de jure constituendo, aceitáveis - as razões que poderiam estar na base da dor que fundava o pedido ressarcitório. E, por isso, entendeu o legislador por bem atribuir tal direito a um círculo restrito de pessoas (ainda que essa solução, porventura, comprometesse as 'excelências da equidade' - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 1º volume, 4º edição, 501). Em tese, nada obstaria a que, e mesmo numa perspectiva do intento de evitar a aludida multiplicidade, o legislador, atentas as mencionadas razões, viesse a consagrar como titular do direito a ser indemnizado por danos não patrimoniais próprios quem estivesse acentuadamente ligado à vítima, designadamente por uma convivência more uxorio.
Não o quis, porém, fazer, limitando-se ao círculo de pessoas que taxativamente veio a indicar no nº 1 do artº 496º do Código Civil.
Se, respeitantemente a filhos nascidos do casamento e fora dele, existe a vinculação constitucional de não discriminação, já não lobrigo que, com referência ao cônjuge e a quem viva maritalmente com outrem e que não está vinculado por força do contrato consorcial, se imponha, ex vi da Lei Fundamental, a dação de um mesmo ou similar tratamento.
No caso de que se cura, e tendo em atenção o referido intento do legislador de, ao consagrar a norma que constitui objecto de apreciação no vertente acórdão, obstar a uma multiplicidade de pretensões indemnizatórias, sou do entendimento de que lhe era, como é, lícito, ao gizar o restrito círculo de pessoas que têm jus a uma indemnização por danos não patrimoniais próprios sofridos em razão da morte da vítima, que do mesmo não faça parte quem, muito embora, em critério de «excelências de equidade», possua uma corte de razões que se não afasta daqueloutras detidas por quem está ligado estável e duradouramente
à vítima por mor de um negócio jurídico (o casamento) fonte imediata de uma relação jurídica familiar, não está, efectivamente, vinculado por força desse negócio, não vinculação essa que, afinal e bem vistas as coisas, resulta de uma opção tomada entre a própria vítima e a pessoa que com ela convivia, mas que se não quis vincular pelo matrimónio, sendo que o tratamento paritário ou, ao menos, semelhante, entre alguém em tais condições e quem esteja ligado à vítima por uma relação consorcial não é, a meu ver, imposto constitucionalmente.
Ora, se um tal tratamento não é constitucionalmente imposto, e se são razoáveis e atendíveis os intuitos que levaram o legislador a restringir o círculo de pessoas a quem foi dado o direito de indemnização estatuído no nº 1 do artº 496º do Código Civil, não vislumbro que se possa defender que seja arbitrária ou desproporcionada a solução que aí se consagrou. Bravo Serra