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Processo nº 753/00
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial de Setúbal, proferiu o Relator a seguinte Decisão Sumária:
'1. Por apenso aos autos de execução ordinária, que correm termos no 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Setúbal, e em que são executados J... e mulher, M..., vieram o Ministério Público, em representação do Estado (Fazenda Nacional) e o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo reclamar, respectivamente, os créditos de 781 815$00 e juros moratórios desde 3 de Novembro de 1999, em consequência de dívida referente ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e a quantia de 22 626 948$00 e juros moratórios vencidos, relativamente a contribuição para a Segurança Social correspondente ao período compreendido entre Dezembro de 1990 e Junho de 1999. A primeira daquelas entidades reclamou os seus créditos invocando, nos termos do artigo 104º do CIRS, privilégio imobiliário geral sobre imóvel dado em hipoteca para garantia das obrigações emergentes de mútuo que a Caixa Geral de Depósitos, SA concedeu aos ora executados. O Centro Regional de Segurança Social fê-lo ao abrigo do disposto nos artigos 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho e 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, preceitos que também lhe conferem privilégio imobiliário geral sobre o mesmo bem.
2. Na decisão proferida pelo Mmº Juiz do Tribunal Judicial de Setúbal, em 20 de Outubro de 2000, considerou-se que tais normas, acabadas de identificar, na interpretação segundo a qual as garantias por elas conferidas preferem à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil, eram inconstitucionais por violação do princípio da confiança ínsito na ideia de Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição (e passou-se depois a graduar os créditos, começando pelo crédito exequendo da Caixa). A decisão invoca mesmo acórdão deste Tribunal Constitucional onde as normas do artigo 2º do Decreto-Lei nº 512/76 e do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80 já foram apreciadas e efectivamente julgadas inconstitucionais ( Ac. nº 160/00, publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Outubro de 2000). Recusando, por isso, a sua aplicação, desta decisão recorreram o Ministério Público e o citado Centro Regional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
3. Dado tratar-se de questão simples (artigo 78º-A, nº 1 da Lei nº 28/82, na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), passa-se a lavrar decisão sumária: O artigo 2º do Decreto Lei nº 512/76, de 3 de Julho dispõe:
‘Os créditos pelas contribuições do regime geral de previdência e respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748º do Código Civil’. Por sua vez, o artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio dispõe:
‘Os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo
748º do Código Civil’. E o artigo 104º do CIRS estabelece:
‘Para pagamento do IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente.’ Como se escreveu no referido acórdão nº 160/00, no que toca ao propósito que esteve subjacente ao estatuído nas normas do artigo 2º do Decreto-Lei nº 512/76 e do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, ‘é indiscutível que o legislador
(...)pretendeu dar alguma preferência aos créditos da Segurança Social ao determinar que os créditos ali consignados sejam graduados logo a seguir aos do Estado e das autarquias locais, referidos no artigo 748º do Código Civil’. Porém, segundo o mesmo acórdão, a amplitude que é dada a este privilégio, amplitude que se traduz no facto de o artigo 751º do Código Civil lhe conferir a natureza de verdadeiro direito real de garantia, munido de sequela sobre todos os imóveis existentes na património da entidade devedora das contribuições para a previdência, à data da instauração da execução e atribuir-lhe preferência sobre direitos reais de garantia ainda que anteriormente constituídos,
‘sacrifica os demais direitos de garantia consignados no artigo 751º, designadamente a hipoteca – que é o caso dos autos’, tanto mais que tal privilégio não está sujeito a registo. Sem questionar que se possa atribuir a algum credor um particular privilégio
‘face à natureza, às finalidades e às funções atribuídas a certos créditos de entidades públicas que visam permitir ao Estado a satisfação de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas - como é o caso da Segurança Social cujo imperativo constitucional resulta do artigo 63º’, aquele acórdão acentua, porém, que tal orientação ‘não pode, sem mais, ser aplicada ao concreto caso, referente a um privilégio imobiliário geral. Com efeito, o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar (cfr. inter alia, os acórdãos nºs. 303/90 e
625/98, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Dezembro de 1990 e
18 de Março de 1999, respectivamente). A esta luz, pergunta-se –(...)– que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em causa.
É que, por um lado, o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas – que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra, 1993, pág.
333; Isabel Pereira Mendes, ‘Repercussão no Registo das Acções dos Princípios do Direito Registral e da Função Qualificadora dos Conservadores do Registo Predial’ in – O Direito, ano 123, 1991, págs. 599 e segs., maxime, pág. 604; Paula Costa e Silva, ‘Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A Protecção Conferida ao Terceiro Adquirente’, in – Revista da Ordem dos Advogados, ano 58,
1998, II, págs. 859 e ss., maxime pág. 862). Por outro lado, o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à Segurança Social. Ora, não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade – a existência de um crédito da Segurança Social – que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece. Acresce que, não se encontrando este privilégio sujeito a limite temporal e atento o seu âmbito de privilégio ‘geral’, e não existindo qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida (no caso à Segurança Social), ao contrário do que sucede com os privilégios especiais referidos nos artigos 743º e 744º do Código Civil, a sua subsistência, com a amplitude acima assinalada, implica também uma lesão desproporcionada do comércio jurídico. Finalmente, ainda se dirá não se surpreender suporte razoável adequado para esta desproporcionada lesão na tutela dos interesses da Segurança Social e no destino das contribuições que esta deixou de receber, pois a Segurança Social dispõe de meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros: bastar-lhe-á proceder ao oportuno registo da hipoteca legal, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 103/80’.
4. Diversamente do processo que deu origem ao citado acórdão nº 160/00, onde apenas se questionava a constitucionalidade das referidas normas do artigo 2º do Decreto-Lei nº 512/76 e do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, nos presentes autos está ainda em causa a norma contida no artigo 104º do CIRS. Porém, como se diz na sentença recorrida, os argumentos que servem para julgar inconstitucionais as primeiras supra citadas normas valem ainda para a norma deste último artigo. Na verdade, também aqui os particulares estão impossibilitados de, previamente, indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedores ao Estado ou à Segurança Social, em obediência ao princípio da confidencialidade tributária. Por outro lado, o dito privilégio implica também uma lesão desproporcionada do comércio jurídico, não só porque também se trata de um privilégio sem limite temporal, como ainda pelo seu caracter ‘geral’ e por não existir qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida, contrariamente ao que acontece com os já referidos privilégios especiais. De outra banda, como refere o já aludido acórdão em parte transponível para a presente situação, também não existe um interesse do Estado (neste caso a Fazenda Nacional) cuja tutela saia de tal maneira lesionada que justifique a subsistência desse privilégio, em detrimento das expectativas de terceiros. Não há um ‘suporte razoável adequado’ para a desproporção da lesão causada ao Estado e a frustração das expectativas de terceiros. Com efeito, mais uma vez como refere aquele acórdão e se repete ‘a Segurança Social dispõe de meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros: bastar-lhe-á proceder ao oportuno registo da hipoteca legal, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei n.º
103/80’ (e esse mesmo registo pode ser feito pela Fazenda Nacional).
5. Termos em que, DECIDINDO:
julgo inconstitucionais, por violação do artigo 2º da Constituição, as
normas constantes dos artigos 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, e
11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e 104º do Código do Imposto
sobre o Rendimento das Pessoas Singulares interpretadas no sentido de que o
privilégio imobiliário geral nelas conferida prefere à hipoteca, nos termos
do artigo 751º do Código Civil.
nego provimento ao recurso'. B. Dessa Decisão veio apenas o 'representante do Ministério Público neste Tribunal,(...) reclamar para a conferência, nos termos do nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82', invocando o seguinte:
'1º - A decisão proferida assenta numa transposição da doutrina firmada no acórdão nº 160/00 para a apreciação da constitucionalidade de uma outra – e diferente – norma - a constante do artigo 104º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
2º - Sendo certo que – relativamente a esta norma – não existe, até ao momento, qualquer precedente jurisprudencial deste Tribunal.
3º - E não havendo, aliás, perfeita coincidência entre o regime ali estabelecido, quanto a um crédito do Estado, e o estatuído nas normas apreciadas pelo acórdão nº 160/00, que atribuem determinada garantia real à Segurança Social.
4º - Neste circunstancialismo, - e independentemente da apreciação de mérito que venha a ser feita – consideramos que uma apreciação ponderada da questão implica que o recurso deva seguir a sua normal tramitação, facultando-se às partes a produção de alegações sobre a matéria e o adequado exercício do contraditório sobre a norma inovatoriamente abarcada pelo presente recurso.
5º - O que – salvo melhor opinião – inviabiliza a qualificação da questão como
‘simples’, o que conduzirá à procedência da presente reclamação'. C. Não foi apresentada nenhuma resposta a essa reclamação. D. Cumpre agora decidir. A ideia subjacente à presente reclamação é a de que, relativamente à norma
'constante do artigo 104º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares', não existe, 'até ao momento, qualquer precedente jurisprudencial deste Tribunal', o que 'inviabiliza a qualificação da questão como ‘simples’'. Porém, contrariamente ao que entende o Ministério Público reclamante, é perfeitamente transponível para a apreciação da constitucionalidade daquela citada norma a 'doutrina firmada no acórdão nº 160/00' e foi nessa base que assentou Decisão reclamada. Na verdade, o teor da norma é coincidente com o texto das normas respeitantes aos créditos da Segurança Social, pois em todas elas se prevê um 'privilégio imobiliário sobre os bens imóveis' ou um 'privilégio imobiliário sobre os bens', existentes no património dos sujeitos devedores (entidades patronais ou sujeito passivo) e o que se diz no acórdão nº 160/00, para os créditos da Segurança Social vale inteiramente para os créditos da Fazenda Pública (aliás, o próprio acórdão tanto se reporta ao Estado como à Segurança Social). Sendo isto assim, e não interessando estar aqui a reproduzir os fundamentos do acórdão nº 160/00, não sai minimamente beliscada a Decisão reclamada, sendo acto inútil mandar seguir os autos para alegação. Com o que não assiste razão ao Ministério Público reclamante. E. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e nega-se, por consequência, provimento ao recurso. Lisboa, 28 de Maio de 2002 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa