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Proc. nº 243/02 Acórdão nº 212/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. J..., identificado nos autos, interpôs recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que, em 1 de Março de 2001, negara provimento ao recurso por ele interposto do acórdão do tribunal colectivo do 3º Juízo Criminal da Almada que, em 10 de Dezembro de 1999, decidira que 'os crimes que levaram à condenação do arguido no âmbito dos processos 461/91 do 1º Juízo Criminal de Barcelos e 761/99 STBLLE do 2º Juízo Criminal de Loulé, em atenção à data da sua prática e à data dos acórdãos respectivos, não se encontram em relação de concurso com os aqui considerados e, por isso, não se tomaram em conta na elaboração do presente cúmulo jurídico de penas'.
Nas alegações que então apresentou (fls. 1340-1347 vº), o arguido formulou, entre outras, as seguintes conclusões:
'[...]
11ª. À nossa tradição jurídica repugnam as penas perpétuas, entendendo-se como tal as penas que excedam o máximo da pena aplicável a alguns crimes e ao concurso de crimes (hoje 25 anos). Para além deste limite, estaremos portanto perante o emprisionamento perpétuo.
12ª. Assim, a interpretação normativa deve igualmente ser feita de acordo com este princípio estruturante e em consonância com o mesmo conforme decorre do disposto no art. 30º, 1 C.R.P., o qual se tem como igualmente violado.
13ª. As normas dos arts. 1º, 77º, 1 e 78º, 1 e 2 [do Código Penal] são inconstitucionais, na interpretação de acordo com a qual se entenda que o legislador pretendeu excluir do âmbito de protecção das mesmas normas as situações de cúmulo jurídico «por arrastamento», por violação dos princípios da legalidade, do tratamento mais favorável ao arguido em processo penal, da proibição de penas de prisão perpétuas e do processo justo, tal como os mesmos princípios surgem retratados nos arts. 2º, 20º, 4, 29º, 3, 30º, 1 todos da C.R.P. e art. 1º, 1 e 3 C.P. cujas disposições são materialmente constitucionais ex vi art. 17º C.R.P.
14ª. Em especial a norma do art. 77º, 1 C.P. é inconstitucional, na interpretação de acordo com a qual se entenda que o legislador pretendeu dar à frase: Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena; o sentido de serem puníveis em acumulação material todos os crimes cometidos após o trânsito em julgado da primeira decisão condenatória por qualquer dos crimes e independentemente da data dos factos; por violação dos princípios da legalidade, do tratamento mais favorável ao arguido em processo penal, da proibição da aplicação de penas de prisão perpétuas e do processo justo, tal como os mesmos princípios surgem retratados nos arts. 2º, 20º, 4, 29º, 1, 29º, 3, 30, 1 todos da C.R.P. e art. 1º, 1 e 3 C.P. cujas disposições são materialmente constitucionais ex vi art. 17º C.R.P.
Termos em que:
Deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por acórdão que ordene o retorno dos autos ao Tribunal de primeira instância para que este proceda a nova decisão para fixação do cúmulo jurídico das penas aplicadas ao recorrente levando em conta as condenações desconsideradas.
[...].'
2. Por acórdão de 17 de Janeiro de 2002 (fls. 1471 a 1474 vº), o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
Lê-se no texto desse acórdão, para o que aqui releva:
'[...]
5.1. Se o acórdão de 6FEV92 de Barcelos transitou em FEV93 (e, por isso, antes dos crimes que, em ABR95/OUT95 e 17JUL96, desencadearam os processos de Almada – aliás, cometidos durante o cumprimento da respectiva pena e, mais precisamente, durante a saída precária que, iniciada em 20OUT94, o beneficiário prolongou indevidamente até 18JUL96), o crime de Barcelos não concorrerá com os de Almada
(posteriores ao trânsito da condenação). E daí que o juiz de Barcelos haja informado em 6JUL99 (fls. 1002) que só após o termo do cumprimento dessa pena
(previsto para 23ABR03) é que o condenado poderia passar a cumprir a(s) pena(s) imposta(s) por Almada, «dado que esta(s) respeita(m) a factos ocorridos durante a ausência ilícita do estabelecimento prisional onde estava a cumprir pena».
5.2. Se, por outro lado, se poderão – de certa perspectiva – ver os crimes de Loulé e Barcelos como partícipes do mesmo concurso criminoso (pois que o crime mais recente foi anterior ao trânsito da condenação pelo mais antigo) e se os crimes de Almada também concorrem entre si, a verdade é que estes não concorrem com aqueles outros (pois que posteriores – 1995/1996 – ao trânsito [em 1993] da
última das correspondentes condenações).
5.3. O autor de uns e outros terá, pois, que cumprir duas penas autónomas: em primeiro lugar, a correspondente ao primeiro concurso (Loulé + Barcelos = 17 anos de prisão) e, depois, a correspondente ao segundo concurso (Almada + Almada
= 16 anos de prisão).
5.4. E, mesmo que a condenação de Loulé tivesse transitado – como pretende o recorrente (valendo-se de recurso alheio) – em NOV/DEZ95 (que terá sido a data em que transitou a condenação da arguida que, do acórdão do STJ de 21JAN93, recorreu – desacompanhada do ora recorrente – para o Tribunal Constitucional, que, de resto, não lhe recebeu o recurso), essa circunstância apenas reconduziria a questão à de saber se a pena (de 8 anos de prisão) aplicada em
8JUL97 no processo 435/95 de Almada (por crime de ABR/OUT95) deveria cumular-se com a do processo seguinte (como aconteceu, na decisão recorrida, em 19DEZ99) ou com as penas dos processos anteriores (unificadas entre si, em 17ABR97, na pena conjunta de 17 anos de prisão).
5.5. De qualquer modo, jamais a pena aplicada no processo 435/95 de Almada
(mesmo que pudesse unificar-se com a do processo 206/87 de Loulé, na hipótese de o respectivo crime – de ABR/OUT95 – ter antecedido o trânsito da condenação anterior) poderia cumular-se com a do processo 461/91 de Barcelos (cuja condenação transitou, sem dúvida, antes da prática do crime de Almada).
5.6. Por outras palavras, mesmo que o crime de Loulé concorresse – e não concorre – com os de Barcelos (461/91) e de Almada (435/95), a verdade é que não concorrem entre si nem o de Loulé com o de Almada (758/96 – posterior, sem dúvida, ao trânsito da condenação de Loulé) nem o de Barcelos (461/91 – condenação transitada em FEV93) com qualquer dos crimes de Almada (datados de OUT95 e JUL96).
5.7. Aliás, e em bom rigor, o caso – no tocante aos crimes de Almada perante o de Loulé – nem seria, sequer, de «conhecimento superveniente do concurso» (art.
78.1 do CP), já que, depois da «condenação» de 29OUT87 (tenha ela transitado em FEV93 ou, mesmo, em DEZ95), não se mostrou que o agente tenha praticado,
«anteriormente àquela condenação», «outro ou outros crimes». Com efeito, todos os seus «outros crimes» ocorreram «posteriormente» (pois que ocorridos entre OUT89 e 17JUL96) à condenação de 1987 e, por isso, jamais esta o poderia ter tido «em conta, para efeito de pena conjunta, se dele tivesse conhecimento». É que, em caso de conhecimento superveniente do concurso criminoso, a unificação das respectivas penas implica «que o crime de que só agora haja conhecimento tenha sido praticado antes da condenação anteriormente proferida, de tal forma que esta deveria tê-lo tomado em conta, para efeito de pena conjunta, se dele tivesse conhecimento» [...]. Já que «o momento decisivo para a questão de saber se o crime agora conhecido foi ou não anterior à condenação é o momento em que esta foi proferida – e em que o tribunal teria ainda podido condenar numa pena conjunta –, não o do seu trânsito» [...].
5.8. Assim sendo, bem andou o tribunal colectivo (assim como a Relação, que o apoiou) ao cumular entre si as penas dos processos de Almada e ao autonomizá-las da pena conjunta entretanto operada, com as demais, em Barcelos.
5.9. De outro modo, o cometimento de mais um crime (aqui, o de ABR/OUT95) conduzir – absurdamente – à unificação de penas (as decorrentes de crimes de
1986 e 1990, por um lado, e de 1996, por outro) que, sem o acréscimo desse crime, haveriam, inegavelmente, de permanecer autónomas.'
3. Notificado do acórdão, J... interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da 'inconstitucionalidade do artigo 77 do Código Penal por violação dos arts. 20-4, 29, 30 e 32 da Lei Fundamental na interpretação expendida no douto acórdão sendo certo que a acolher tal interpretação deste Alto Tribunal o ora recorrente estará, inevitavelmente, condenado a duas ou mais penas de prisão, quiçá a prisão perpétua, o que é inadmissível à luz do artigo 30 da Lei Fundamental' (fls. 1488, com original a fls. 1490).
O recurso foi admitido por despacho do Conselheiro Relator de fls.
1489.
4. Proferido despacho determinando a produção de alegações, o recorrente apresentou as seguintes conclusões (fls. 1501-1503):
'1- Inexiste em Portugal a prisão perpétua e a pena de morte... mas o caso vertente é sintomático de como um arguido é condenado a uma morte lenta nos frigoríficos gelados e húmidos das celas subterrâneas de um país que «parece» prezar a dignitas como fundamento de toda a sua existência e como princípio fundamental – artigo 1° da Constituição da República Portuguesa.
2- O princípio da execução contínua das penas e os princípios da liberdade condicional – arts. 61 do Cód. Penal e art. 484 e ss do CPP – impõem no caso do recorrente uma pena global única e unificada independentemente do trânsito em julgado deste ou daquele crime, nesta ou naquela comarca pois que a uma única violação de um bem jurídico tutelado pela ordem jurídica ou a uma única resolução criminosa deve corresponder uma única pena.
3- O legislador não criou uma solução clara para o caso sub judice mas os tribunais podem e devem criar o direito e aplicar e fazer a justiça e justiça inexiste quando se permite que um arguido cumpra várias penas com caracter perpétuo, que somam muito mais que os 25 anos, violando-se assim os princípios contidos nos arts. 77 e 78 do CPP e arts. 1° e 30 da Constituição.
4- A não unificação no cúmulo jurídico de todas as penas em que o recorrente foi condenado viola os arts. 77 e 78 do Cód. Penal e perante tal hermenêutica, tais normas são manifestamente inconstitucionais por violação dos princípios da dignidade da pessoa humana –, da proibição de aplicação de penas com caracter perpétuo – arts. 1°, 20, 29-1 e 30 da Lei Fundamental e ainda do art. 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.'
Por sua vez, o Ministério Público concluiu do seguinte modo (fls.
1509 a 1512):
'1º. Não é inconstitucional a interpretação normativa do nº 1 do artigo 77º do Código Penal, consistente em condicionar a figura do concurso de crimes – e da consequente unificação das penas – à exigência legal de que os crimes em causa não hajam sido supervenientemente praticados, relativamente [a]o momento do trânsito em julgado de precedente decisão condenatória.
2º. Permanecendo, consequentemente, como autónomas as penas correspondentes à reiteração de uma actividade criminosa durante o cumprimento da pena que havia sido cominada ao arguido por decisão transitada em julgado.
3º. Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
II
5. Tal como delimitado pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o presente recurso tem como objecto a norma do artigo 77º do Código Penal.
Tendo em conta que o presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, este Tribunal só pode pronunciar-se sobre a conformidade constitucional de norma que tenha sido aplicada na decisão recorrida e cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo de modo processualmente adequado (cfr. artigo 70º, nº 1, alínea b), e artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
Assim sendo, o Tribunal apenas poderá conhecer, no âmbito do presente recurso, da constitucionalidade da norma contida no nº 1 do artigo 77º do Código Penal, pois só essa norma foi aplicada pelo tribunal a quo, como razão de decidir, no acórdão recorrido.
O nº 1 do artigo 77º do Código Penal dispõe como segue:
'1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
[...].'
Segundo a perspectiva do recorrente, a interpretação atribuída a tal norma na decisão recorrida é inconstitucional, por violação dos princípios da dignidade da pessoa humana e da proibição da aplicação de penas perpétuas, contidos nos artigos 1º, 20º, 29º, nº 1, e 30º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
6. Não cabe obviamente na competência do Tribunal Constitucional averiguar a data em que ocorreu o trânsito em julgado de cada uma das decisões condenatórias proferidas contra o arguido. Tem portanto este Tribunal de aceitar o entendimento que a este propósito vem expresso no acórdão recorrido.
Consequentemente, apenas está em causa apreciar neste processo a interpretação normativa do artigo 77º, nº 1, do Código Penal nos termos da qual se considera como momento decisivo para a aplicabilidade da figura do cúmulo jurídico (e da consequente unificação de penas) o trânsito em julgado da decisão condenatória – com a consequência de que a prática de novos crimes, posteriormente ao trânsito de uma determinada condenação, dará origem à aplicação de penas autonomizadas.
Ora, como bem sublinha o Ministério Público nas suas contra-alegações, a exigência formulada pelo artigo 77º, nº 1, do Código Penal como condição para a unificação das penas correspondentes aos crimes em concurso
– isto é, a exigência de que a prática de um outro crime tenha ocorrido antes do trânsito em julgado da decisão condenatória pelo primeiro crime – não pode entender-se como mera condição formal, antes revela um substancial sentido
ético, ligado ao princípio da culpa, que deve relacionar-se com as dificuldades de reinserção do arguido, anteriormente condenado.
A condição estabelecida no preceito em análise não se afigura como desrazoável ou injustificada, pois, como ficou dito, assenta num fundamento material bastante e tem uma justificação racional: designadamente, o regime contido na norma impugnada assenta no princípio da culpa e justifica-se pelas especiais dificuldades de ressocialização nos casos em que um arguido a quem tenha sido aplicada uma sanção penal demonstre, pela sua actuação posterior – pela prática de novos crimes –, que não conforma o seu comportamento em função das exigências do direito penal.
Por outro lado, é manifesto que, no caso dos autos, a acumulação de penas impostas ao arguido corresponde à reiteração da actividade criminosa do arguido, não podendo atribuir-se-lhe o significado de imposição de qualquer pena de duração perpétua ou indeterminada. Na verdade, resulta dos elementos do processo que o arguido cometeu novos crimes durante o cumprimento da pena que lhe havia sido anteriormente imposta por decisão transitada em julgado, aproveitando para tal um período de saída precária, que aliás prolongou indevidamente por quase dois anos.
Conclui-se que a interpretação normativa atribuída pelo Supremo Tribunal de Justiça ao artigo 77º, nº 1, do Código Penal, nos termos da qual se considera como momento decisivo para a aplicabilidade da figura do cúmulo jurídico (e da consequente unificação de penas) o trânsito em julgado da decisão condenatória, não ofende os princípios da dignidade da pessoa humana, do Estado de direito, da tipicidade, da culpa e da inexistência de penas de duração perpétua ou indefinida, consagrados nos artigos 1º, 2º, 20º, 29º, nº 1, e 30º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 22 de Maio de 2002- Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa