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Proc. nº 202/02
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, foi proferida decisão (fls. 31 e 32) que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional que A (ora reclamante) havia interposto do acórdão daquele Tribunal de 31 de Outubro de 2001 (fls. 65 a 74). Escudou-se o Tribunal, para tanto, na seguinte fundamentação:
'Nos termos do art. 70º, nº 1, al. b) da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, cabe recurso para esse Tribunal das decisões «que apliquem uma norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo». O recorrido pretende levar recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento na inconstitucionalidade dos preceitos do art. 19º, nº 2, do Dec.Lei nº 289/73, de 6.6, e da Portaria nº 678/73, de 9.10. Reconhecendo implicitamente que não suscitara antes essa inconstitucionalidade, alega no entanto que somente agora levantara a questão 'por anteriormente jamais haver sido proferida decisão expressa desfavorável ao recorrente, nem tal ser previsível, segundo um critério de normalidade e, por conseguinte, não ter havido oportunidade e, mais do que isso, motivo para a arguir'. Mas não tem razão. Como recorrente contencioso, o ora recorrente impugnou o acto da Câmara Municipal de V. Nova de Gaia que afectou determinado lote de terreno dum loteamento aprovado a finalidade que, segundo ele, não estaria compreendida no respectivo alvará. Ora, as cedências de terreno eram, ao tempo da emissão do alvará, reguladas pelo art. 19º do citado do Dec.Lei nº 289/73 e Portaria nº 678/73. Sendo assim era-lhe perfeitamente possível ter suscitado, logo na petição de recurso, a inconstitucionalidade desses preceitos, já que fora ao abrigo deles que se tinha realizado a cedência cuja finalidade teria sido desvirtuada pelo acto que impugnou. O recorrido optou, no entanto, por não pôr em causa a compatibilidade constitucional das mesmas normas, talvez porque, na perspectiva em que se colocou, os fundamentos do recurso foram construídos sobre a respectiva vigência e plena aplicabilidade – já que foi deles que retirou a vinculação da cedência à finalidade que a entidade recorrida teria desrespeitado. A novidade não está, pois, na invocação pelo acórdão, de preceitos surpresa que fulminariam, a latere, a pretensão do recorrente contencioso, mas tão somente na interpretação que lhes foi dada pelo Tribunal (interpretação do conceito de equipamentos urbanos), com o qual o recorrido não estará de acordo. Sendo assim, a questão da inconstitucionalidade destas normas bem podia ter sido suscitada durante o processo, para ser decidida, em 1º grau, pelo tribunal administrativo. Nesta conformidade, não admito o recurso para o Tribunal Constitucional'.
2. Inconformado com aquela decisão que não lhe admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, apresentou o recorrente a presente reclamação, que fundamentou, em síntese, nos seguintes termos:
'(...)
8. Ora, tendo presente os termos do despacho de fls. 232 a 233, cintado no nº 5, supra, apesar de «ao tempo da emissão» do alvará que titulou o loteamento aprovado «as cedências de terrenos» serem «reguladas» pelas normas do art. 19º do Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de Junho, e da Portaria nº 678/73, de 9 de Outubro, o ora reclamante não estava obrigado a suscitar, «logo na petição de recurso (contencioso), a inconstitucionalidade desses preceitos».
9. Ao reclamante – recorrente no processo de recurso contencioso para o Tribunal Administrativo de Círculo, porque lesado por uma decisão administrativa, que não judicial – não incumbia qualquer ónus de avaliar as diversas e possíveis linhas normativas susceptíveis de serem seguidas na resolução, em primeira instância, do feito por ele submetido a julgamento ou de formular um juízo de prognose relativamente às normas a aplicar por ela, tudo em termos de se antecipar à prolação da decisão e, desde logo, brandir a funda da inconstitucionalidade das normas aplicadas no acto objecto de recurso contencioso de anulação; dir-se-á mesmo que tal lhe era defeso, por então ainda discutir apenas a questão da legalidade da decisão administrativa.
10. Sobre o reclamante - frisa-se: primeiro recorrente no processo de recurso contencioso; depois recorrido no processo de recurso jurisdicional da sentença proferida no Tribunal Administrativo de Círculo, interposto pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia e por um interessado particular -, porque obteve ganho de causa no recurso contencioso, deixou de impender o ónus de alegar e formular conclusões nesse recurso jurisdicional e de, em 2ª instância, ao litigar na «situação de recorrido», suscitar «a questão de inconstitucionalidade, a título subsidiário, para a hipótese de o tribunal ad quem vir a revogar a sentença da 1ª instância [cfr., nesse sentido, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 232/92 e 280/92, de 30 de Junho de 1992 e de 15 de Julho de 1992, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, nº 22º/581 (588 a 591, in medio) e 895 (898, in fine, a 900, in medio), respectivamente].
11. O que vale por dizer que não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade, quer perante o Tribunal Administrativo de Círculo, quer perante o Supremo Tribunal Administrativo, antes da prolação da decisão que aplicou a(s) norma(s) cuja inconstitucionalidade pretende arguir e de esgotado o poder jurisdicional sobre a matéria a decidir e que só pôde levantar essa questão depois do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de
31 de Outubro de 2001.
12. A falta de oportunidade processual para suscitar a questão da inconstitucionalidade das normas aplicadas pelo acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 31 de Outubro de 2001, antes de este ser proferido e a
«inexistência de um ónus de avaliação antecipado» sobre a interpretação dessas normas «conduzem à dispensa do pressuposto de admissibilidade do recurso relativo à suscitação da inconstitucionalidade durante o processo», «devendo, pois, o recurso ser recebido independentemente da verificação desse requisito processual» (cfr., nesse sentido, os acórdãos do Tribunal Constitucional, nºs
61/92 e 80/92, de 11 e 15 de Fevereiro de 1992, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º/761 e 265; nº 166/92, de 6 de Maio de 1992, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º/913; nº 263/92, de 13 de Julho de 1992, in BMJ,
419/757; e nº 188/93, de 3 de Março de 1993, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º/495).
3. Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que se pronunciou no sentido manifesta improcedência da reclamação, posição que fundamentou nos seguintes termos:
'A presente reclamação configura-se como manifestamente improcedente, já que: a) de um ponto de vista formal, a reclamante não cumpriu o ónus de suscitação, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade normativa que integra o objecto do recurso, tendo tido plena oportunidade processual para o ter feito, no âmbito da contra-alegação que lhe era permitido apresentar no recurso interposto pela outra parte para o STA: na verdade, tais normas eram expressamente invocadas pelo recorrente (cfr., conclusão 3ª da sua alegação), sendo previsível a eventualidade do o Supremo vir a optar por entendimento diverso do seguido em 1ª instância; e, como tem entendido a jurisprudência deste Tribunal (embora de modo não perfeitamente unânime) recai sobre o recorrente o
ónus de não «abandonar» ou «deixar cair» a questão de inconstitucionalidade, suscitando-a – quando recorrido – a título subsidiário, no âmbito da contra-alegação que lhe é lícito produzir (cfr., v.g., acs. 468/91 e 182/95). b) Do ponto de vista «substancial», entendemos que não está adequadamente suscitado, no requerimento de interposição do recurso, uma questão de inconstitucionalidade normativa, não especificando, em termos minimamente inteligíveis, qual a concreta dimensão dos preceitos legais questionados que considera aplicados pelo STA – e sendo certo que a questão controvertida nos autos se prende apenas com a densificação e concretização de uma cláusula geral ou conceito indeterminado, definindo casuisticamente o que deve entender-se por
«equipamentos gerais destinados a servir os loteamentos urbanos».
Dispensados os vistos, cumpre decidir. II. Fundamentação.
4. A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 pressupõe, além do mais, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada, constituindo desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal
(veja-se, entre muitos nesse sentido, os acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional., 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente) que, em princípio, tal implica que a questão de constitucionalidade seja suscitada antes da prolação da decisão recorrida. Em consequência, tem este Tribunal afirmado repetidamente que, em regra, o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional não constitui meio ou momento processualmente adequado para suscitar, pela primeira vez, a questão de inconstitucionalidade - como, in casu, aconteceu. Somente tem este Tribunal admitido que a questão de constitucionalidade seja suscitada já depois de proferida a decisão recorrida em hipóteses, de todo em todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de o fazer antes, ou em que o poder jurisdicional, por força de norma processual específica, não se tenha esgotado com a prolação da decisão recorrida. E, nessa sequência, tem o Tribunal entendido que uma das situações em que o interessado não dispõe de oportunidade processual para suscitar a questão da constitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional é precisamente a daqueles casos em que é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da prolação dessa decisão. Importa, pois, começar por averiguar se é essa a hipótese que se verifica nos autos, como refere o recorrente. Cremos que não. Efectivamente, a aplicação pela decisão recorrida do artigo 19º do Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de Junho, bem como da Portaria nº 678/73, de 9 de Outubro, não pode, manifestamente, qualificar-se como imprevisível ou inesperada, em termos de não ser exigível ao recorrente que a antecipasse, desde logo porque – como, bem, nota o Ministério Público na sua alegação – a aplicação de tais preceitos
(com o sentido com que vieram a ser aplicados pelo Supremo Tribunal Administrativo) foi expressamente solicitada pelos então recorrentes, designadamente na conclusão 3ª da sua alegação. Mas, uma vez demonstrado que a aplicação pela decisão recorrida dos artigos 19º do Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de Junho, e da Portaria nº 678/73, de 9 de Outubro, não pode configurar-se como imprevisível ou inesperada, resta averiguar se o ora reclamante podia (se teve oportunidade processual) e devia (porque lhe era exigível que o fizesse) suscitar a questão da sua inconstitucionalidade antes proferida a decisão recorrida. Quanto à primeira questão a resposta a dar é inequivocamente positiva. O ora reclamante teve efectivamente oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade dos artigos 19º do Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de Junho, e da Portaria nº 678/73, de 9 de Outubro, na contra-alegação que apresentou no Supremo Tribunal Administrativo em resposta ao recurso para aí interposto pelos ora reclamados. Mas, era-lhe exigível que o fizesse ? Afirma o ora reclamante que não, uma vez que tendo obtido ganho de causa na 1ª Instância e sendo, consequentemente, recorrido no recurso para o STA, deixou de impender sobre si o ónus de alegar e formular conclusões nesse recurso jurisdicional e de, em 2ª Instância, ao litigar na situação de recorrido, suscitar a questão de inconstitucionalidade, a título subsidiário, para a hipótese de o tribunal ad quem vir a revogar a sentença da 1ª instância. Invoca inclusivamente, para sustentar a sua tese, a anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional, designadamente a constante dos acórdãos nºs 232/92 e
280/92. A verdade, porém, é que não lhe assiste razão. E não apenas - como nota o Ministério Público - porque a jurisprudência que invoca não é uniforme no Tribunal Constitucional [podendo invocar-se em sentido contrário os acórdãos nºs 36/91, 468/91, 469/91, 182/95 e 396/01 (publicados no Diário da República, II Série, de 22 de Outubro de 1991, de 24 de Abril de 1992, de 21 de Junho de 1995 e de 14 de Novembro de 2001, respectivamente)] mas, fundamentalmente, porque a jurisprudência firmada nos acórdãos nºs 232/92 e
280/92 (citados pelo recorrente) não é transponível para a hipótese dos autos. E, por duas razões. Em primeiro lugar porque a situação que é objecto dos presentes autos não é inteiramente idêntica à que foi objecto dos acórdãos referidos pelo ora reclamante. É que, diferentemente do que acontece nos presentes autos, na situação que foi objecto daqueles acórdãos o recorrente havia suscitado a questão de constitucionalidade das normas em causa na primeira instância e apenas não a havia reiterado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, por ter obtido ganho de causa na primeira instância e surgir como recorrido no recurso que deu origem àquela decisão, enquanto que na hipótese que está subjacente aos presentes autos nunca o recorrente suscitou a questão de constitucionalidade dos artigos 19º do Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de Junho, e da Portaria nº 678/73, de 9 de Outubro, antes de proferida a decisão recorrida. Em segundo lugar porque aquela jurisprudência foi firmada em face da anterior redacção do da Lei do Tribunal Constitucional (da redacção anterior à da Lei nº
13-A/98, de 26 de Fevereiro) que apenas exigia que a questão de constitucionalidade fosse suscitada durante o processo. A verdade, porém, é que entretanto a Lei nº 13-A/98 veio alterar o nº 2 do artigo 72º da referida Lei, passando a exigir expressamente que a parte que interpõe recurso 'haja suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer'. Consagrou, pois, a nova redacção da Lei do Tribunal Constitucional, a solução jurisprudencial que vinha sendo seguida pela 2ª Secção deste Tribunal (firmada nos acórdãos nºs 36/91, 468/91, 469/91, 182/95 e 396/01, já citados), em detrimento da que vinha sendo adoptada pela 1ª Secção (firmada nos acórdãos nºs
232/92 e 280/92, igualmente já citados), em que o ora reclamante se apoia. Por tudo o exposto pode, pois, reafirmar-se agora (inclusive com maior propriedade) o que se escreveu no acórdão deste Tribunal Constitucional nº
182/95, no seguimento dos acórdãos nºs 468/91, 469/91 já citados:
'(...) não se diga que, porque in casu não foi o recorrente a impugnar a sentença da primeira instância, estando dispensado do ónus de alegar e formular conclusões, não pode transpor-se para aqui o entendimento daqueles citados acórdãos, pois a verdade é que o recorrente, apesar de ter obtido ganho de causa, passando a recorrido numa instância de recurso, fez alegações, desenvolveu o seu ponto de vista em contrário da argumentação da outra parte e pugnou pela confirmação do julgado que lhe foi favorável (cfr. o acórdão nº
232/92, publicado na II Série do Diário da República, nº 255, de 4 de Novembro de 1992). E não é ser supercauteloso manter numa arguição de inconstitucionalidade numa instância de recurso, mesmo como parte recorrida, nas circunstâncias do presente caso, quando anomalamente tal arguição não constou dos articulados rituais do processo e o julgador dela não conheceu, nem sequer revelou ter-se apercebido da arguição'.
Assim, não tendo sido suscitada pelo recorrente durante o processo a questão da constitucionalidade que agora pretende ver apreciada, conforme exige a al. b) do nº 1 do art. 70º da lei do Tribunal Constitucional, ao abrigo da qual é interposto o recurso, não pode, efectivamente, o mesmo ser admitido.
III. Decisão. Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 27 de Maio de 2002- José de Sousa e Brito Aberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida