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Proc. nº 111/2000
(tem incorporado o Proc. nº 523/2000)
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional
I O pedido e os seus fundamentos
1. O Provedor de Justiça requer ao abrigo do artigo 281º, nº 2, alínea d), da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 9º, nº 1, e 16º, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/98, de 6 de Julho, que aprova a Lei Orgânica do Centro de Gestão da Rede Informática do Governo.
Por despacho do Presidente do Tribunal Constitucional, de 20 de Setembro de 2000, foi incorporado, no presente processo, o Processo nº 523/2000, em que é requerente o Procurador-Geral da República, ao abrigo do disposto no artigo 64º da Lei do Tribunal Constitucional.
O Provedor de Justiça pede, ainda, caso seja declarada a inconstitucionalidade das normas referidas anteriormente, que seja declarada, consequencialmente, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas do artigo 9º, nºs 2, 3 e 4, do Decreto-Lei nº 184/98, de 6 de Julho.
2. A razão de ser do pedido formulado pelo Provedor de Justiça é o facto de que as normas em questão constituem a 'abertura de uma via de ingresso na função pública sem precedência de qualquer concurso, apenas resultando da verificação dos requisitos do artigo 6º, nº 7, e da vontade do director do CEGER e do Primeiro-Ministro' (artigo 9º do requerimento inicial).
Por outro lado, tal abertura de uma nova via de ingresso na função pública não ocorreria apenas para o futuro, pois o artigo 16º, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/98, prevê a aplicação imediata do regime do artigo 9º, nº 1, do mesmo diploma 'a situações já existentes no seio do CEGER', bem como 'a contagem do tempo decorrido em comissão de serviço até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 184/98', para os efeitos previstos no citado artigo 9º.
Em face desta situação criada pelas normas agora questionadas, o Provedor de Justiça fundamenta o pedido de declaração de inconstitucionalidade dessas normas e, consequencialmente, das outras normas contidas no artigo 9º, nºs 2, 3 e 4, do mesmo diploma, na violação dos artigos 13º, 18º, nº 2, segunda parte, e do artigo 47º, n º 2, da Constituição e, por outro lado, subsidiariamente, invoca a ilegalidade das mesmas normas por violação do artigo
26º, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/98, de 2 de Junho.
3. A argumentação do requerente consiste, em resumo, no seguinte: a) As excepções à regra do concurso para o acesso à função pública, estabelecida pelo artigo 47°, nº 2, da CR têm que ser materialmente fundadas e subsumir-se às 'condições de igualdade e liberdade' mencionadas na mesma norma constitucional, sendo que a previsão da via não concursal acarreta uma restrição ao direito fundamental de terceiros em acederem à função pública pela via do concurso, restrição essa que deverá observar o disposto no artigo 18°, nºs 2 e
3, da CR [artigos 10° a 13° do requerimento inicial]. b) No caso vertente não se vislumbram razões de ordem pública que permitam ultrapassar a regra do concurso, sendo de notar que mesmo o Decreto-Lei nº
195/97, de 31 de Julho, que define o processo e os prazos para a regularização das situações do pessoal da administração central, regional e local, diploma este publicado necessariamente no uso de autorização legislativa, 'não dispensou os trabalhadores cuja situação se visava regularizar da oposição a concurso, embora com universo limitado ao seu conjunto' [artigos 14° e 15° do requerimento inicial]. c) Seja como for, sempre as normas impugnadas põem em crise o artigo 26°, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, que, no uso de autorização legislativa, estabelece a obrigatoriedade de concurso para o ingresso na função pública, sem admitir excepções, diploma este que assume a natureza de lei de bases, independentemente da sua forma, e ao qual, por essa razão, se encontra vinculado o Decreto-Lei nº 184/98. [artigos 17° a 20° do requerimento inicial]. d) As razões que levam a considerar inconstitucional a norma do artigo 9°, nº
1, do Decreto-Lei nº 184/98, valem também para a norma do artigo 16°, nº 1, do mesmo diploma, pois 'o que não se pode admitir para o futuro também não se pode admitir para o passado, sendo certo que nem em situação de regularização de situações se pode falar e que, mesmo no caso contrário, nenhuma habilitação em sede de autorização legislativa possuía o Governo para proceder a tal acto, em desrespeito da reserva relativa de competência da Assembleia da República', equivalendo o citado artigo 16°, nº 1, a 'conferir efeitos póstumos à confiança depositada nos elementos a prestar funções do CEGER para ingressarem sem concurso à função pública' [artigos 23° a 25° do requerimento inicial]. e) No caso vertente, não se deverá fazer uso do poder previsto no artigo 282°, nº 4, da CR, 'sob pena de se criar um sentimento de impunidade face a uma evidente violação da Constituição, gerando-se um privilégio inaceitável', ao que acresce tratar-se o citado artigo 16°, nº 1, de 'uma norma inconstitucional cuja aplicação, em regra, não suscita em nenhuma esfera jurídica lesão que permita ao seu titular manifestar interesse pessoal, directo e legítimo para recurso à via judicial, assim não sendo previsível a efectivação da fiscalização concreta da constitucionalidade' [artigos 26° a 28° do requerimento inicial].
4. Por seu lado, o Procurador-Geral da República também veio questionar a conformidade constitucional dos artigos 9º, nº 1, e 6º, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/98, de 6 de Julho, na medida em que de tais normas resulta:
'a clara derrogação do princípio da obrigatoriedade de concurso como via de ingresso na função pública, proclamado pelo artigo 47°, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, e que se integra no núcleo essencial da disciplina da relação jurídica de emprego público, constante do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho' [artigo 5° do requerimento inicial]. E tal derrogação, porque abrange matéria situada no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia da República, implica também uma violação do disposto no artigo 165°, nº 1, alínea t), da CR, afirma-se, também, no requerimento inicial.
Para tal conclusão, aduz o requerente as seguintes razões: a) Segundo o Acórdão nº 683/99 do Tribunal Constitucional, 'retira-se da regra do artigo 47°, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, como concretização do direito de igualdade no acesso à função pública, um direito a um procedimento justo de recrutamento e selecção de candidatos à função pública, que se traduz em regra, no concurso', pelo que 'o estabelecimento de excepções à regra do concurso não pode estar na simples discricionariedade do legislador, que é justamente limitada com a imposição de tal princípio. Caso contrário, este princípio do concurso - fundamentado, como se viu, no próprio direito de igualdade no acesso à função pública ( e no direito a um procedimento justo de selecção) - poderia ser inteiramente frustrado. Antes tais excepções terão de justificar-se com base em princípios materiais, para não defraudar o requisito constitucional' [artigos 6° e 7° do requerimento inicial]. b) No caso vertente, e à semelhança do que o Tribunal Constitucional afirmou no citado Acórdão nº 683/99, ao criar inovatoriamente - relativamente aos diplomas que regem, em termos estruturantes, sobre a relação jurídica de emprego na Administração Pública - uma via 'sucedânea' de acesso, a título tendencialmente perpétuo e definitivo, ao emprego na Administração Pública - permitindo que trabalhadores 'seleccionados com base num processo sumário' adquiram uma posição definitiva, à revelia do concurso - 'não se vê como não possa ser prejudicado o direito de igualdade' no acesso de que são titulares outras pessoas, potenciais candidatos a um lugar definitivo nos quadros do CEGER - e eventualmente dotados de idênticas (ou superiores) aptidões técnicas para o exercício dos conteúdos funcionais correspondentes - não podendo valer como argumento, único e decisivo, o de que 'já trabalharam' para o Estado, exercendo um cargo em regime de comissão de serviço, nem tão pouco o argumento segundo o qual a dispensa do concurso, resultante das disposições legais questionadas, se configura como essencial para o recrutamento e fixação de pessoal tecnicamente qualificado, pois, vigorando necessariamente a preferência legal por critérios atinentes ao mérito e capacidade dos candidatos ao concurso, sempre teriam os agentes que já exerceram, a título precário, funções no CEGER a possibilidade de afirmarem e verem reconhecida a acrescida capacidade técnica emergente da experiência profissional acumulada [artigos 8° e 9° do requerimento inicial].
5. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos
54º e 55º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro reafirmou a plena conformidade constitucional das normas objecto dos requerimentos apresentados pelo Provedor de Justiça e pelo Procurador-Geral da República. a) Quanto à tese da violação do artigo 47°, nº 2, da CR, afirmou o seguinte: Ao determinar que o recrutamento para a função pública seja efectuado em regra por via de concurso, 'a Constituição limita-se a estabelecer uma regra geral, permitindo ao legislador ordinário a consagração de excepções, desde que estas não ponham em causa o direito de acesso à função pública em condições de igualdade e liberdade'; Dever-se-á, assim, 'verificar em que circunstâncias se pode fundamentar constitucionalmente a adopção pelo legislador ordinário de outras formas de recrutamento e quais as razões materiais que estiveram na base dessa adopção', as quais 'hão-de encontrar-se, no caso concreto, na situação de facto subjacente
à elaboração do diploma e nos fins que estes pretendem atingir, também eles dignos de tutela'; Como salienta o preâmbulo do Decreto-Lei nº 184/98, 'o CEGER tem uma missão de primordial importância, que é a de criar e gerir uma rede informática que interliga os gabinetes dos membros do Governo'; Para tal, 'é necessário que o CEGER esteja dotado de pessoal com um alto nível de aptidão técnica e científica, devidamente qualificado e experiente nas áreas da sociedade da informação, implicando um elevado grau de especialização', sendo
'sobejamente conhecida a enorme dificuldade sentida na função pública para recrutar e fixar nos seus serviços o pessoal mais qualificado tecnicamente e cientificamente, sobretudo na área dos sistemas de informação, devido à grande concorrência do sector privado'; De facto, 'é a natureza específica dos serviços desenvolvidos pelo CEGER, quer ao nível da complexidade técnica e permanente necessidade de actualização, quer, inclusivamente, do sigilo profissional e enorme responsabilidade exigidos aos funcionários, que justifica a adopção de regras especiais sobre recrutamento de pessoal'; O dever de sigilo a que está obrigado o pessoal do CEGER 'justificou, aliás, que, na elaboração do Decreto-Lei nº 184/98, não se procedesse à negociação colectiva com todos os trabalhadores da Administração Pública, ao abrigo do regime especial consagrado no artigo 11º do Decreto-Lei nº 45-A/84, de 3 de Fevereiro, que regulava, à data da elaboração do diploma que alterou a orgânica do CEGER, os direitos de participação e de negociação colectiva'; A natureza dos serviços prestados justificou já 'a adopção de regimes de recrutamento semelhantes àquele cuja inconstitucionalidade se discute - são os casos dos regimes constantes do artigo 30°, nº 1, do Decreto-Lei nº 225/85, de 4 de Julho, que aprovou a orgânica dos Serviços de Informações de Segurança (SIS) e do artigo 28°, nº 1, do Decreto-Lei nº 245/95, de 30 de Setembro, que aprovou a orgânica do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa e Militares
(SIEDM)'. b) No que respeita à alegada violação do direito fundamental de terceiros em acederem à função pública em condições de igualdade, disse, por seu lado, o seguinte: No caso concreto, 'o que se verifica é que as pessoas que poderiam aceder a um concurso público para recrutamento de pessoal para o CEGER seriam sensivelmente os mesmos que a norma do artigo 9°, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/98 pretende abranger, uma vez que estes funcionários têm de ser recrutados de entre pessoas com ‘elevada competência profissional e a experiência válida para o exercício da função’ (cfr. o artigo 6°, nº 7, do Decreto-Lei nº 184/98)'; Uma vez que existem 'razões materiais que fundamentam a adopção de um regime excepcional de recrutamento, admissível nos termos do artigo 47°, nº 2, da CR', deve concluir-se que 'sendo as condições de igualdade e liberdade referidas no artigo 47°, nº 2, uma concretização do princípio da igualdade consagrado no artigo 13° da CR, não existindo violação do primeiro preceito, não pode considerar-se tão pouco violado o segundo'. c) No que concerne à alegada violação do artigo 18°, nº 2, da CR, referiu que a mesma não procede, 'visto que a excepção permitida pelo nº 2 do artigo 47° não constitui uma restrição ao direito de acesso à função pública', 'na medida em que a Constituição não considera violados, com a adopção do regime excepcional, as condições de igualdade e liberdade necessárias ao exercício do direito, desde que existam razões materiais que justifiquem aquela solução legal' e, além disso, ainda que se estivesse perante uma restrição, 'sempre haveria razões de interesse público, também ele constitucionalmente protegido, que justificam a adopção do regime excepcional'. d) Relativamente ao regime orgânico dos direitos fundamentais e das bases do regime da função pública, afirmou o seguinte: As normas impugnadas, por não consubstanciarem uma restrição a um direito fundamental, mas apenas a adopção de um regime excepcional admitido constitucionalmente, não violam o artigo 165°, nº 1, alínea b), da CR; A referência ao Decreto-Lei nº 195/97, de 31 de Julho, constante do ponto quinze do pedido do Provedor de Justiça, não pode servir de argumento no caso vertente,
'uma vez que se trata de um diploma de carácter geral, aplicável a todos os serviços da Administração Pública, visando regular a situação dos denominados
‘recibos verdes’', e que, por essa razão, não apresenta 'nenhuma afinidade com o diploma em apreço, relativamente ao qual existem razões pontuais e concretas que justificam materialmente a adopção do regime excepcional de recrutamento'; Acresce ainda que 'o Decreto-Lei nº 195/97 foi aprovado ao abrigo de uma autorização legislativa, concedida pela Lei nº 76/97, de 24 de Julho, não por se tratar de matéria relativa a direitos, liberdades e garantias, mas sim por regular, de forma genérica, um conjunto de matérias relativas à função pública, sendo que, inclusivamente, o Decreto-Lei nº 256/98, de 14 de Agosto, que alterou o Decreto-Lei nº 195/97, foi aprovado ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo
198° da Constituição, ou seja, no âmbito da competência legislativa concorrencial do Governo'; Deste modo, uma vez que 'o Decreto-Lei nº 184/98 não consagra uma restrição a um direito fundamental, nem adopta um regime geral aplicável a todos os serviços da Administração Pública, não padece de qualquer vício de natureza orgânica'. Não procede a violação do artigo 165°, nº 1, alínea t), da CR, pois o Decreto-Lei nº 184/98 não visa aprovar as bases do regime da função pública, nem tão pouco desenvolver as bases contidas no Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, mas apenas aprovar a orgânica de um serviço da Administração Pública, pretendendo resolver, em nome do interesse público, um problema de recrutamento específico desse serviço, decorrente da natureza das funções desempenhadas, e de acordo com uma excepção permitida constitucionalmente. e) No que diz respeito à questão da violação do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, pela norma do artigo 9°, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/98 e, consequencialmente, pelas normas dos nºs 2, 3 e 4, do mesmo preceito, disse o seguinte: A solução adoptada no artigo 26° do Decreto-Lei nº 184/89, relativo às regras de ingresso na função pública, 'não resulta da lei de autorização legislativa [cfr. as alíneas a), b) e c) da Lei nº 114/88, de 30 de Dezembro], razão pela qual a adopção de outro regime não viola a função de indirizzo do Parlamento, tratando-se, pelo contrário, de um âmbito do diploma não abrangido pela autorização legislativa, pelo que sempre se poderia questionar, como o faz alguma doutrina, a prevalência dos preceitos da lei de bases aprovados no âmbito da competência legislativa concorrencial do Governo sobre qualquer decreto-lei simples (cfr. Paulo Otero, O Desenvolvimento de leis de bases pelo Governo, págs. 50 e seguintes)'; Em segundo lugar, o Decreto-Lei nº 184/98 não pretende 'desenvolver as bases contidas em nenhum outro diploma, limitando-se, pelo contrário, a aprovar a orgânica de um serviço da Administração Pública, pretendendo resolver, em nome do interesse público, um problema de recrutamento de pessoal específico desse serviço, em função da natureza das funções desempenhadas, e de acordo com uma excepção permitida constitucionalmente', pelo que 'não pode, por isso, considerar-se o Decreto-Lei nº 184/98 como um diploma de desenvolvimento do Decreto-Lei nº 184/89, sob pena de, assim sendo, todos os diplomas que aprovem orgânicas de serviços da Administração Pública assumirem essa natureza'; Acrescenta, ainda, que 'o Decreto-Lei nº 184/98 invoca, correctamente, como norma habilitante a alínea a) do nº 1 do artigo 198° da Constituição e não a respectiva alínea c), nem aquele diploma menciona qualquer lei de bases', sendo certo que 'as leis de bases não possuem uma força vinculante geral, mas apenas sobre os respectivos diplomas de desenvolvimento, visto que a proeminência das leis reforçadas reconduz-se a fenómenos de relação apenas entre certas e determinadas leis (cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo V, pág. 345)'. f) Em relação à tese da inconstitucionalidade do artigo 16°, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/98, afirmou o seguinte: Antes de mais, 'não sendo, de acordo com o que se disse anteriormente, a norma contida no artigo 9°, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/98 inconstitucional, tão pouco o poderá ser a norma do artigo 16°, nº 1, do mesmo diploma'; Acresce ainda que 'permitir que os funcionários que prestam serviço no CEGER à data da entrada em vigor do diploma - e desde que possuam as qualificações exigidas no artigo 6°, nº 7, como resulta implicitamente de uma interpretação sistemática do diploma - beneficiem do regime excepcional previsto no artigo 9°, nº 1, é uma exigência do princípio da igualdade'; Não procederá o argumento da inconstitucionalidade do artigo 16°, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/98 por falta de autorização legislativa para 'regularização de situações passadas', por não estar em causa tal regularização e, mesmo que estivesse, 'dificilmente se poderia entender que a adopção de tal regime no
âmbito da aprovação da orgânica de um determinado serviço da Administração Pública se integre nas ‘bases do regime e âmbito da função pública’ (cfr. o artigo 165°, nº 1, alínea t) da Constituição)'; De igual modo, não colherá 'a argumentação segundo a qual o artigo 16°, nº 1, do Decreto- Lei nº 184/98, confere efeitos póstumos à confiança depositada nos elementos a prestar funções no CEGER, uma vez que aquele preceito deve interpretar-se em conjugação com o artigo 6°, nº 7, e com o artigo 9°, nº 1, do mesmo diploma, estando, por isso, o ingresso na função pública sujeito aos requisitos previstos nestes preceitos (nomeadamente homologação do membro do Governo responsável pelo CEGER)'. g) Por último, em relação à tese da não utilização pelo Tribunal do poder previsto no artigo 282°, nº 4, da CR, foi referido o seguinte: Não haveria lugar 'à utilização daquele poder por nenhuma das normas em apreço ser inconstitucional'; ainda que fosse outro o entendimento do Tribunal, 'sempre se verificariam - e plenamente - motivos que justificariam o recurso à prerrogativa conferida pelo artigo 282°, nº 4, da CR, pois nem a gravidade da inconstitucionalidade das normas que o Provedor imputa às normas em causa é manifesta, nem tão pouco essa gravidade ou o sentimento de impunidade que, supostamente, a sua manutenção geraria são factores relevantes para efeitos da aplicação do artigo 282°, nº 4'; O mecanismo do artigo 282°, nº 4, da CR 'pressupõe, pela sua própria natureza, a existência de uma inconstitucionalidade, sendo que a limitação dos seus efeitos apenas resulta da ponderação de outros valores constitucionalmente protegidos, como a segurança jurídica, a equidade ou o interesse público, não entrando nessa ponderação a gravidade da inconstitucionalidade ou da ilegalidade'; Parece contraditória a afirmação proferida no ponto 28° do pedido, 'uma vez que, de acordo com a posição expendida no pedido, sempre teriam um interesse directo, pessoal e legítimo para recurso à via judicial os terceiros que, no entendimento do Provedor de Justiça, são prejudicados no acesso à função pública pela norma contida no artigo 9°, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/98'.
6. Apresentado memorando pelo Presidente do Tribunal Constitucional, foi fixada orientação, em Plenário, no sentido da violação da reserva de lei parlamentar pelas normas questionadas.
II
7. As normas cuja constitucionalidade foi suscitada têm o seguinte teor: Artigo 9° Aquisição de vínculo ao Estado
1 - Quando completar cinco anos de serviço sem interrupção, o elemento provido em regime de comissão de serviço que não detenha vínculo definitivo ao Estado adquire definitivamente esse vínculo, se o director do CEGER atestar que aquele revela aptidão e idoneidade para o exercício de funções públicas, carecendo tal decisão de homologação pelo membro do Governo responsável pelo CEGER.
2 - Se o pessoal que tiver adquirido o direito ao vínculo definitivo ao Estado, nos termos do número anterior, vier a ser afastado das suas funções, será integrado no quadro de pessoal da Secretaria-geral da Presidência do Conselho de Ministros, em categoria equivalente à que já possuía no CEGER e no escalão correspondente à categoria do regime geral, de acordo com a tabela de equivalências constante do mapa III anexo ao presente diploma, do qual faz parte integrante.
3 - Serão criados no quadro de pessoal da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros os lugares necessários para a execução do estabelecido no número anterior, os quais serão extintos à medida que vagarem.
4 - A criação dos lugares referida no número anterior será feita por portaria conjunta dos Ministros das Finanças, do membro do Governo responsável pelo CEGER e do membro do Governo responsável pela Administração Pública, produzindo efeitos a partir das datas em que os agentes para quem são destinados os lugares cessem funções no CEGER.
Artigo 16° Disposições transitórias
1 - Todo o pessoal integrante do quadro do CEGER à data da publicação deste diploma, que já esteja ao serviço efectivo em regime de comissão de serviço por período igual ou superior ao referido no artigo 9º, que o pretenda, será considerado enquadrado pelo mesmo.
(...)
8. O problema substancial suscitado pelos requerentes é o de saber se o afastamento da regra do concurso para acesso à função pública, a que se refere o artigo 47º, nº 2, da Constituição, pode ser justificado em casos como o presente.
Independentemente, porém, dessa questão de inconstitucionalidade material, relativamente à qual existe, embora somente para casos específicos, uma anterior jurisprudência (cf. Acórdão nº 683/99, D.R., II Série, de 3 de Fevereiro de 2000, Acórdão nº 556/99, D.R., II Série, de 15 de Março de 2000, bem como Acórdão nº 53/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pp.
303 e ss.) coloca-se, imediata e previamente, a questão da violação do artigo
165º, nº 1, alínea t), da Constituição, na medida em que o Decreto-Lei nº 184/98 se possa integrar na categoria de diplomas que aprovam as bases gerais da função pública.
Com efeito, questão precedente de uma eventual justificação constitucional de qualquer excepção à regra geral de acesso à função pública é, no plano de um juízo de constitucionalidade, a de saber qual é o órgão competente para legislar sobre tais excepções. A inconstitucionalidade orgânica que daí decorrerá sempre justificará uma declaração de inconstitucionalidade, independentemente da constitucionalidade ou inconstitucionalidade material de tais excepções.
Decorre da jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente o Acórdão nº 233/97 (in AcTC, 36º vol., pp. 503 e ss.) e dos Acórdãos aí citados, que a criação de excepções ou o estabelecimento de princípios contrários em matéria de bases do regime e âmbito da função pública não podem ser considerados como constituindo o desenvolvimento de tais bases. Isso significa necessariamente que a criação de tais excepções ou princípios contrários aos contidos nas bases da função pública consubstancia uma invasão da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, prevista no artigo 165°, nº 1, alínea t), da Constituição. Com efeito, ainda que se admita que a reserva estabelecida nesta última norma não abrange a particularização e a concretização do regime da função pública [neste sentido, cfr. o Acórdão n°
340/92, in AcTC, 23° vol., pp. 59 e ss., o qual não se pronunciou pela inconstitucionalidade das normas do decreto aprovado em Conselho de Ministros relativo à extinção da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros e à transformação do Centro de Estudos Técnicos e Apoio Legislativo
(CETAL) em Centro Jurídico (CEJUR)], ela não pode deixar de incluir a criação de excepções ou o estabelecimento de princípios contrários àqueles que podem considerar-se os princípios básicos definidores das bases de tal regime, sob pena de se abrir a porta a um esvaziamento da reserva pela via da multiplicação de regimes excepcionais. No citado Acórdão n° 340/92, foi apreciada uma situação que o Tribunal não qualificou como excepção ao regime contido nas bases gerais, apesar do carácter controvertido de tal qualificação, revelado nos respectivos votos de vencido: mas é justamente esse carácter controvertido que não se verifica no caso dos autos, conforme resulta da própria resposta do Primeiro-Ministro, o que torna, desde logo, inquestionável a inclusão desta matéria no âmbito da reserva de lei. Assim sendo, os artigos 9°, nº 1, e 16°, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/98, de 6 de Julho, porque incidem sobre um aspecto fundamental do estatuto dos funcionários do CEGER providos em regime de comissão de serviço (a aquisição de vínculo ao Estado), aspecto que por essa singela, mas decisiva, razão se há-de incluir nas bases do regime e âmbito da função pública, e porque foram editados pelo Governo sem a necessária autorização legislativa, violam o artigo 165°, nº 1, alínea t), da Constituição. O artigo 9º, nºs 2, 3 e 4, constituído por normas meramente instrumentais e de desenvolvimento do regime previsto no artigo 9º, nº 1, está, consequencialmente, afectado pela inconstitucionalidade dos artigos 9º, nº 1, e 16º, nº 1, do referido decreto-lei .
9. Tendo-se atingido esta conclusão, torna-se desnecessária a apreciação dos outros vícios de constitucionalidade suscitados pelos requerentes, porque de qualquer modo, as referidas normas, por serem inconstitucionais, não poderão subsistir no ordenamento jurídico.
Quanto ao vício de ilegalidade invocado, também é desnecessária a sua apreciação, porque a existir vício de ilegalidade, cuja apreciação caiba na competência do Tribunal Constitucional, sempre estaria consumido pela inconstitucionalidade orgânica das referidas normas (no sentido dessa absorção da ilegalidade duma norma pela sua inconstitucionalidade cf., nomeadamente, Acórdãos nºs 170/90, 624/97 e 198/2000, respectivamente em D.R., I Série, de 27 de Junho de 1990, D.R., II Série, de 28 de Novembro de 1997 e 30 de Novembro de
2000).
10. Finalmente, o Tribunal Constitucional decide, conforme é sua competência exclusiva (não sendo, aliás, determinante para a apreciação de tal questão qualquer pedido do requerente quanto a esta matéria), limitar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade decorrentes das normas constantes dos artigos 9º, nº 1, e 16º, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/98, no que se refere ao pessoal integrante do quadro do CEGER, que, em face da disposição combinada dos artigos 9º e 16º tenha realizado já os pressupostos de aquisição do vínculo definitivo ao Estado, na data de publicação do presente Acórdão. Em tais situações, razões de segurança jurídica, fundamentadas na protecção de expectativas já consolidadas, justificam a realização da ponderação pelo Tribunal Constitucional prevista pelo artigo 282º, nº 4, da Constituição.
III
11. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide: a. Declarar inconstitucionais, com força obrigatória geral, as normas dos artigos 9º, nº 1, e 16º, nº 1, do Decreto-Lei nº 184/98, de 6 de Julho, por violação do artigo 165º, nº 1, alínea t), da Constituição e, em consequência, as normas constantes dos nºs 2, 3 e 4 do referido artigo 9º; b. Limitar parcialmente os efeitos da inconstitucionalidade, por razões de segurança jurídica, nos termos do artigo 282º, nº 4, da Constituição, relativamente aos membros do quadro do CEGER que tenham já preenchido, na data de publicação do presente Acórdão, as condições previstas naquelas normas que lhes permitiriam adquirir o vínculo definitivo ao Estado. Lisboa, 21 de Maio de 2002 Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Guilherme da Fonseca José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto (vencido, em relação da alínea b), nos termos da declaração de voto que junto) Bravo Serra (com a declaração de que limitaria os efeitos da inconstitucionalidade ora declarada. Tão só relativamente ao pessoal integrante a que se reporta o nº 1 do artº 16º do Decreto-Lei nº 184/98 que tivesse já adquirido vínculo) José Manuel Cardoso da Costa (propendendo a acompanhar o conteúdo da declaração de voto do Exmº Conselheiro Mota Pinto).
Declaração de voto Votei vencido em relação à alínea b) da decisão por entender que não existiam razões de segurança jurídica, equidade ou 'interesse público de excepcional relevo' para limitar os efeitos da inconstitucionalidade. A este respeito diz-se no acórdão apenas que, quanto ao 'pessoal integrante do quadro do CEGER' que, em face das normas declaradas inconstitucionais, tivesse já preenchido os pressupostos de aquisição de vínculo definitivo ao Estado, 'razões de segurança jurídica, fundamentadas na protecção de expectativas já consolidadas' justificariam tal limitação. Sem contestar a eventual existência de facto de tais expectativas, julgo ser fundamental apurar se elas eram, por um lado, legítimas, e, por outro lado, suficientemente consistentes para impor a limitação dos efeitos da desconformidade constitucional. Sendo as normas em causa de 1998, é evidente que ninguém que tenha passado a trabalhar no CEGER depois da sua publicação podia já ter completado os cinco anos de serviço exigidos pelo artigo 9º, n.º 1, não lhe sendo, pois, aplicável a limitação dos efeitos. Só podem, assim, estar em causa situações cobertas pelo artigo 16º, n.º 1, que considerou enquadrado pelo artigo 9º 'todo o pessoal integrante do quadro do CEGER à data da publicação deste diploma, que já esteja ao serviço efectivo em regime de comissão de serviço por período igual ou superior ao referido'. Preceitua este artigo 16º, n.º 1, pois, que o tempo de serviço anterior a 1998, desde que igual ou superior a cinco anos, relevaria para efeito do preenchimento dos pressupostos para aquisição de vínculo definitivo. Ora, a meu ver, tendo o merecimento de protecção da confiança que ser aferido por referência ao momento de realização do respectivo 'investimento' pelo
'confiante' – isto é, ao momento do início do trabalho no CEGER ou, quando muito, a cada momento de realização da prestação laboral –, é evidente que a expectativa numa futura aprovação de uma norma como o artigo 16º, n.º 1, que concede retroactivamente relevância a tempo de serviço anterior, não pode ser digna de tutela, quer esse tempo de serviço anterior a 1998 fosse já superior a cinco anos, quer não o fosse – e isto, mesmo deixando entre parêntesis as mais espinhosas questões de saber, seja em que medida a pura e simples protecção de expectativas, desacompanhada de qualquer outro elemento qualificativo, está compreendida nos fundamentos constitucionalmente especificados para a limitação de efeitos (artigo 282º, n.º 4), seja em que condições pode a confiança numa norma declarada inconstitucional ser digna de tutela, por forma a justificar a limitação dos efeitos da inconstitucionalidade. Paulo Mota Pinto