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Processo nº 548/07
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que são
recorrentes A. e outros e é recorrido o Ministério Público, foi interposto
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), do Acórdão daquele Tribunal de 19 de Abril de 2007.
2. Em 18 de Maio de 2007, foi proferida decisão sumária pela qual se entendeu
não tomar conhecimento do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«Segundo o nº 1 do artigo 75º-A da LTC, cabe ao recorrente indicar a norma cuja
inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie.
No caso em apreço, não se pode dar como cumprido este ónus, já que os
recorrentes se limitam a afirmar que o artigo 141º, nº 1, do Código de Processo
Penal teve uma interpretação normativa inconstitucional. Ou seja, não
identificaram, de forma expressa, essa mesma interpretação. Não se justifica,
porém, a formulação do convite previsto no nº 6 do artigo 75º-A da LTC. Ainda
que tal falta viesse a ser suprida, subsistiria sempre a não verificação de um
dos requisitos do recurso interposto – a não aplicação, pela decisão recorrida,
como ratio decidendi, de qualquer norma extraída do nº 1 do artigo 141º do
Código de Processo Penal.
No caso presente, percorrida a fundamentação do acórdão recorrido, é de concluir
pela não aplicação de qualquer norma extraída do nº 1 do artigo 141º do Código
de Processo Penal, disposição legal que estatui que o arguido detido que não
deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo
máximo de 48 horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação
dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam. E bem se compreende que
assim seja, uma vez que se trata de decisão que conhece recurso interposto do
despacho que havia imposto aos arguidos a prisão preventiva. Consequentemente, o
Tribunal da Relação de Lisboa aplica apenas normas extraídas do regime
legalmente previsto em matéria de medidas de coacção (artigo 191º e ss. do
Código de Processo Penal), tendo considerado, expressamente, que o objecto do
recurso, atentas as conclusões da respectiva motivação, prende-se,
fundamentalmente com a questão de saber-se se estão ou não reunidos os
pressupostos de facto e de direito que fundamentam a imposição de prisão
preventiva aos arguidos».
3. Desta decisão reclamam os recorrentes para a conferência, ao abrigo do
disposto no artigo 78º-A, nº 3, da LTC, nos seguintes termos:
«(…) O douto despacho reclamado entendeu que a norma cuja inconstitucionalidade
se pretende que o Tribunal aprecie não foi aplicada como ratio decidendi pela
decisão recorrida, logo não pode o objecto do recurso ser apreciado.
Vejamos,
Está em causa a aplicação pelo meritíssimo JIC do art° 141 n° 1 do CPP, na
previsão que estatui com a indicação… das provas que a a fundamentam.
Os recorrentes em sede de recurso para o Tribunal da Relação, artº 417 n°2 do
CPP, sustentaram,
9. A decisão impugnada fez uma interpretação do art° 141 nº 1 do CPP, no sentido
de que o cumprimento deste normativo se basta com a indicação aos arguidos dos
motivos da sua detenção, não devendo os arguidos ter acesso material às provas
indiciárias carreadas para os autos.
10. Só assim se entende que o MP faça referência a fls 21 a 70 – relação e
valores indicados do ouro – para sustentar o valor do material furtado,
documentos essenciais sobre os quais os recorrentes não se puderam pronunciar e
que são determinantes para a aplicação da prisão preventiva, ficando assim
vedado aos arguidos exercerem contraditório sobre fls que desconheciam e que se
revelam importantes para a boa decisão da causa.
11. É manifesta a inconstitucionalidade da interpretação normativa dada pelo
Juiz a quo ao art°141 n° 1 do CPP, porquanto coarcta e limita as garantias de
defesa dos arguidos, por violação do art° 32 n°1 da CRP.
Apesar de invocada pelos recorridos a inconstitucionalidade da interpretação
dada ao art° 141 n°1 do CPP pelo JIC, o Tribunal da Relação não se pronunciou.
Salientar que o art° 141 n° 1 do CPP referindo-se ao primeiro interrogatório
judicial de arguido preso, seja em sede de recurso seja em sede de primeira
instância, é norma que forçosamente e de forma tácita é aplicada pelas
instâncias , está a montante do art° 191 e ss do CPP.
Isto é, só após as declarações do arguido prestadas dentro do enquadramento do
art° 141 n° 1 do CPP, o JIC decide pela aplicação ou não de alguma medida de
coacção.
O Tribunal da Relação por sua vez controla a legalidade da decisão do Juiz “a
quo”, e consequentemente a correcta aplicação ou não do art° 141 n° 1 do CPP.
Ser omisso o douto acórdão da Relação quanto a esta matéria não significa que o
artº 141 n°1 do CPP não tenha sido aplicado, tanto mais que é direito
fundamental dos recorrentes inspirado claramente no preceito constitucional,
previsto no art° 28 n° 1 da CRP.
Acresce que o que se pretende ver avaliado refere-se à interpretação dada à dita
norma pelo JIC avaliação que a Relação não fez, mas que não pode significar que
o Tribunal Constitucional não o faça, pois caso contrário estaria vedado aos
recorrentes a apreciação de inconstitucionalidades por si suscitadas.
Pelo exposto, estamos perante direito fundamental dos recorrentes, previsto no
art° 28 n° 1 da CRP e art° 141 n° 1 do CPP, a quem deviam ter sido indicadas as
provas que fundamentaram a sua detenção.
É a interpretação da dita norma dada pelo JIC que os recorrentes pretendem ver
controlada na sua face constitucional.
Imperioso é referir que na ratio decidendi das decisões recorridas teve sempre
presente o art° 141 n°1 do CPP como direito fundamental e assim deve a presente
reclamação proceder com as demais consequências legais».
4. Notificado desta reclamação, o Ministério Público respondeu pela forma
seguinte:
«1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente, em nada abalando a
argumentação dos reclamantes a evidente inverificação dos pressupostos do
recurso, sustentada pela decisão reclamada.
2°
Sendo evidente e incontroverso que o Tribunal “a quo” não se pronunciou – nem
tinha de se pronunciar – sobre questão que estravazava o objecto do recurso
interposto pelos arguidos».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão que é objecto da presente reclamação concluiu pelo não conhecimento do
objecto do recurso, por a decisão recorrida – o acórdão da Relação de Lisboa, de
19 de Abril de 2007 – não ter aplicado, como ratio decidendi, qualquer norma
extraída do nº 1 do artigo 141º do Código de Processo Penal.
Sustentam agora os reclamantes, por um lado, que invocaram a
inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 141º, nº 1, do Código de
Processo Penal pelo juiz de instrução, não se tendo pronunciado sobre tal
matéria o Tribunal da Relação; e, por outro, que o artigo 141º, nº 1, do Código
de Processo Penal, “referindo-se ao primeiro interrogatório judicial de arguido
preso, seja em sede de recurso seja em sede de primeira instância, é norma que
forçosamente e de forma tácita é aplicada pelas instâncias”, estando a montante
do artigo 191º e ss. deste Código.
A circunstância de o Tribunal da Relação de Lisboa não se ter pronunciado sobre
a alegada inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 141º, nº 1, do
Código de Processo Penal pelo juiz de instrução é, por si só, significativa de
que se tratava de disposição legal que não era pertinente, no caso, face ao
objecto do recurso, que os então recorrentes definiram nas conclusões da
respectiva motivação (cf. artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal e fl.
92 e s. dos autos).
Face a tal definição, o tribunal recorrido conheceu do “recurso do despacho
judicial de 15/12/2002 (fls. 73 a 83), que, findo o seu 1º interrogatório (art°
141º CPP), fundamentando, lhes impôs a medida de coacção de prisão preventiva”,
identificando, expressamente, o objecto de tal recurso, “atentas as conclusões
da respectiva motivação”, “com a questão de saber-se se está[ão] ou não reunidos
os pressupostos de facto e de direito que fundamentam a imposição de prisão
preventiva aos arguidos” (cf. fls. 145 e 146 e s. dos autos). Matéria
relativamente à qual carecia de qualquer justificação convocar o disposto no
artigo 141º, nº 1, do Código de Processo Penal, muito embora os recorrentes
tivessem invocado esta disposição legal na resposta que se seguiu à notificação
feita nos termos do consagrado no nº 2 do artigo 417º deste Código, questionando
então a constitucionalidade da “interpretação normativa dada pelo Juiz a quo ao
artº 141 nº 1 do CPP”. Preceito que – anote-se – o Ministério Público junto do
Tribunal da Relação não havia sequer invocado para concluir pela confirmação e
manutenção da decisão recorrida (cf. fl. 105 e s.).
Na verdade, face ao teor do nº 1 do artigo 141º do Código de Processo Penal, à
inserção sistemática deste artigo – Primeiro interrogatório judicial de arguido
detido – e ao consagrado no nº 2, parte final, do artigo 194º deste Código, não
é sequer defensável sustentar que se trata de “norma que forçosamente e de forma
tácita é aplicada pelas instâncias”. O primeiro interrogatório judicial de
arguido detido – de arguido detido e não de arguido preso – é o acto processual
através do qual há a apreciação judicial da detenção ocorrida, em obediência ao
disposto no artigo 28º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa;
correspondendo a sujeição do arguido a uma medida de coacção, segundo as
condições e os princípios fixados a partir do artigo 191º do Código de Processo
Penal, a um momento processual distinto que poderá ocorrer na sequência daquele
primeiro acto. Significativamente, pode mesmo ler-se no acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa que estava em causa medida de coacção de prisão preventiva
imposta findo o primeiro interrogatório (fl. 145 dos autos).
Resta, pois, concluir pelo indeferimento da presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 6 de Junho de 2007
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão