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Processo nº 400/01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público veio recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, da sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Angra do Heroísmo, de fls. 66, que 'desaplicou, com fundamento na sua inconstitucionalidade, a norma contida no art. 22º do D. Legislativo Regional 28/88 de 19.05 por entender que o mesmo viola os art.s 115º, nº 3 e 229º, nº 1, a) da C.R.P., com a redacção em vigor à data da entrada em vigor do referido Decreto (actualmente art.s 112º, nº 4 e
227º da C.R.P.' (deve entender-se que se trata do artigo 22º do Estatuto do Serviço Regional de Conciliação e Arbitragem do Trabalho, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional nº 24/88/A, de 19 de Maio). Tal sentença foi proferida no âmbito da acção proposta por A contra B, na qual, invocando ter sido ilicitamente despedida e ter previamente requerido 'a conciliação nos termos do disposto no DLR nº 24/88/A de 19 de Maio', pediu a sua condenação no pagamento de uma indemnização no montante de 392.000$00. Para o que agora interessa, a ré defendeu-se invocando a prescrição do crédito em causa, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 38º da Lei do Contrato Individual de Trabalho, prescrição que teria ocorrido não obstante o previsto no já citado artigo 22º Estatuto do Serviço Regional de Conciliação e Arbitragem do Trabalho, que seria inconstitucional, tal como o Tribunal Constitucional já julgou no seu acórdão nº 408/98. A sentença referida julgou procedente a excepção de prescrição e, consequentemente, absolveu a ré do pedido. Para o efeito, recusou a aplicação do disposto no citado artigo 22º, segundo o qual 'a apresentação do pedido de conciliação suspende os prazos de prescrição e caducidade, que, não havendo acordo, voltarão a correr 30 dias após a data em que tem lugar a tentativa de conciliação ou, em qualquer caso, decorridos 60 dias sobre a entrada do pedido sem que tal diligência se tenha realizado', com fundamento na sua inconstitucionalidade, por 'entender que (...) viola os artºs 115º, nº 3 e 229º, nº 1, a) da CRP, com a redacção em vigor à data da entrada em vigor do referido Decreto (actualmente artºs 112, nº 4 e 227 da CRP)'.
2. Já no Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas para apresentarem alegações. Apenas alegou o Ministério Público, que se pronunciou no sentido da improcedência do recurso, por aderir aos fundamentos do julgamento de inconstitucionalidade constante do referido acórdão nº 408/98 deste Tribunal.
3. Com efeito, a norma que constitui o objecto do presente recurso foi julgada inconstitucional pelo citado acórdão nº 408/98 (Diário da República, II Série, de 9 de Dezembro de 1998 'por violação do artigo 229º, nº1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa (Revisão de 1982; hoje artigo 227º)'.
É esse julgamento que agora se reitera, aqui se transcrevendo a respectiva fundamentação:
'2. - O Decreto Legislativo Regional nº 24/88/A, de 19 de Maio, criou o Serviço Regional de Conciliação e Arbitragem (SERCAT), cujo Estatuto foi publicado em anexo àquele diploma. Segundo o preâmbulo do decreto legislativo, a necessidade de criação deste serviço derivou do facto de o Decreto-Lei nº 115/85, de 18 de Abril ter extinguido, em todo o território nacional, as comissões de conciliação e julgamento, revogando também o artigo
49º do Código de Processo do Trabalho, que impunha a obrigatoriedade de realização da tentativa prévia de conciliação, antes da propositura da acção emergente de contrato individual de trabalho.
O recurso ao SERCAT estabelecido agora, de acordo com o respectivo estatuto, em bases totalmente voluntárias, visa a realização de tentativas de conciliação e de arbitragens.
O artigo 22º do Estatuto determina que a apresentação do pedido de conciliação suspende os prazos de prescrição e de caducidade, que, não havendo acordo, voltarão a correr 30 dias após a data em que teve lugar a tentativa de conciliação ou, em qualquer caso, decorridos 60 dias sobre a entrada do pedido sem que tal diligência se tenha realizado.
O preceito em causa tem uma redacção muito próxima da do nº 3 do artigo 49º do Código de Processo do Trabalho (adiante, CPT), que, no seu nº 1, impunha a tentativa de conciliação prévia obrigatória relativamente às acções emergentes de contrato individual de trabalho (alíneas b),f),g) e h), do artigo 66º, da Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro).
Esta norma do artigo 49º do CPT foi revogada pelo diploma atrás referido (Decreto-Lei nº 115/85) que extinguiu as Comissões de conciliação, tendo cessado com tal revogação a exigência de, previamente à acção, se proceder obrigatoriamente à tentativa de conciliação das partes, sob pena de suspensão da instância.
Com a criação do Serviço Regional de Conciliação e Arbitragem, a Assembleia Regional dos Açores - mesmo tendo tornado facultativa a realização da tentativa de conciliação - possibilitou a introdução no ordenamento jurídico regional de uma norma - o artigo 22º do Estatuto do SERCAT
- que suspendia os prazos de prescrição desde a apresentação do requerimento inicial até 30 dias após a realização da conciliação ou no prazo de 60 dias, se a diligência se não realizar.
(...)
3. - Ao aprovar o Decreto Legislativo Regional nº
24/88-A, exerceu a Assembleia Regional - órgão que passou a ter a designação de Assembleia Legislativa Regional a partir da revisão constitucional de 1989 - competências legislativas nos termos e ao abrigo das normas constitucionais introduzidas pela revisão de 1982. Dispunha então o artigo 115º, depois de enumerar no seu nº 1 as categorias de actos legislativos, entre os quais os decretos legislativos regionais, que estes últimos ‘versam sobre matérias de interesse específico para as respectivas regiões e não reservadas à Assembleia da República ou ao Governo, não podendo dispor contra as leis gerais da República’.
No momento presente, a numeração foi alterada e o artigo
112º, no seu nº 4, apresenta alterações na sua parte final, na qual passou a estabelecer-se que esses actos legislativos não poderão dispor ‘contra os princípios fundamentais das leis gerais da República, sem prejuízo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 227º’.
Independentemente das vicissitudes por que entretanto passou o texto constitucional, o que efectivamente releva para a análise a que há agora que proceder é que o interesse específico regional continua a ser um requisito de validade dos actos legislativos regionais, sem distinguir entre as modalidades de competência legislativa incluídas entre alguma das três primeiras alíneas do nº 1 do actual artigo 227º - ao tempo da emissão do diploma em causa foi invocada a alínea a) do então artigo 229º.
Sobre o que seja o «interesse específico» existe já uma jurisprudência sedimentada deste Tribunal. Escreveu-se, de facto, no Acórdão nº
220/92 (in Diário da República, 1ª Série - A, de 28 de Julho de 1992):
'O que deva entender-se por interesse específico regional merece-nos particular atenção mas não é de resposta fácil nem pacífica (...)
A Constituição furtou-se à sua conceituação ou a tipificar situações, optando por uma formulação vazia, a densificar a partir da ratio do regime politico -administrativo por ela própria criado para as Regiões Autónomas e consubstanciada de certo modo no artigo 227º.
Assim, respeitando o valor intangível da integridade de soberania do Estado, a natureza unitária deste (cf. O artigo 6º da CR) e o quadro constitucional global, o interesse específico habilitador da produção legislativa regional passa não só pela singularidade da matéria em causa, indiciadora de uma exclusividade específica da Região, como o instituto da colonia da Madeira, mas também pela existência nessa Região, com especial intensidade, de uma especificidade que justifique o seu tratamento em termos distintos dos aplicáveis ao restante território nacional(...).
Recorre-se,. por conseguinte, a um critério valorativo que não se basta com uma enumeração das situações, por extensa que seja, contida no respectivo Estatuto Político-Administrativo, nem significa que a sua concretização no elenco seja casuisticamente determinante.
Na verdade, constitui jurisprudência deste Tribunal não poder uma dada medida legislativa regional considerar-se constitucionalmente credenciada tão só pelo facto de versar sobre matéria que o respectivo Estatuto considere como sendo de interesse específico para a Região, pois é, ainda, necessário que essa matéria lhe respeite exclusivamente ou que nela exija tratamento especial por aí assumir particular configuração (cf., por todos, os já citados Acórdãos nºs 164/86 e 326/86).'
Assim, de acordo com esta jurisprudência, a iniciativa legislativa regional tomada ao abrigo da alínea a) do artigo 229º, ou agora ao abrigo da mesma alínea do nº 1 do artigo 227º, porque não há que diferenciar neste contexto, maxime em termos de parâmetros de apreciação da constitucionalidade, deve versar matéria de interesse específico para a Região, sendo certo que este interesse tem de ser sempre apreciado em concreto. Mesmo o facto de a matéria estar indicada no respectivo Estatuto da Região como matéria de interesse específico não implica que, desde logo, se tenha de concluir que se está perante matéria de interesse específico da Região. Tal inclusão deve entender-se como simples presunção abstracta ilidível, caso a caso, pela demonstração da inexistência de um interesse específico (cf. Acórdão nº 235/94, in Diário da República, 1ª Série A, de 2 de Maio de 1994).
4. - Voltando agora ao caso dos autos, importa relembrar que a decisão sob recurso recusou a aplicação 'com fundamento em inconstitucionalidade, do citado artº 22º por violação dos art.ºs 115º, nº 3,
229º, nº 1, al. a) da Constituição', mais concretamente atendendo a que essa norma estabeleceu 'uma causa de suspensão dos prazos de prescrição', no que 'não descortinou que interesse específico da região se quis defender'.
A decisão invocou e desenvolveu outros motivos para fundamentar a invalidade do preceito - nomeadamente a 'flagrante violação de uma lei geral da República' - mas basta a análise do primeiro fundamento para efectivamente se concluir pela inconstitucionalidade, vício que, por ser mais grave, consome o de eventual ilegalidade por violação de lei geral da República
- ou dos princípios fundamentais de lei geral da República, como seria hoje o caso - em que poderá incorrer o artigo 22º do Estatuto do Serviço Regional de Conciliação e Arbitragem do Trabalho, publicado em anexo ao Decreto Legislativo Regional nº 24/88-A, de 19 de Maio, emitido sob invocação da alínea a) do artigo
229º da Constituição (redacção resultante da 1ª Revisão Constitucional).
A verificação do requisito do interesse específico, que
é requisito de constitucionalidade material da legislação regional, pressupõe, tendo em conta que no presente caso se não descortina qualquer singularidade da matéria, que o regime jurídico instituído se mostre justificado pela existência nessa Região, com especial intensidade, de uma especificidade que justifique o seu tratamento em termos distintos dos aplicáveis ao restante território nacional, conforme atrás se referiu transcrevendo o Acórdão nº 220/92. Não se tratará propriamente de confrontar as soluções consagradas pelo legislador da República com as soluções introduzidas pelo legislador regional, visto que o juízo a formular não é um juízo de legalidade. Trata-se sim de, em cada caso, perguntar pela fundamentação da legislação regional, emanada de um poder de conformação normativa inicial e primário em face da Constituição, que, no entanto, actua dentro de condicionalismos de conteúdo mais restritos. Com efeito, a missão do poder legislativo dos órgãos regionais, no âmbito da alínea a) do artigo 229º da Constituição [a que agora corresponde a alínea a) do nº1 desse artigo], é a de complementar, se necessário estabelecendo uma disciplina diferente, o ordenamento jurídico-legal da República em aspectos que possam escapar à visão dos órgãos de soberania, que é uma visão em que prepondera um grau mais abstracto de tipificação das situações, visto que o que se pretende é estabelecer regimes à partida uniformes para todo o espaço nacional, nele incluído, sem distinção, o espaço correspondente às Regiões Autónomas.
5. - As alterações introduzidas na Lei Fundamental pela revisão de 1997 não são de molde a modificar os termos em que se coloca a apreciação do requisito do interesse específico.
O intérprete não poderá deixar de ter em conta que na versão agora em vigor foi incluída, através do novo artigo 228º, uma especificação das matérias de interesse específico, concretamente também para os efeitos da alínea a) do nº1 do artigo 227º. Mas a enumeração a que se procedeu não pode considerar-se, a partir dos seus próprios termos expressos, como taxativa.
A referência que é feita na alínea a) do artigo 228º da Constituição à 'valorização dos recursos humanos' não abrange, muito claramente, o regime do acesso aos tribunais - aliás objecto de direitos, liberdades e garantias, coenvolvido pela disciplina dos prazos de prescrição e de caducidade. Mas também não abrange aspectos que só remotamente poderão correlacionar-se com direitos dos trabalhadores, matéria esta que a Constituição trata autonomizadamente, dando-lhe uma relevância e um destaque que não admitem a sua inclusão em um genérico e pouco denso entendimento de matéria atinente a
‘valorização dos recursos humanos’. A abertura deste conceito, desde logo pela sua própria indeterminação, cede, em interpretação sistemática, perante institutos jurídicos em que se inclua o regime de categorias de pessoas bem concretizadas, como são os ‘trabalhadores’, tal como, por exemplo, se extrai dos artigos 53º e seguintes e 58º e 59º. Nesta perspectiva, tem em vista condições objectivas da vida económica, social e cultural, sobre as quais se projectará a intervenção legislativa, da qual só mediatamente resultará a subjectivação de direitos e deveres, sempre sob a égide do interesse específico.
6. - Poderá em termos genéricos admitir-se que os órgãos de soberania criem instâncias de mera conciliação dos conflitos laborais antes da intervenção dos orgãos jurisdicionais, eventualmente tornando esta última apenas indispensável quando o desacordo subsistir. Não é essa a solução presentemente aplicável, mas foi esse o regime que vigorou até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 115/85, de 18 de Abril, que veio extinguir as antigas
‘comissões de conciliação e julgamento’.
São, estas duas, opções típicas de um poder legislativo que estatui sobre situações de conflito laboral, sem distinguir entre elas consoante especificidades que hipoteticamente possam existir em determinadas
áreas do espaço jurídico português.
Por sua vez, o legislador regional decidiu criar um serviço com índole semelhante ao das comissões de conciliação e julgamento, cuja intervenção é meramente facultativa, porque depende de requerimento voluntariamente apresentado pelos interessados. Essa intervenção suspende os prazos de prescrição e de caducidade, sem, entretanto, impedir o acesso imediato dos mesmos interessados aos tribunais competentes. Nessa parte o legislador regional divergiu do que se previa na legislação geral vigente até 1985. É precisamente a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade que se encontra em apreciação nestes autos.
7. - No preâmbulo do Decreto Legislativo alude o legislador à 'lacuna grave neste domínio' aberta pela extinção das comissões de conciliação e julgamento bem como à circunstância de que 'o modo como se processou a extinção das CCJ não permitiu então ressalvar a sua subsistência na Região', ao que acresceria que 'na Região Autónoma dos Açores foram muitas as entidades, nomeadamente estruturas sindicais, que se manifestaram contra a extinção daquele organismo'
Ora bem, a ideia de base da legislação regional afigura-se ser pura e simplesmente a ideia de que o regime anterior, constante da legislação geral anterior a 1985, seria preferível àquele que em sua substituição foi estabelecido pelo órgão de soberania competente. A afirmação de que se criou uma lacuna neste domínio, nomeadamente em matéria de prescrição e caducidade dos créditos emergentes de relações laborais, não pode ser entendida em sentido jurídico, como imediatamente evidencia a decisão recorrida. Nem pode ser entendida como fundamento de uma medida legislativa tomada a coberto do interesse específico da Região.
A pergunta que se coloca é, neste momento, a de saber se, para além das razões invocadas, que de forma nenhuma são de acolher, alguma especificidade se registará no âmbito das relações laborais regionais que justifique a adopção do regime consagrado no artigo 22º em análise.
A resposta não pode deixar de ser negativa. Não se vislumbram especificidades que justifiquem um regime próprio do direito regional quanto à matéria em causa.
Trata-se, relembre-se, de estabelecer o regime dos prazos em que pode ser deduzido e accionado um pedido que emerge de uma controvérsia entre entidade patronal e trabalhador, sempre susceptível de ser resolvida por acordo entre as partes ou, na falta de acordo, por uma instância que, accionada em devido tempo, estabeleça de forma vinculativa para ambas o conteúdo dos direitos e obrigações de cada uma delas. Neste plano, que é de direito prima facie adjectivo, regimes diferenciados poderão justificar-se, no plano das hipóteses, em conformidade com especificidades do regime material laboral, que, no caso, não se conhecem no que respeita à Região Autónoma dos Açores. Neste contexto, não se encontram razões para que o regime legal deixe de ser uniforme em todo o território.'
Nestes termos, decide-se: a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 22º do Estatuto do Serviço Regional de Conciliação e Arbitragem do Trabalho, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional nº 24/88/A, de 19 de Maio; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que respeita ao juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 28 de Maio de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida