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Processo n.º 49/02
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional:
No presente recurso de constitucionalidade, interposto por A, foi proferida em 7 de Março de 2002, ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, a Decisão Sumária n.º /2002, pela qual se decidiu 'não tomar conhecimento do recurso quanto ao artigo 215º n.º 3 e à ‘interpretação e aplicação’ dos artigos 174º, n.º 1, 2 e 3, 177º e 176º, todos do Código de Processo Penal' e 'negar provimento ao recurso quanto aos artigos 433º, 410º, n.º 2 e 430º do Código de Processo Penal', condenando-se o recorrente em custas, com cinco unidades de conta de taxa de justiça. Os fundamentos dessa Decisão Sumária foram os seguintes:
' (...) no requerimento de recurso foram indicadas, como normas que se pretendia que o Tribunal Constitucional apreciasse, por um lado, a 'interpretação e aplicação dos arts. 174º, n.º 1, 2 e 3, 177º e 176º do CPP, nos termos em que foi declarada válida a busca efectuada ao veículo de marca ‘X’, com matrícula
........, sem cumprimento de formalidade que constitui elemento essencial do acto processual', e, por outro lado, 'os arts. 433º, 410º, n.º 2 e 430º do CPP'. Como o recorrente não indicava, nem a peça processual em que suscitara a inconstitucionalidade destas normas, como exige o artigo 75º-A, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, nem o enunciado preciso da interpretação normativa dos
‘arts. 174º, n.º 1, 2 e 3, 177º e 176º do CPP’ em causa, foi convidado a fazê-lo pelo relator no Tribunal Constitucional. Em resposta, o recorrente veio, porém, afirmar pretender ‘ver declarada’ a inconstitucionalidade de uma outra norma, diversa das indicadas no requerimento de recurso –o artigo 215º n.º 3 do Código de Processo Penal. Ora, a verdade é que, como se sabe, o objecto do recurso é fixado pelo respectivo requerimento, não podendo aceitar-se a inclusão de outra(s) norma(s) no âmbito do recurso, diversas das referidas no respectivo requerimento, aproveitando para tal a resposta ao convite previsto nos n.ºs 5 e 6 do artigo
75º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Como se salientou no Acórdão n.º 20/97
(publicado no DR, II série, de 1 de Março de 1997), ‘existe uma relação de complementaridade – que não se substituição – entre o requerimento de recurso e a intervenção processual em cumprimento de despacho proferido ao abrigo do n.º 5 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (...). O que não pode é o recorrente aditar ao conjunto de normas indicadas no requerimento de interposição do recurso um outro conjunto de normas. Tal como nas alegações de recurso se não pode ampliar o seu objecto, não é legítimo fazer-se tal ampliação a pretexto do suprimento de deficiências do requerimento. Aliás, outro entendimento equivaleria a transformar o requerimento de interposição do recurso numa mera formalidade, que acarretaria tantas mais vantagens quanto mais vaga fosse, na medida em que se adiava a delimitação do objecto do recurso bem para lá do prazo de apresentação deste.’ No presente caso, verifica-se, aliás, que o recorrente apenas foi convidado a indicar (no que ora importa) o ‘enunciado preciso da dimensão ou interpretação normativa’ que pretendia ver apreciada. Não é, pois, aceitável que aproveite a resposta a um convite para indicar este enunciado preciso, destinado apenas a complementar as indicações constantes do requerimento de recurso, para, diferentemente do que se pedia, indicar normas diversas, que pretende ver também apreciadas pelo Tribunal Constitucional. Não pode, assim, tomar-se conhecimento do recurso no que diz respeito ao artigo
215º n.º 3 do Código de Processo Penal.
4. No requerimento de recurso afirma-se que se pretende ver apreciada a
‘interpretação e aplicação dos arts. 174º, n.º 1, 2 e 3, 177º e 176º do CPP, nos termos em que foi declarada válida a busca efectuada ao veículo de marca ‘X’, com matrícula ........., sem cumprimento de formalidade que constitui elemento essencial do acto processual’. Resulta logo da forma como o recorrente identifica esta 'interpretação' daqueles artigos – ‘nos termos em que foi declarada válida a busca efectuada ao veículo de marca ‘X’, com matrícula ..........., sem cumprimento de formalidade que constitui elemento essencial do acto processual’ – que estava em causa, não uma determinada dimensão normativa, devidamente identificada, mas a sua aplicação ao caso concreto. Justamente por isso, o recorrente foi convidado a indicar o enunciado preciso da dimensão ou interpretação normativa em causa. Em resposta ao convite para aperfeiçoar esse requerimento, o recorrente nada veio, porém, dizer, a tal respeito, limitando-se, como se referiu, a indicar outra norma, que pretendia também ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. Poderia, pois, desde logo, duvidar-se – se não da existência, neste ponto, de uma resposta ao convite de aperfeiçoamento do recurso (que conduziria logo à deserção do recurso), pelo menos – da adequada identificação, pelo recorrente, de uma norma, ou dimensão normativa, a apreciar na sua constitucionalidade por este Tribunal. E recorde-se que, no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
18/96, publicado no DR, II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, p.
821), com exclusão dos actos de outra natureza (designadamente, das decisões judiciais), pelos quais tais normas são aplicadas. Seja, porém, como for quanto a tal ponto, a verdade é que o presente recurso vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, tornando-se necessário, para se poder conhecer de tal tipo de recurso, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e que a norma impugnada tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, que a inconstitucionalidade desta tenha sido suscitada durante o processo. Ora, verifica-se que a inconstitucionalidade dos ‘arts. 174º, n.º 1, 2 e 3, 177º e 176º do CPP (...)’, ou de uma sua determinada interpretação, não foi suscitada pelo recorrente perante o tribunal a quo, como deveria ter sido para que este tribunal se houvesse de pronunciar sobre a questão, e para que o Tribunal Constitucional pudesse, em via de recurso – ou seja, para reapreciação de uma decisão sobre a questão de constitucionalidade normativa –, apreciar a sua constitucionalidade. Designadamente, não se encontra referência à inconstitucionalidade dessas normas nas alegações do recorrente perante o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 1816 e segs.) nas quais, a propósito, se refere apenas a invalidade e a violação da Constituição ao acto de realização da busca que se contesta (assim, a fls. 1818,
1820 e 1836 e segs. dos autos), e não a uma norma ou interpretação normativa supostamente inconstitucional, que se não enuncia. O recorrente não suscitou, pois, durante o processo, uma questão de inconstitucionalidade normativa, devidamente identificada, pois referiu a violação da Constituição à própria realização da busca e não enunciou a interpretação da norma em causa, sendo certo que a norma que se pretendia ver apreciada correspondia apenas a uma dimensão interpretativa de um preceito. Como este Tribunal afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º 178/95 (DR, II série, de 21 de Junho de 1995), impunha-se que o recorrente tivesse ‘(...) indicado – o que não [fez] – o segmento de cada norma, a dimensão normativa de cada preceito – o sentido ou interpretação, em suma – que [tem] por violador da Constituição. De facto, tendo a questão da constitucionalidade de ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, in Diário da República
[DR], 2ª Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a lei fundamental.’ Por o recorrente não ter cumprido o ónus – indispensável para poder fazer uso do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – de suscitar devidamente a questão de constitucionalidade normativa durante o processo, não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do presente recurso (não tendo, aliás, o recorrente também enunciado no requerimento de recurso a dimensão normativa a apreciar pelo Tribunal Constitucional).
5. Resta, pois, como objecto do recurso, a apreciação da constitucionalidade dos artigos 433º, 410º, n.º 2 e 430º do Código de Processo Penal. O recorrente tem tais normas por inconstitucionais, por violação do ‘duplo grau de jurisdição consagrado no artº 32º, n.º 1 da CRP’. Trata-se aqui, porém, de uma questão que é de considerar 'simples', para os efeitos do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, por ter sido objecto de repetidas decisões anteriores deste Tribunal, podendo considerar-se existir uma jurisprudência constante, para cuja fundamentação se remete, no sentido de não julgar inconstitucionais essas normas – veja-se, com mais indicações, o Acórdão n.º 573/98 (publicado no DR, II Série, de 13 de Novembro de 1998), e, por exemplo o Acórdão n.º 76/99 (que confirmou a decisão sumária que não julgara inconstitucionais as normas dos artigos 410º, n.º 2, e 433º do Código de Processo Penal, em aplicação da jurisprudência resultante do referido Acórdão n.º 573/98).' Notificado desta decisão, o recorrente veio reclamar para a conferência ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando não haver fundamento para a Decisão Sumária proferida, nos seguintes termos:
'(...)
4. Na verdade, o recorrente na delimitação do âmbito do recurso interposto claramente referiu que pretendia ver declarada a interpretação materialmente inconstitucional do preceituado no artigo 174º, n.º 1, 2 e 3, 176º e 177º do CPP, por infringir o preceituado no artigo 32º, n.º 1, 2 e 5 da CRP.
5. No decurso, aliás, do que tinha invocado em sede de alegações de recurso e respectivas conclusões apresentadas junto do Supremo Tribunal de Justiça, (vide conclusões 1 a 12º).
6. Pelo que, verifica-se que o recorrente suscitou, efectivamente, durante o processo, a inconstitucionalidade normativa e indicou-a como desconforme com a Constituição,
7. E, deste modo, preencheu os requisitos de interposição de recurso exigidos pelo artigos 70º, n.º 1, b) e 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional e cumpriu o ónus de explicitar a constitucionalidade da interpretação [sic] normativa que pretendia ver apreciada.
8. Neste sentido, não se verifica qualquer impedimento de apreciação do presente recurso, devendo o mesmo seguir os seus termos até final.
9. Na verdade, a decisão sumária deve limitar-se aos casos em que se entenda que não pode conhecer-se do objecto do recurso ou que a questão a decidir é simples.
10. No entanto, apesar de considerar que o Tribunal Constitucional não deve tomar conhecimento do presente recurso, a decisão sumária ora reclamada, pronuncia-se efectivamente sobre a interpretação materialmente inconstitucional perfilhada pelo tribunal recorrido,
11. E desta forma, sob a aparência de não tomada de conhecimento, a decisão sumária realiza uma verdadeira apreciação do mérito do recurso, relativamente a todas as inconstitucionalidades suscitadas, ultrapassando o âmbito do próprio preceito processual constitucional.' O Ministério Público recorrido, notificado desta reclamação, veio dizer:
'1º O reclamante, no requerimento apresentado, nada aduz de substancialmente inovatório, relativamente aos fundamentos da douta decisão sumária que pretende impugnar.
2º Sendo manifesta a inverificação dos pressupostos do recurso interposto, quanto a parte das questões suscitadas.
3º E manifesta a improcedência da questão que coloca em sede de poderes cognitivos do Tribunal superior, no âmbito dos recursos em processo penal.
4º Pelo que deverá confirmar-se inteiramente aquela decisão.' Cumpre decidir. Como resulta da transcrição efectuada, a presente reclamação sustenta-se em dois fundamentos: o de que o recorrente 'suscitou, efectivamente, durante o processo, a inconstitucionalidade normativa', referido nos n.ºs 4 a 7 da reclamação, e o de que a Decisão Sumária reclamada 'sob a aparência de não tomada de conhecimento (...) realiza uma verdadeira apreciação do mérito do recurso, relativamente a todas as inconstitucionalidades suscitadas, ultrapassando o
âmbito do próprio preceito processual constitucional'. Ambos são, porém, manifestamente improcedentes. Na verdade, como se notou na decisão reclamada a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 174º, n.º 1, 2 e 3, 177º e 176º do Código de Processo Penal, ou de uma sua determinada interpretação, não foi suscitada pelo recorrente perante o tribunal a quo. Nas alegações do recorrente perante o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 1816 e segs.) apenas se refere apenas a invalidade e a violação da Constituição ao acto de realização da busca que se contesta (assim, a fls. 1818, 1820 e 1836 e segs. dos autos), e não a uma norma ou interpretação normativa supostamente inconstitucional, que se não enuncia. É o que acontece, designadamente, nas conclusões 1ª a 12ª dessas alegações, como se pode verificar consultando o que o recorrente disse a fls. 1857 e segs. dos autos:
'(...)
4º A busca referida ocorreu sem cumprimento de formalidade que constitui elemento essencial do acto impugnado. Deste modo,
5º Foi claramente violado o princípio do contraditório consagrado constitucionalmente no art. 32º, n.ºs 1 e 5 da CRP, Sendo que,
6º O contraditório é essencial para a valoração da prova em termos tais que a prova que não lhe for submetida não vale para formar convicção, não podendo considerar-se tal prova legalmente obtida. Acresce que,
7º Foi igualmente violado o princípio de presunção de inocência, também ele com assento constitucional no artº 32º, n.º 2 da CRP, pois, só a prova dos factos imputados obtidas atentas todas as formalidades legais pode servir para destruir a presunção de inocência.
8º Os princípios do contraditório e da presunção de inocência e de aquisição de prova, consagrados no já mencionado artº 32º, n.ºs 1, 2 e 5 da CRP, consideram-se todos violados pelo acto processual que se impugna.
(...)
12º e em cosnequência directa do vício de nulidade, por violação dos artºs 174º, n.ºs 1, 2 e 3, 177º e 176º do CPP, e artigo 32º, n.ºs 1, 2 e 5 da CRP, dever-se-á considerar inválido o acto impugnado, revogando-se a decisão recorrida.' Como se vê, a violação de normas ou princípios constitucionais aparece sempre reportada à própria realização da busca contestada, assacando-se também ao acto impugnado simultaneamente violação da lei e inconstitucionalidade. A Decisão Sumária reclamada merece, pois, confirmação, neste ponto. Quanto à alegação de que a decisão reclamada, aparentando não tomar conhecimento do recurso, realizou uma verdadeira apreciação do seu mérito, deve igualmente considerar-se manifestamente improcedente, sendo desmentida logo pela simples leitura dessa decisão. Na verdade, na decisão reclamada não se tomou conhecimento do recurso, em parte, e, na parte restante, as normas dos artigos 433º, 410º, n.º 2 e 430º do Código de Processo Penal não foram julgadas inconstitucionais, por se considerar tal questão simples, uma vez que já fora objecto de repetidas decisões do Tribunal Constitucional em tal sentido. Trata-se, justamente, dos casos para os quais o artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional prevê a prolação de decisão sumária, não havendo qualquer vício processual a censurar. Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão reclamada, quer quanto ao não conhecimento parcial do recurso, quer na parte em que negou provimento a este. Custas pelo reclamante, com 15 ( quinze ) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 22 de Maio de 2002 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa