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Processo n.º 671/98
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório No Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, A interpôs recurso contencioso de anulação do despacho de 4 de Março de 1993 do Conselho de Administração da Telecom Portugal, SA, que impôs ao primeiro a sanção disciplinar de despedimento por, alegadamente, 'aproveitando-se da disponibilidade e meios inerentes ao exercício das suas funções profissionais de montagem e instalação de equipamentos terminais, ter promovido a comercialização, instalação e manutenção deste tipo de equipamento por conta de uma empresa concorrente da Telecom, sua entidade patronal'. Por sentença de 10 de Maio de 1994, foi concedido provimento ao recurso e declarada a invalidade do acto impugnado. Desta decisão veio o Conselho de Administração da Telecom Portugal, SA interpor recurso de agravo para o Supremo Tribunal Administrativo. Invocando anterior decisão de não conhecimento do recurso, por incompetência material dos tribunais administrativos, o Exm.º Conselheiro-relator desse Supremo Tribunal determinou, em 14 de Outubro de 1997, a audição de recorrente e recorrido sobre tal questão prévia. Só o recorrido se pronunciou, considerando, designadamente, que, nos termos do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 277/92, de 15 de Novembro, que criou a Telecom Portugal, S.A., por cisão simples dos CTT, 'Os trabalhadores e pensionistas dos CTT, SA, oriundos dos CTT, EP, transferidos por efeito da cisão para a Telecom Portugal, SA, mantêm, perante esta, todos os direitos e obrigações de que eram titulares na empresa cindida...', pelo que lhe continuaria a ser aplicável o Regulamento Disciplinar inserto no Acordo de Empresa da Portugal Telecom
(publicado no Boletim do Trabalho e do Emprego, 1ª Série, n.º 34, de 15 de Setembro de 1996), empresa, esta, resultante da fusão da Telecom Portugal com os TLP e TDP (Decreto--Lei n.º 122/94, de 14 de Maio). Além disso, seria ilegal a decisão de considerar incompetentes os tribunais administrativos por ter transitado em julgado a decisão do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, acrescentando:
'Seria materialmente inconstitucional a norma legal aplicada que, no caso dos autos e na presente fase processual, excluísse os Tribunais Administrativos da competência em razão da matéria, para julgar a questão submetida à sua apreciação, por violação dos art.ºs 20º e 268º, n.ºs 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa.' Por Acórdão de 6 de Maio de 1998, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e considerando incompetentes os Tribunais Administrativos, argumentando, na fundamentação, do seguinte modo:
'Com a transformação dos CTT.EP numa sociedade anónima de capitais públicos operada pelo DL 87/92, este diploma ressalvou no art.º9º os direitos dos trabalhadores oriundos dos CTT.EP dispondo que os trabalhadores e pensionistas
... mantêm todos os direitos e obrigações de que forem titulares na data da entrada em vigor do presente diploma, ficando a sociedade obrigada a assegurar a manutenção do fundo de pensões do pessoal daquela empresa pública e no n.º2 acrescenta-se que ‘os regimes jurídicos definidos na legislação aplicável ao pessoal da empresa publica vigentes naquela data continuarão a produzir efeitos relativamente aos trabalhadores referidos no numero anterior’, ou seja, os trabalhadores e pensionistas da empresa publica CTT.’ A primeira questão que importa resolver em face da redacção dada aquele n.º2 do art.º9º do DL 87/92 é a de saber que regimes jurídicos definidos na legislação aplicável são salvaguardados. Neles também está incluído o regime consagrado na Portaria 348/87?
É verdade que a forma ampla como está redigida aquela norma abrange qualquer regime. A expressão verbal é pois de molde a permitir uma interpretação declarativa ampla em que aquele regime se encontra igualmente incluído. As soluções, no entanto, a que interpretação conduz levam a ir além do elemento literal. Com efeito a aceitação sem qualquer limitação desta interpretação implica a aplicação de um regime de natureza pública aos trabalhadores de uma empresa privada, sujeitando esta a um regime de tutela incompatível com a sua natureza privada. Os actos praticados no âmbito daquela portaria seriam actos administrativos sujeitos a recurso hierárquico e a recurso contencioso para os tribunais administrativos. Por outro lado, a aplicação por via da portaria acima citada de um regime de direito público aos trabalhadores de uma empresa privada, fora do quadro geral do regime da função pública, mas também fora do quadro do regime do contrato individual de trabalho, altera o quadro geral de punição de infracções disciplinares, pelo que de acordo com a alínea d) do n.º 1 do art.º168, hoje, art.º 165 da Constituição, constitui reserva da AR. À mesma conclusão chegaríamos, de resto com a invocação da alínea q) do mesmo número e art.º da CRP, em relação à atribuição de competência aos tribunais administrativos, decorrente do n.º4 do art.º26º do DL 49368, confirmada pelo art.º9º atrás transcrito, se a interpretação a dar aquela norma abrangesse o disposto na Portaria 348/87. Ora o art.º 9º n.º2 do DL 87/92 comporta outra interpretação mais restritiva, abrangendo unicamente os regimes jurídicos aplicáveis àqueles trabalhadores relacionados com o fundo de pensões ou outros igualmente estabelecidos para esses trabalhadores. A interpretação que assim decorre do n.º1 e 2 do art.º9º é que no n.º1 o legislador quis acautelar os direitos de que já eram titulares os trabalhadores, à data de entrada em vigor deste diploma, e no n.º2 se quis acautelar a aplicação desses regimes jurídicos com base nos quais esses direitos e obrigações foram atribuídos, em relação aos trabalhadores em relação aos quais esses direitos ainda não se tinham vencido. Trata-se da interpretação que por ser mais conforme com a Constituição deve ser adoptada, uma vez que ela salva aquela norma jurídica. Mas esta interpretação que já nos parece ser aquela que resulta do disposto no art.º9º atrás referido, não pode deixar de ser aquela que resulta do disposto no art.ºl5º, alínea b) do DL 122/94 que transformou a natureza jurídica daquela sociedade de capitais públicos, por fusão, a Portugal Telecom, SA. Com efeito com a revogação do DL 49368, deixou de ter sustentáculo legal a portaria que continha o regime disciplinar, e isso constitui mais uma razão para, por razões de conformidade constitucional, aceitar aquela interpretação. De resto, é visível essa preocupação do legislador quando procura englobar no n.º3 do art.º5º desse diploma os trabalhadores, pensionistas e beneficiários ao definir o âmbito dos regimes jurídicos protegidos por aquela norma. Julgamos pois, que hoje o regime do DL 49368, vertido na Portaria n.º 348/87 não
é aplicável aos trabalhadores oriundos dos CTT, que em tudo o que diz respeito ao processo disciplinar está abrangido pela lei geral aplicável aos trabalhadores das empresas privadas. Sendo assim, os tribunais competentes para julgar os conflitos decorrentes da aplicação de sanções disciplinares são os tribunais de trabalho e não os tribunais administrativos. A incompetência do tribunal prejudica o conhecimento dos vícios invocados.
É a mesma doutrina que se impõe seguir no presente caso, mesmo que o trabalhador fosse oriundo dos C.T.T. EP Escalão I. Tão pouco vale invocar o facto de a decisão do tribunal administrativo sobre a competência ter transitado em julgado, na medida em que a sentença foi posta em causa no presente recurso, como não transitou em julgado pois que a decisão de
1ª instância não equacionou explicitamente a questão da competência, ora colocada. Não se vê ainda onde se possa verificar qualquer inconstitucionalidade material. Não se trata aqui de uma norma nova, mas da interpretação de norma já vigente no momento em que foi interposto o recurso. Não se pode, pois, afirmar que haja qualquer norma inconstitucional que agora tenha sido aplicada.'
É desta última decisão que vem interposto por A o presente recurso de constitucionalidade, fundamentando-se para tal em que:
'tendo sido aplicada, como não podia deixar de ser, a Portaria n.º 348/87, de 28 de Abril que aprovou o Regulamento Disciplinar para vigorar nos CTT e, posteriormente, na Telecom Portugal e Portugal Telecom, a sua desaplicação com o consequente julgamento de incompetência dos Tribunais Administrativos, é não só, ostensivamente, injusta e ilegal como materialmente e formalmente inconstitucional, por violação do disposto nos art.ºs 20º; 206º; 207º; 268º e
277º da Const. da Rep. Portuguesa, ao menos, na interpretação seguida pelo Tribunal ‘a quo’'. Por o recorrente não ter indicado os elementos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), foi, no Tribunal Constitucional, dada aplicação ao disposto no n.º 6 desse mesmo artigo, tendo o recorrente atendido ao convite de aperfeiçoamento através de requerimento a fls. 178 dos autos, no qual teceu as seguintes considerações:
'1. O Tribunal ‘a quo’ recusou a aplicação ao caso dos autos do Regulamento Disciplinar aprovado pela Portª n.º 348/87, de 28 de Abril, com fundamento na privatização dos CTT (cfr. Acordão do STA recorrido).
2. Com esta desaplicação o Tribunal ‘a quo’ julgou-se incompetente em razão da matéria.
3. Na nossa modesta opinião, no entanto, sem razão nem fundamento bastante.
4. Assim e de acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 75º A em leitura conjugada com o art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, com o recurso para o Tribunal Constitucional pretende-se: a. A alteração do julgado por recusa de aplicação das normas legais contidas na Portª n.º 348/87, de 28 de Abril, uma vez que tal recusa se baseia na sua inconstitucionalidade após a privatização dos CTT. b. Não sendo como não é inconstitucional o n.º 2 do art. 9º do DL n.º
87/92, de 14 de Maio (transformou os CTT, EP numa sociedade anónima de capitais públicos), na leitura e interpretação do Tribunal é-o, claramente, por violação, como se disse no requerimento inicial dos art.ºs 20º, 206º, 207º, 268º e 270º da CRP e é esta inconstitucionalidade material e formal que se pretende também ver declarada. c. Do mesmo modo, a decisão do Tribunal ‘a quo’ recusou a aplicação de normas constantes de acto legislativo com fundamento na sua oposição aos diplomas que operaram a, alegada, privatização dos CTT, pelo que é, ostensivamente, ilegal e inconstitucional.
5. Assim, o recurso para esse venerando Tribunal, funda-se nas alªs a), b) e c) do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
6. Pretendendo-se que o Tribunal aprecie as normas invocadas no n.º 4 deste requerimento, em especial as decorrentes dos Decs.Leis n.ºs 87/92, de 14 de Maio, 277/92, de 15 de Dezembro e Portª n.º 348/87, de 28 de Abril.
7. Sendo que as normas e princípios constitucionais e legais violados pela decisão recorrida são os referidos também no n.º 4 deste requerimento.
8. A invocação das mesmas está feita no processo, nomeadamente, no requerimento resposta ao despacho de fls. 151 dos autos do STA (Pr. n.º 36355) e o próprio Acórdão recorrido aos mesmos faz referência para justificar a sua opção pela desaplicação da Portaria n.º 348/87, de 28/04'. No Tribunal Constitucional só o recorrente produziu alegações, concluindo desta forma:
'I. Em 05/06/92, quando foi elaborada a Nota de Culpa no âmbito do procedimento disciplinar, na conclusão do qual o recorrente foi despedido, ainda, nem sequer tinha sido publicado o diploma legal que decretou a cisão simples dos CTT (DL n.º 277/92, de 15/12). II. O procedimento disciplinar iniciou-se em Março de 1992 e terminou com o despedimento do, ora, recorrente, por despacho do Conselho de Administração da Empresa, em 04 de Março de 1993. III. Só a privatização da Empresa posterior ao DL n.º 122/94, de 14 de Maio que origina a substituição do Regulamento Disciplinar de direito público pelo Regulamento Disciplinar, inserto no AE/Portugal Telecom (BTE, Iª série, n.º 34, de 15/09/96) de direito privado, vai determinar, aí sim, a caducidade do Regulamento Disciplinar, aprovado pela Port.ª n.º 348/87, de 28 de Abril. IV. Por seu turno, a Telecom Portugal assumiu ‘ope legis’ (DL n.º 277/92, de 15 de Dezembro) a posição jurídica que era dos CTT, com todos os direitos e obrigações que esta detinha, por força da sub-rogação legal efectuada. V. O que se transmite no âmbito da sub-rogação legal da posição contratual é toda a unidade da relação contratual, não apenas a decorrente da prestação de trabalho contra retribuição, mas também a resultante do âmbito normativo em que a relação contratual se desenvolve. VI. Cessão e cisão são figuras jurídicas distintas. VII. No caso dos autos estamos perante uma cisão simples dos CTT, dando origem à Telecom Portugal, SA, empresa esta, ao tempo da cisão, de capitais exclusivamente públicos e, hoje, ainda, maioritariamente, públicos. VIII. O Acórdão recorrido não reconhece os direitos adquiridos e reconhecidos por lei aos trabalhadores ao serviço dos CTT que foram integrados, automaticamente, na Telecom Portugal. IX. Em contradição com o estatuído no art. 3º do DL n.º 277/92:
‘Os trabalhadores e pensionistas dos CTT, SA, oriundos do CTT, EP, transferidos por efeito da cisão para a Telecom Portugal, SA, mantêm, perante esta, todos os direito e obrigações de que eram titulares na empresa cindida...’
(sublinhados seus). X. O que vale, sem dúvida, por dizer que ao recorrente continuou a ser aplicável o Regulamento Disciplinar, aprovado pela Portª n.º 348/87, de 28 de Abril, posto que esta não foi revogada, nem substituída por qualquer outra, até à privatização da sucessora da 'Telecom Portugal', a 'Portugal Telecom', criada esta, por fusão da Telecom Portugal, TLP e TDP (cfr. DL n.º 122/94, de 14 de Maio). XI. Decidindo diferentemente, pela desaplicação ao caso dos autos da PRT n.º
348/87, alegadamente, porque esta seria inconstitucional, após a privatização dos CTT, a decisão recorrida é ilegal e na interpretação seguida das normas do DL 87/92, de 14 de Maio, (n.ºs 1 e 2 do art. 9º) e DL 277/92, de 15 de Dezembro, torna estas inconstitucionais. XII. Ora, não sendo, como não são, inconstitucionais os n.ºs 1 e 2 do art. 9º do DL n.º 87/92, de 14 de Maio (transformou os CTT, EP numa sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos) passam a sê-lo na interpretação adoptada pelo Tribunal ‘a quo’, por violação do disposto nos art.ºs 20º, 206º, 207º, 268º e
270º da CRP. XIII. A leitura restritiva seguida pelo Acórdão recorrido não tem sustentação legal (cfr. art. 11º do Cód. Civil) e contraria o princípio da aplicação das leis no tempo previsto no art. 12º, n.º 1 do CC que manda ressalvar os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular, pelo que na interpretação seguida, o n.º 2 do art. 9º, do DL n.º 87/92, de 14/05 é, materialmente, inconstitucional por violação dos art.ºs 20º e 268º da CRP. XIV. Termos em que, com o douto Suprimento desse Venerado Tribunal. deve ser declarada a inconstitucionalidade material dos n.ºs 1 e 2 do art. 9º do DL n.º
87/92, de 14 de Maio e art. 15º, alª b) do DL n.º 122/94, de 14 de Maio, na interpretação adoptada pelo Tribunal ‘a quo’, revogando-se o Acórdão recorrido para que seja substituído por outro que confirme a decisão do Tribunal de 1ª instância.' Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos A) Questões prévias O presente recurso pretende fundar-se nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, mas é, desde logo, evidente que não pode encontrar cobertura naquela última alínea, que prevê o recurso de decisões que recusem a aplicação 'de norma constante de acto legislativo'. Na verdade, no caso sub judice as normas a que se recusou aplicação foram, como reconhece o recorrente, as do Regulamento Disciplinar aprovado pela Portaria n.º 348/87, de
28 de Abril. E, de resto, tal recusa só seria relevante se fosse fundada em violação de lei com valor reforçado (cfr. actual n.º 3 do artigo 112º da Constituição), o que também não é o caso. Em contrapartida, a recusa de aplicação, na decisão recorrida, do regime previsto na Portaria n.º 348/87, sustentando-se embora em mais do que uma linha argumentativa, inclui implicitamente um juízo de inconstitucionalidade, tendo sido a recusa de aplicação do regime disciplinar previsto em tal portaria que teve como consequência a recusa de aplicação ao caso das normas atributivas de competência aos tribunais administrativos. Haverá, pois, que proceder à exacta delimitação das normas que constituem o objecto do recurso. Em relação ao recurso interposto com invocação da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, muito embora a questão de inconstitucionalidade só tivesse sido suscitada durante o processo, pelo recorrente, na resposta à questão prévia de que lhe foi dado conhecimento pelo Conselheiro-relator do Supremo Tribunal Administrativo, nos termos referidos supra (n.º2) – sem imputação da inconstitucionalidade a uma norma precisa – há-de entender-se que, ainda assim, se deve conhecer do recurso com tal fundamento. Na verdade, a mais de a decisão do Supremo Tribunal Administrativo configurar uma verdadeira 'decisão surpresa' – na medida em que, baseado embora num precedente (o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 30 de Abril de 1997), se afastava de toda a anterior jurisprudência, quer dos Tribunais Administrativos, quer dos Tribunais comuns (um inventário pode ver-se no ponto 4.1. do Parecer n.º 8/98 da Procuradoria-Geral da República, publicado no Diário da República
[DR], II Série, de 17 de Março de 1999), e, sobretudo, na medida em que recusou aplicar normas disciplinares de direito público a comportamentos ocorridos antes da transformação dos CTT de empresa pública em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, e, consequentemente, antes da criação da sociedade anónima Telecom Portugal, ou seja, ocorridos num momento em que só as normas de direito público lhes podiam ser aplicadas –, a verdade é que a suscitação da questão de constitucionalidade pelo ora recorrente não poderia ter sido feita de outro modo, no momento em que o foi. De facto, informado da intenção do Supremo Tribunal Administrativo de se considerar incompetente, mas sem indicação das normas que seriam invocadas para assim concluir, tanto mais que o seu caso apresentava profundas diferenças em relação ao precedente invocado, fez o recorrente aquilo a que estava obrigado no prosseguimento de uma estratégia processual adequada (cfr. Acórdão n.º 481/98, publicado no DR, II série, de 24 de Abril de 1998): suscitou a inconstitucionalidade da questão jurídico-processual, permitindo a actualização da base legal em conformidade com a posição que sobre este ponto viesse a ser adoptada pelo tribunal a quo. Isto mesmo se admitiu, embora em diferente contexto, no Acórdão n.º 255/98
(publicado no DR, II série, de 6 de Novembro de 1998):
'De facto, em casos como o dos autos, tem ainda razão o representante da entidade recorrente quando afirma que não é «razoável impor às partes o ónus de anteciparem, em termos rigorosos e definitivos, quais os precisos 'artigos de lei' cuja inconstitucional interpretação funda o recurso de fiscalização interposto – bastando que se especifique claramente a questão jurídico-processual cuja inconstitucionalidade se pretende efectivamente suscitar, podendo rectificar-se ou corrigir-se a respectiva ‘base legal’ em função do enquadramento que o tribunal a quo vá realizando ao longo das diferentes decisões que sucessivamente venha a proferir.»' Dever conhecer-se do recurso ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional implica que o objecto do recurso não ficará confinado nos termos do disposto na alínea a) do mesmo normativo, isto é, às normas a que a decisão recorrida recusou aplicação. Não implica, porém, que haja de conhecer-se de todas as questões suscitadas pelo recorrente na resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido.
É que, se, no momento da suscitação da inconstitucionalidade da questão jurídico-processual, o recorrente não dispunha ainda da identificação das normas invocadas na decisão recorrida para fundar a solução, no momento da interposição do recurso de constitucionalidade já podia identificá-las e, por maioria de razão, podia fazê-lo aquando da resposta ao convite do relator ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Em tal resposta, porém, o recorrente limitou-se a indicar a norma do n.º 2 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 87/92, de 14 de Maio, assim redigida:
'2. Os regimes jurídicos definidos na legislação aplicável ao pessoal da empresa pública Correios e Telecomunicações de Portugal vigentes nesta data continuarão a produzir efeitos relativamente aos trabalhadores referidos no número anterior.' Por sua vez, o número anterior para que esta disposição remetia tinha a seguinte redacção:
'1. Os trabalhadores e pensionistas da empresa pública Correios e Telecomunicações de Portugal mantêm perante os CTT, SA, todos os direitos e obrigações de que forem titulares na data da entrada em vigor do presente diploma, ficando esta sociedade obrigada a assegurar a manutenção do fundo de pensões do pessoal daquela empresa pública.' Já a invocação genérica de normas 'decorrentes dos Decs. Leis n.ºs 87/92, de 14 de Maio, 277/92, de 15 de Dezembro e Port.ª n.º 348/87, de 28 de Abril', se afigura insuficiente para incluir todos estes diplomas no objecto do presente recurso de constitucionalidade: as questões de constitucionalidade a decidir por este Tribunal hão-de respeitar a normas e não, indiferenciadamente, a diplomas
(vejam-se, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 442/91 e 21/92, publicados no DR, II série, de 2 de Abril de 1992 e de 11 de Junho de 1992), e têm de ser suscitadas de forma clara e perceptível (cfr., sobre isto, os Acórdãos n.ºs 269/94 e
367/94, publicados no DR, II série, de 18 de Junho e 7 de Setembro de 1994).
É certo que, em relação ao recurso da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, também se poderia desenvolver argumentação semelhante, na medida em que o recorrente não identificou as normas cuja aplicação foi recusada, sendo certo que ao caso não seria aplicável a totalidade do Regulamento Disciplinar aprovado pela Portaria n.º 348/87, de 28 de Abril. Porém, a solução adoptada pelo tribunal a quo, impugnada nesse recurso da alínea a), foi a de excluir tout court a aplicação de todo o referido Regulamento, não chegando sequer a discutir as normas aplicadas na decisão do Tribunal Administrativo de Círculo. Assim, não há paralelismo com a anterior situação: naquela primeira (a que se reporta recurso da alínea b)), aplicadas ao caso foram normas específicas dos Decretos-Leis n.ºs 87/92 e 277/92, e, por isso, haveria que as impugnar individualizadamente, senão antes, ao menos no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, já que este há-de ser posterior à estabilização do quadro normativo aplicado na decisão recorrida; e, no caso do recurso da alínea a) do n.º 1 do referido artigo 70º, não aplicado ao caso foi o Regulamento Disciplinar aprovado pela Portaria n.º 348/87, e, por isso, é bastante a identificação deste e não das normas que, a ser este aplicável, o seriam de facto. Ainda uma outra questão se apresenta como preliminar da ponderação das questões de constitucionalidade suscitadas: a da susceptibilidade de a decisão a proferir se vir a repercutir utilmente na decisão de fundo. Não interessa, no caso, apurar se a recusa de aplicação das normas poderia fundar-se ainda noutras razões que não a sua invocada inconstitucionalidade, ou se, por outra linha argumentativa, se poderia lograr a solução que um juízo de inconstitucionalidade de parte da interpretação normativa adoptada pode implicar excluir: no caso, a natureza instrumental dos recursos de constitucionalidade não é obstáculo à apreciação das questões suscitadas. Na verdade, circunscrito o objecto do recurso às questões de constitucionalidade decorrentes da recusa de aplicação do Regulamento Disciplinar aprovado pela Portaria n.º 348/87, por um lado, e da aplicação da norma do n.º 2 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 87/92 (integrada pela norma do seu n.º 1), por outro, pode concluir-se que, no fundo, estas duas questões de constitucionalidade se resumem a uma única, centrada na interpretação a dar à norma do n.º 2 do artigo 9º do referido Decreto-Lei n.º 87/92, porquanto a recusa de aplicação do Regulamento Disciplinar aprovado pela Portaria n.º 348/87 mais não é do que uma consequência de uma certa interpretação – que seria, segundo a decisão recorrida, a mais conforme à Constituição – daquela norma. Sobre esta mesma questão se pronunciou, aliás, também o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (Parecer n.º 8/98, publicado no DR, II Série, de
17 de Março de 1999) seguindo uma argumentação desligada de valorações constitucionais, e que só no seu termo referia o seguinte:
'Esta conclusão, acentua a corrente minoritária do Supremo Tribunal Administrativo, é também a mais conforme com as disposições pertinentes da Constituição.' Ora, como se sabe, o Tribunal Constitucional tem considerado a interpretação de uma norma – no caso, do n.º 2 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 87/92 – em conformidade com a Constituição, com a consequente exclusão de outras dimensões normativas (como se fez na decisão recorrida), é de equiparar, para efeitos de recurso de constitucionalidade, à recusa de aplicação de norma (ou seja, dessas outras dimensões normativas) com fundamento em inconstitucionalidade – assim, o Acórdão deste Tribunal n.º 425/89 (publicado no DR, II série, de 15 de Setembro de 1989). No presente caso, como se disse, a eventual possibilidade de se lograr o mesmo resultado com uma argumentação que dispensa as valorações constitucionais não afasta, apesar da natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, a necessidade de dele conhecer. Cumpre notar, desde logo, que poderia não fazer sentido conceder relevo à existência dessa fundamentação alternativa a propósito do recurso interposto ao abrigo da alínea b), se tal não viesse a impedir a apreciação da mesma questão a propósito do recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Acresce, porém, decisivamente, quando um tal lugar paralelo não se afigure suficiente, que sempre se pode desconsiderar a existência dessa eventual argumentação alternativa, porquanto ela não emerge da decisão recorrida, e, consequentemente, estando à margem dos autos, tanto poderia vir a ser professada neles, como não. O que está em causa no presente recurso – como dimensão normativa cuja aplicação foi recusada por via de uma interpretação conforme à Constituição – é, pois, a norma do artigo 9º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 87/92, de 14 de Maio, na interpretação, alegadamente desconforme com a Constituição, segundo a qual a Portaria n.º 348/87 continua a ser aplicável a trabalhadores de uma empresa pública (CTT, EP) aos quais era anteriormente aplicável, mesmo depois da sua transformação em sociedade anónima (CTT, SA, que por cisão deram origem à Telecom Portugal, SA) e para infracções anteriores a esta transformação, mantendo-se, em consequência, a competência dos tribunais administrativos para conhecer do recurso contencioso das decisões disciplinares do respectivo conselho de administração (no caso, da Telecom Portugal, SA). Ou, por outras palavras: trata-se de apreciar a constitucionalidade da norma do artigo 9º, n.º
2, do Decreto-Lei n.º 87/92, de 14 de Maio, na interpretação segundo a qual, para infracções anteriores à transformação de empresa pública em sociedade anónima, se mantém a competência dos tribunais administrativos para conhecer do recurso contencioso das decisões disciplinares do respectivo conselho de administração. E importa reapreciar a argumentação produzida pelo tribunal recorrido a propósito da (eventual) inconstitucionalidade das normas em causa, abstraindo, porém, da adequação da aplicação dessa argumentação ao caso dos autos: o Tribunal Constitucional nem é um tribunal de revista das decisões dos outros tribunais, por erradas que sejam, nem dispõe de competências para julgar recursos de amparo. Segundo a decisão recorrida a inconstitucionalidade resultaria de três fundamentos: violação da reserva de lei estabelecida na alínea d) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição (actual artigo 165º); violação da reserva de lei estabelecida na alínea q) do mesmo número e artigo da Constituição (actual alínea b) do artigo 165º); e falta de suporte legal para a Portaria n.º 348/87, a partir da revogação do Decreto-Lei n.º 49368, de 10 de Novembro de 1969; Vejamos cada um destes argumentos isoladamente. B) Apreciação das questões de constitucionalidade Antes de mais, afigura-se claro que a dimensão normativa em causa não contende com o regime geral de punição das infracções disciplinares, que constitui matéria de reserva legislativa parlamentar. Na verdade, quando muito, tal dimensão normativa alteraria o âmbito de aplicação de um regime específico (o da Portaria n.º 348/87). Tal afigura-se, aliás, duvidoso, pois, sendo esse regime o do Regulamento Disciplinar aprovado pela Portaria n.º 348/87, e entendendo-se que o n.º 2 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º
87/92 o inclui no 'regime jurídico definido na legislação aplicável ao pessoal da empresa pública Correios e Telecomunicações de Portugal vigentes', que continua a produzir efeitos em relação aos seus trabalhadores, não existe modificação de tal âmbito de aplicação. Modificação desse âmbito de aplicação por parte do legislador apenas teria havido, sim, se tal regime disciplinar não fosse incluído naquela previsão. De todo o modo, estando agora em causa a recusa de aplicação de uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, há-de entender-se que, segundo essa norma, esse regime disciplinar estava incluído naquela previsão. Mas há-de concluir-se que o legislador não alterou o regime específico de punição, nem a manutenção desse regime específico contendeu minimamente com a área de reserva então estabelecida na alínea d) do n.º 1 do artigo 168º (actual artigo 165º) da Constituição.
É certo que se poderia tentar contra-argumentar desta forma: deixando os trabalhadores vinculados aos CTT de trabalhar para uma empresa pública para o passarem a fazer para uma 'pessoa colectiva de direito privado, com estatuto de sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos' (artigo 1º do Decreto-Lei n.º 87/92, de 14 de Maio), manter-lhes a regulamentação disciplinar de direito público implicará uma alteração do regime geral. Só que este regime geral que seria alterado seria o regime comum, ou normal, e não o que é constitucionalmente reservado para a Assembleia da República. Neste, não existem regras determinando uma dualidade necessária de regimes gerais de punição das infracções disciplinares, consoante se trate de pessoas colectivas de direito público ou de pessoas colectivas de direito privado. Ora, sem uma tal distinção imposta, a mudança de natureza da pessoa colectiva desacompanhada de mudança de natureza de regime disciplinar em nada contenderá com o regime geral de punição das infracções disciplinares, por muito excepcional que seja face ao regime comum ou normal. Note-se, aliás, que o regime comum (ou 'geral' hoc sensu) é, mesmo, mais o do direito privado do que o do direito público, já que as próprias empresas públicas têm de adoptar, em princípio, o regime do contrato individual de trabalho (cfr. artigo 30º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de Abril). Também não se afigura que a inclusão do estatuto disciplinar na ressalva do n.º
2 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 87/92 possa constituir alteração de regras sobre a competência dos tribunais, cuja definição está reservada à Assembleia da República. Na verdade, por um lado, trata-se no presente caso de um processo já em curso, por comportamentos anteriores à transformação da empresa em sociedade anónima. Ora, para os processos em curso – e só em relação a esses se suscitam questões com implicações na sua competência –, dir-se-á mesmo que manutenção do direito aplicável é a melhor forma de manter o status quo, sem alterar a competência dos tribunais. Por outro lado, a competência dos tribunais é aferida, desde logo, pelo direito aplicável – e a continuidade deste é, portanto, favorável à sua estabilidade. De todo o modo, é igualmente claro que a manutenção das regras sobre a competência dos tribunais não depende da absoluta imutabilidade do círculo de pessoas ou de comportamentos submetidos à sua jurisdição. Tal como a alteração de natureza das pessoas colectivas (de públicas para privadas, ou vice-versa) não contende com a alteração da competência dos tribunais, ainda que as subtraia a uma ordem de tribunais para a submeter a outra, pois importa apenas modificação da qualificação da pessoa (ou do comportamento), relevante para efeito daquelas regras. A competência afere-se por um conjunto de pressupostos, cuja definição está reservada à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo. A interferência legislativa na qualificação das facti species (em particular, dos factos e das pessoas) relevantes para preenchimento desses pressupostos é, em princípio, livre – e, de toda a forma, não constitui, seguramente, alteração das regras sobre competência dos tribunais. Finalmente – e a mais de tal argumento ser inaplicável ao caso, por a revogação do Decreto-Lei n.º 49 368 ter sido operada apenas pelo Decreto-Lei n.º 122/94, de 14 de Maio de 1994, ao passo que a decisão de aplicação aqui sob recurso teve lugar em 4 de Março de 1993 –, o desaparecimento da norma legal habilitante da Portaria n.º 348/87 poderia dar origem, eventualmente, a ilegalidade superveniente, mas não a inconstitucionalidade formal, ou orgânica. E a inconstitucionalidade material, a poder existir, só poderia ser determinada norma a norma, pelo que a interpretação do n.º 2 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º
87/92 de forma a contemplar a continuidade da sua aplicação em nada padeceria de inconstitucionalidade. Conclui-se, pois, que tal norma não é, com os fundamentos invocados pelos tribunal a quo, inconstitucional, como não é inconstitucional, com o fundamento referido no parágrafo anterior, a continuidade de aplicação do Regulamento Disciplinar aprovado pela Portaria n.º 348/87 aos trabalhadores das sociedades anónimas resultantes dos CTT, EP. Atendendo a que o juízo de inconstitucionalidade que este Tribunal eventualmente proferisse poderia ter por fundamento a 'violação de normas ou princípios constitucionais (...) diversos daqueles cuja violação foi invocada' (artigo
79º-C da Lei do Tribunal Constitucional), há, ainda, que prolongar a aferição da norma do n.º 2 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 87/92 – e, consequentemente, da aplicação do Regulamento Disciplinar aprovado pela Portaria n.º 348/87. Há, designadamente, que confrontar essas normas, na perspectiva de uma eventual inconstitucionalidade material, com o n.º 2 do artigo 86.º da Constituição (na redacção da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, que foi o parâmetro em vigor no momento em que foi proferida a decisão recorrida), e, até, com a alínea c) do artigo 80.º introduzido por aquela IV Revisão Constitucional. Começando por esta última norma, ela salvaguarda a liberdade de iniciativa e de organização empresarial no âmbito de uma economia mista. Afigura-se, todavia, duvidoso que possa constituir fundamento de um julgamento de inconstitucionalidade material no caso dos autos, que se refere a uma alteração ex vi legis da natureza jurídica de uma pessoa colectiva de direito público, tanto mais que está apenas em causa a primeira etapa do processo que levará à privatização da empresa: a sua transformação em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos. E, decisivamente, considerando que está em questão apenas a manutenção da competência para conhecer do recurso contencioso relativamente a decisões disciplinares reportadas a comportamentos anteriores à transformação em pessoa colectiva de direito privado. A norma do n.º 2 do artigo 86º da Constituição, por sua vez, circunscreve a intervenção do Estado na gestão de empresas privadas aos casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão judicial, ainda para mais, sempre a título provisório, parecendo obstar, pois, a que, após a transformação de uma empresa pública em sociedade anónima, se mantenha um estatuto disciplinar paralelo ao dos funcionários e agentes da administração central, regional e local, designadamente, com possibilidade de interposição de recurso hierárquico para o ministro da tutela das decisões que tenham sido proferidas, em matéria disciplinar, pelo conselho de administração da empresa (artigo 56º do Regulamento Disciplinar aprovado pela Portaria n.º 348/87). Importa, porém, considerar que, mesmo numa sociedade anónima, desde que de capitais exclusivamente públicos, a gestão do Estado é permanente. Não é, portanto, de excluir que tais situações estivesse arredadas da previsão constitucional do n.º 2 do artigo 86º, que apenas disporia para empresas privadas, entendidas estas como detidas por entidades privadas. É, porém, desnecessário abrir aqui a discussão sobre o critério distintivo das empresas públicas e privadas (sobre isto ver Paulo Otero, Vinculação e liberdade de conformação do sector empresarial do Estado, Coimbra Editora, 1998), ou, por outro lado, aprofundar a questão de saber se à gestão do Estado enquanto accionista (e ainda accionista único) corresponderá necessariamente uma intervenção no exercício do seu poder de império, interferindo com a liberdade de iniciativa e de organização económica (concluindo que a aplicação do direito administrativo a entidades privadas só pode ter lugar quando, a título excepcional e precário, estas exerçam poderes de autoridade, v. Paulo Otero, ob. cit., págs. 264-272). Na verdade, importa considerar que, como já se referiu, no presente caso apenas está em questão a manutenção de um regime de direito administrativo – com a consequência sindicabilidade em recurso contencioso, pelos tribunais administrativos – para decisões disciplinares sobre comportamentos ainda anteriores à transformação em pessoa colectiva de direito privado, ou seja, reportadas a condutas que tiveram ainda lugar quando a pessoa colectiva em causa era uma pessoa colectiva de direito público. Ora, pelo menos nestas circunstâncias (em que está, pois, em causa, um problema de transição de regimes aplicáveis à pessoa colectiva e à aplicação do seu regime disciplinar), não se pode considerar que a manutenção da possibilidade de recurso contencioso – nem mesmo, eventualmente, do recurso hierárquico (que, porém, aqui não está directamente em causa) – importe uma interferência constitucionalmente inadmissível com a liberdade de iniciativa e de organização económica. E isto, mesmo, como se disse, sem necessidade de resolver a questão de saber se este parâmetro constitucional é aplicável a situações como a presente, em que o accionista único era ainda o Estado (do que podem, porém, sobrar sérias dúvidas). Assim sendo, não pode considerar-se inconstitucional, com esse fundamento, a continuidade de aplicação do regime disciplinar da Portaria n.º 348/87, com a consequente manutenção da competência dos tribunais administrativos. Apura-se, pois, a inexistência de inconstitucionalidade na dimensão normativa do n.º 2 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 87/92 que implicasse a continuidade do regime disciplinar anteriormente aplicável na Telecom Portugal. Ora, não se torna necessário apurar se pode ser inconstitucional aqueloutra interpretação desta norma, segundo a qual seria inconstitucional a não continuidade do anterior regime disciplinar, importando recordar que, na decisão recorrida, só a primeira interpretação foi afirmada, para ser julgada inconstitucional. O certo é que a interpretação seguida pelo tribunal a quo, e cuja aplicação foi recusada não padece, pois, da invocada inconstitucionalidade material. E porque assim é, fica prejudicada a apreciação da argumentação (no sentido da inconstitucionalidade da não continuidade do anterior regime disciplinar) produzida pelo ora recorrente, que, aliás, só em parte visava pôr em causa um tal entendimento genérico, sublinhando antes a inadequação de tal entendimento ao seu caso – mas quanto a este último ponto, já de nenhum aval poderia serviria o recurso de constitucionalidade normativa interposto para este Tribunal. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a. Não julgar inconstitucional a norma do artigo 9º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 87/92, de 14 de Maio, na interpretação segundo a qual, para infracções anteriores à transformação de empresa pública em sociedade anónima, se mantém a competência dos tribunais administrativos para conhecer do recurso contencioso das decisões disciplinares do respectivo conselho de administração; b) Em consequência, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita. Lisboa, 22 de Maio de 2002 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa