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Processo n.º 215/06
Plenário
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei da Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da sentença do
Tribunal Judicial de Oeiras (2.º Juízo de Competência Criminal), de 14 de
Dezembro de 2005, que absolveu a arguida A. da contravenção de que vinha acusada
e que consistia em fazer-se transportar num autocarro de uma carreira de
transporte colectivo de passageiros, sem que estivesse munida do correspondente
título de transporte válido. Para tanto, a sentença recorrida recusou aplicação
à norma constante do artigo 3.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 108/78, de
24 de Maio, com fundamento em violação dos princípios constitucionais da culpa,
da igualdade e da proporcionalidade, que considerou consagrados nos artigos 1.º,
13.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 25.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1, da Constituição, por
estabelecer, para a contravenção em causa, uma multa de montante fixo.
Pelo acórdão n.º 117/2007 (3.ª Secção), o Tribunal concedeu
provimento ao recurso, decidindo não julgar inconstitucional a norma da alínea
a) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 108/78, de 24 de Maio, na parte em
que estabelece, para a contravenção aí prevista, uma multa correspondente a 50%
do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável
no transporte utilizado.
2. Deste acórdão interpôs o Ministério Público recurso para o
Plenário, ao abrigo do artigo 79.º-D da LTC, com fundamento em que tal
julgamento é contraditório com o juízo de inconstitucionalidade formulado,
quanto à mesma norma, no acórdão n.º 579/2006.
O recurso para o Plenário foi admitido, tendo apresentado
alegações, somente, o Ministério Público. Reproduz, no essencial, o que alegara
perante a Secção e conclui nos termos seguintes:
«1 – É inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade, a norma constante do artigo 3º, nº. 2, alínea b) do
Decreto-Lei nº. 108/78, de 24 de Maio, na medida em que estabelece uma pena de
multa de valor fixo, que o Tribunal terá sempre de aplicar em caso de
condenação.
2 – Termos em que deverá confirmar-se a decisão recorrida quanto à questão de
inconstitucionalidade que é objecto de recurso».
II. Fundamentação
4. Nada obsta ao conhecimento do recurso pelo Plenário.
Designadamente, verifica-se que o acórdão recorrido julgou a questão de
constitucionalidade da referida norma em sentido oposto ao decidido pelo acórdão
n.º 579/2006, publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Janeiro de
2006, satisfazendo-se, assim, o pressuposto estabelecido pelo n.º 1 do artigo
79.º-D da LTC.
Efectivamente, pelo acórdão nº 579/2006, com fundamentação retomada no acórdão
n.º 679/2006, o Tribunal julgou inconstitucional a norma que é objecto do
presente recurso, considerando que a cominação de uma pena de multa de montante
fixo para os ilícitos contravencionais em causa viola os princípios
constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
E sobre esse mesmo problema – a questão da constitucionalidade da cominação de
penas fixas para o ilícito contravencional punido com pena de multa – embora
versando sobre a norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º do mesmo diploma, que
estabelece a sanção para a ultrapassagem da paragem para que o título era
válido, recaiu o acórdão n.º 5/2007, também no sentido da inconstitucionalidade.
5. Lembremos o caso: o Tribunal Judicial de Oeiras (2.º Juízo de Competência
Criminal) recusou a aplicação da norma constante do artigo 3.º, n.º 2, alínea
a), do Decreto-Lei nº 108/78, de 24 de Maio, com fundamento na violação dos
princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade,
consagrados nos artigos 1.º, 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, e 30.º, n.º
1, da Constituição.
É a seguinte a redacção daquela disposição legal:
«Artigo 3º
1 – (…)
2 – Nos casos em que a cobrança seja feita por qualquer outro processo, os
infractores pagarão o preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido
de uma multa de montante de:
a) 50% do preço do respectivo bilhete mas nunca inferior a cem vezes o mínimo
cobrável no transporte utilizado, na hipótese de não terem adquirido qualquer
título válido de transporte;
b) (…)».
Entretanto, a Lei n.º 28/2006, de 4 de Julho, veio substituir
este regime sancionatório, definindo a falta de título de transporte válido como
contra-ordenação punida com coima de valor mínimo correspondente a 100 vezes o
montante em vigor para o bilhete de menos valor e de valor máximo correspondente
a 150 vezes o referido montante, com respeito pelos limites máximos previstos no
artigo 17.º do regime geral do ilícito de mera ordenação social (artigo 7.º) e
mandando punir como contra-ordenações as anteriores contravenções, sem prejuízo
do regime mais favorável (artigo 14.º). Intervenção legislativa esta que se
insere num 'pacote legislativo' em que, além desse diploma, se incluiu a Lei n.º
30/2006, de 11 de Julho, visando a erradicação das contravenções que ainda
subsistiam no nosso ordenamento jurídico, substituindo‑as por contra-ordenações.
Recorde-se que se pune o comportamento de utilização de meio de transporte
colectivo de passageiros sem título válido de transporte, nos casos em que a
cobrança não é feita por agente cobrador mas por outro processo, sujeitando o
infractor - além do pagamento do preço do bilhete correspondente ao seu percurso
aspecto que não está em causa, porque não respeita ao segmento sancionatório – a
uma multa de “50% do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes
o mínimo cobrável no transporte utilizado”. Trata-se de forçar o utente a
adequar o seu comportamento à evolução do sistema de cobrança nos transportes
colectivos de passageiros, criando uma sanção suficientemente dissuasora do
incumprimento da obrigação legal de pagar o preço do transporte, desmotivando
para uma conduta cuja generalização importa prevenir porque, além da
consequência imediata na relação entre o prestador do serviço e o utente,
tornaria menos eficiente a prestação do serviço público em causa, porque
obrigaria a mobilizar recursos para a cobrança ou o controlo sistemático.
É inegável que a norma em causa estabelecia, para um ilícito
de natureza contravencional, uma multa de montante fixo, caso se verificasse a
situação descrita no tipo (utilização de transporte colectivo de passageiros sem
título válido). Não era um montante absolutamente fixo, na medida em que o
montante da multa era calculado em função do preço do respectivo bilhete ou do
mínimo cobrável no transporte utilizado, consoante o maior produto; mas era uma
pena fixa, no sentido de não graduável pelo juiz dentro de uma moldura penal
abstracta que estabelecesse um mínimo e um máximo (Cfr., sobre diversas acepções
da expressão pena fixa, acórdão n.º 83/91, publicado no Diário da República, II
Série, de 30 de Agosto).
6. Deve começar-se por salientar que não há divergência entre
o acórdão recorrido e o acórdão fundamento quanto à inconstitucionalidade da
cominação, para ilícitos criminais, de penas insusceptíveis de individualização
pelo juiz. Também no acórdão recorrido se acompanha o que no acórdão n.º
124/2004 (Diário da República, I-Série A, de 31 de Março), filiando-se no
Acórdão n.º 95/2001, publicado no Diário da República, II série, de 24 de Abril
de 2002, se pondera:
«(...) O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de
um Estado de Direito, proíbe – já se disse – que se aplique pena sem culpa e,
bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.
Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de JOSÉ
DE SOUSA E BRITO (loc. cit., página 199), se deduz da dignidade da pessoa
humana, em que se baseia a República (artigo 1º da Constituição), e do direito
de liberdade (artigo 27º, n.º 1); e, nos dizeres de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS,
vai buscar o seu fundamento axiológico “ao princípio da inviolabilidade da
dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de
Direito democrático” (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do
Crime, Lisboa, 1993, página 73).
Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas
fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também
o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de
prevenção) que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta da pena,
situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de
comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na
determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau de
culpa do agente – é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência.
A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o juiz, na
determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de
ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas
consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente,
nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham
a favor ou contra ele.
Ora, isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a tratar de modo
igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem
por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem
maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam. Mas,
o princípio da igualdade – que impõe se dê tratamento igual a situações
essencialmente iguais e se trate diferentemente as que forem diferentes – também
vincula o juiz.
A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado
a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim deixando de
observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções
criminais seja proporcional à gravidade das infracções.
Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa,
que enforma o direito penal, e o princípio da igualdade, que o juiz há-de
observar na determinação da medida da pena. E pode violar também o princípio da
proporcionalidade. E isto é assim, quer a pena que a norma prevê seja uma pena
de prisão, quer seja uma pena de multa.
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal Português cit., página 193), depois de
dizer que decorre da Constituição que a determinação da pena exige cooperação –
“mas também, por outro lado, uma separação de tarefas e de responsabilidades tão
nítida quanto possível entre o legislador e o juiz” –, sublinha que “uma
responsabilização total do legislador pelas tarefas de determinação da pena
conduziria à existência de penas fixas e, consequentemente, à violação do
princípio da culpa e (eventualmente também) do princípio da igualdade”.
Este Tribunal, no seu Acórdão n.º 202/2000 (publicado no Diário da República, II
série, de 11 de Outubro de 2000), debruçou-se sobre a norma constante do artigo
31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto – que mandava aplicar a pena fixa
de interdição do direito de caçar por um período de cinco anos àquele que
caçasse em zonas de regime cinegético especial em épocas de defeso ou com o
emprego de meios não permitidos – e concluiu que a mesma era inconstitucional,
por violar os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
Escreveu-se aí:
“Deve, pois, reconhecer-se que a cominação, pela norma em análise, de uma pena
fixa, de quantum legalmente determinado sem possibilidade de individualização de
acordo com as circunstâncias do caso concreto, não se acha em conformidade com a
exigência de que à desigualdade da situação concreta (do facto cometido e das
suas “circunstâncias”) corresponda também uma diferenciação da sanção penal que
lhe é aplicada, e que esta seja proporcional às circunstâncias relevantes de tal
situação concreta.
Os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade implicam, na
verdade, o juízo de que a cominação de uma pena de interdição do direito de
caçar invariável de cinco anos para o “crime de caça” do artigo 31º, n.º 10, da
Lei n.º 30/86 é materialmente inconstitucional”.
Importa, então, saber se a norma sub iudicio prevê uma pena fixa, pois, tal
sucedendo, ela é constitucionalmente ilegítima nos termos que se deixaram
apontados.
(...) Decorre, na verdade, dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis: é que, só desse
modo o legislador abre ao juiz a possibilidade de graduar a pena, fixando-a
entre o mínimo e o máximo que a lei prevê, de acordo com todas as circunstâncias
atendíveis (grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias),
por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são,
em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar penas
desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em consideração todo o quadro
que envolveu a prática de cada uma delas. Ou seja: só prevendo o legislador
penas variáveis, pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de
prevenção e, bem assim, às demais circunstâncias que ele deve considerar para
encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso.
Esse resultado não o pode, com efeito, o juiz atingir, lançando mão do instituto
da atenuação especial da pena ou, sendo o caso, do da dispensa de pena, a que
faz apelo o acórdão n.º 83/91 para ver consagrada, na norma sub iudicio, uma
pena que, tão-só tendencialmente, é uma pena fixa, e não uma pena rigidamente
fixa: é que, desde logo, a atenuação especial da pena pressupõe que a pena (de
prisão ou de multa) aplicável ao caso seja variável (cf. o artigo 73º do Código
Penal); e, depois, supõe a ocorrência de um quadro de circunstâncias com valor
fortemente atenuativo (“quando existirem circunstâncias anteriores ou
posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a
ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena”, diz o n.º 1 do
artigo 72º do mesmo Código). E, quanto à dispensa de pena, também só pode
recorrer-se a ela, quando, estando em causa uma infracção de pequena gravidade
(recte, uma infracção punível com prisão não superior a seis meses, ou só com
multa não superior a cento e vinte dias), o juiz verificar que são “diminutas”
“a ilicitude do facto e a culpa do agente”; que o “dano” já foi “reparado”; e
que “à dispensa de pena” se não opõem “razões de prevenção” (cf. o artigo 74º do
mesmo Código).
Estes mecanismos são, de facto inaptos para – como se escreveu no citado Acórdão
n.º 202/2000, a propósito da atenuação especial da pena – “dar conta da
necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar – à
culpa do agente e às necessidades de prevenção”.
Recorrendo, de novo, aos dizeres do Acórdão n.º 202/2000:
“Não pode aceitar-se o argumento de que, interpretando a norma em causa como
prevendo uma pena apenas “tendencialmente fixa” ela não viola o princípio da
igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade das penas (e
das medidas de segurança) há-de ser proporcional à gravidade das infracções,
encaradas sob o ponto de vista, respectivamente, da culpa e das necessidades de
prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial, perante a
perigosidade do agente)”.
E, mais adiante, ponderou ainda o mesmo Acórdão n.º 202/2000:
“A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas na lei geral – de
atenuação especial da pena e de dispensa de pena –, bastaria para permitir a
graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de duração fixa,
assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se coerentemente seguida,
conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de previsão de quaisquer
molduras penais abstractas, satisfazendo-se as exigências constitucionais da
igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos gerais”.»
Todavia, estas razões, que se reafirmam perante a cominação de
penas fixas para ilícitos de natureza criminal, que foi o domínio normativo
relativamente ao qual o Tribunal as adoptou, não são transponíveis, sem mais,
para a apreciação da conformidade constitucional das penas pecuniárias fixas
estabelecidas nos restantes espaços sancionatórios. Designadamente,
limitando-nos ao que interessa para o caso, não são procedentes perante ilícitos
contravencionais punidos com multa, sanção que, comungando com a pena de multa
criminal a natureza de sanção pecuniária, se distingue desta em aspectos que são
essenciais para o confronto com os referidos princípios constitucionais.
7. Por força do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo
7.º do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, que aprovou o novo Código
Penal, permaneceram em vigor as normas relativas a contravenções constantes do
Código Penal de 1886 e de legislação avulsa. Assim, persistiu no ordenamento
jurídico-positivo, como categoria autónoma de ilícito, a contravenção que, no
conceito dado pelo artigo 3.º do Código Penal de 1886, é “o facto voluntário
punível que unicamente consiste na violação ou na falta de observância das
disposições preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a
intenção maléfica”.
Anteriormente, o Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Junho, que
pela primeira vez consagrara entre nós, como categoria de ilícito formalmente
positivado, o ilícito de mera ordenação social, protagonizara uma tentativa de
eliminação das contravenções puníveis com pena de multa, ao estabelecer, no n.º
3 do artigo 1.º, que “são equiparáveis às contra-ordenações as contravenções ou
transgressões previstas pelas lei vigentes a que sejam aplicadas sanções
pecuniárias”. Porém, o Decreto-Lei n.º 411‑A/79, de 1 de Outubro, de pronto
revogou este preceito, evitando que se consumasse esta transformação automática
e em bloco das contravenções punidas com multa em contra-ordenações.
Surgiu, depois, o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que veio instituir
o novo regime do ilícito de mera ordenação social e respectivo processo. Mas,
nessa ocasião, o legislador absteve-se de eliminar ou converter em
contra-ordenações as contravenções vigentes, assim se mantendo a situação,
criada em 1979, de existência destas três categorias de ilícito: criminal,
contravencional e contra‑ordenacional (ou de mera ordenação social).
Todavia, o elenco das contravenções foi sendo progressivamente reduzido e o
respectivo espaço ocupado, pontualmente ou em blocos sectoriais (v.gr., nos
domínios rodoviário, fiscal, laboral, de urbanismo e construção, de infracções
anti‑económicas), pela criação de contra‑ordenações e, em casos muito contados,
pela tipificação da conduta correspondente como ilícito criminal. Movimento este
que culminou com a Lei n.º 30/2006, de 11 de Julho, que, além de transformar
determinadas contravenções em contra-ordenações, converteu, em bloco, as
contravenções e transgressões residuais em contra-ordenações (artigo 35.º).
Esta persistência temporária de uma categoria penal como as contravenções, a par
da institucionalização legal de um ilícito de mera ordenação social, é
explicável, como diz figueiredo dias, O Movimento da Descriminalização e o
Ilícito de Mera Ordenação Social, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos
Doutrinário, Vol. I, pág. 25, porque “o legislador terá receado os efeitos
práticos nocivos que poderiam ligar-se a uma global e automática transformação
das contravenções vigentes em contra-ordenações; tanto mais, pode
acrescentar-se, quanto essa transformação não poderia ser total, pois que na
nossa ordem jurídica existem ainda inúmeras contravenções puníveis só, ou
também, com penas de prisão e que, por conseguinte, em caso algum poderiam ser
convertidas em contra-ordenações”.
Porém, a permanência desta categoria no instrumentário
punitivo do Estado ao nível infra-constitucional não implica o reconhecimento da
sua identidade perante a ordem axiológico-constitucional com o ilícito criminal
e suas consequências jurídicas. Mesmo admitindo que as contravenções se
mantiveram legalmente, desde a reforma penal de 1982 até à sua recente extinção,
como constituindo uma espécie dentro do género das infracções formalmente
incluídas no direito penal, na tradicional classificação bipartida do Código
Penal de 1886, essa etiqueta não lhes comunica automaticamente todas as
consequências ou todas as normas e princípios da chamada “Constituição
criminal”. O que releva para responder à questão de constitucionalidade colocada
não é o reconhecimento de que se trata, no plano do direito infra‑constitucional
ou dogmático de uma categoria penal, mas o relacionamento de um e outro ilícito
e respectiva sanção com a ordem jurídico-constitucional.
8. Na verdade, até à revisão de 1982, o texto constitucional somente fazia
referência à “lei criminal” e aos “crimes” [cf., a título de exemplo, os artigos
29.º, 30.º, 32.º e 167.º, alínea e), na versão originária], omitindo qualquer
referência às contravenções. A partir daquela revisão, a Constituição passou
referir o ilícito criminal e o ilícito de mera ordenação social, mas continuou a
silenciar a existência do ilícito contravencional [cfr. artigo 168.º, n.º 1,
alíneas c) e d) da versão de 1982; artigo 32.º, n.º 8 da versão de 1989; e
artigos 32.º, n.º 10 e 165.º, n.º 1, alínea c) e d), na actual redacção]. E,
quanto ao ilícito de mera ordenação social, a Constituição apenas diz
expressamente que “nos processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido
os direitos de audiência e de defesa” e que é da competência reservada da
Assembleia da República “legislar sobre o regime geral dos actos ilícitos de
mera ordenação social”.
Perante esta evolução do texto constitucional, o Tribunal passou a considerar
que, ao contrapor o ilícito criminal ao ilícito de mera ordenação social,
omitindo toda a referência à figura das contravenções – que, embora com
reservas doutrinárias (cfr. p. ex., eduardo correia, Direito Criminal, I, pág.
22; figueiredo dias, O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, 3ª
ed.., pág. 405) até ao Código Penal de 1982 era tradicionalmente considerada
como uma espécie dentro do género das infracções penais –, a Constituição deixa
entender, claramente, que ela desapareceu como tipo sancionatório autónomo –
para efeitos de relevância constitucional específica, entenda‑se –, pelo que as
contravenções que subsistissem (ou que fossem ex novo criadas) tinham de ser
tratadas de acordo com a natureza que no caso tivessem: criminal ou de mera
ordenação social.
Nesta linha, ainda recentemente, disse o Tribunal no acórdão
n.º 230/2006, www.tribunalconstitucional.pt, retomando o que dissera no acórdão
n.º 61/99 (Diário da República, II Série, de 31 de Março de 1999):
“3.1. Efectivamente, haverá, em primeira linha, que acentuar que,
independentemente da questão de saber se, após a Revisão Constitucional operada
pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, é possível a criação, ex
novo, de contravenções, o que é certo é que a norma em apreço veio instituir (e
para se utilizarem algumas das palavras do artº 3º do Código Penal de 1886) a
previsão de um comportamento consubstanciado na prática de um 'facto voluntário'
'punível' (in casu tão só com uma pena pecuniária) e que 'consiste unicamente na
violação ou na falta de observância das disposições preventivas das leis e
regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica' (cfr., sobre o
conceito de contravenção, Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 218 a 221, e
Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, ed. da A.A.F.D.L., I, 168).
De outro lado, atento o momento temporal em que a norma em apreço foi editada
(1992), a sanção pecuniária nela prevista não podia ser convertível em prisão,
por se ter de haver por revogado, pela entrada em vigor do Código Penal aprovado
pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, o artº 123º do Código Penal
aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886 (cfr., quanto a este último
aspecto, por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal números 188/87 e 308/94,
publicados na 2ª Série do Diário da República de, respectivamente, 5 de Agosto
de 1987 e 29 de Agosto de 1994).
Ora, torna-se inquestionável que o comportamento em causa (o não pagamento da
«taxa» de portagem devida pela utilização das auto-estradas) não pode ter uma
ressonância ética tal que o haja de o qualificar como um crime; e, se se
ponderar que esse comportamento foi, já em 1992, tido como integrando um ilícito
passível de ser publicamente sancionado com uma pena meramente pecuniária, então
(tal como se disse no referido Acórdão nº 308/94, embora a propósito de outra
norma) há-de concluir-se que 'o tratamento que lhe deve ser conferido há-de ser
o correspondente às contra-ordenações, para as quais a Constituição não exige a
prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar'.
[…]
3.1.2. E, a este propósito, convém respigar alguns passos que se podem ler no
citado Acórdão nº 308/94.
Assim, disse-se nesse aresto, a propósito da questão de saber se era possível,
no caso ali apreciado, a criação de um novo tipo contravencional:
'(...)
Ou seja: o Governo poderia criar aqui esta nova infracção contravencional, uma
vez que não lhe corresponde sanção restritiva de liberdade, isto a admitir que a
figura das contravenções ainda tem cobertura constitucional (…)
Tradicionalmente, quer a definição de cada concreto ilícito contravencional,
quer a fixação da respectiva pena, sempre puderam ser efectuadas por
regulamento, inclusivamente por regulamentos locais, como expressamente
resultava do preceituado no artigo 486º do velho Código Penal de 1886. E o mesmo
entendimento se manteve na generalidade da doutrina e na jurisprudência, após a
entrada em vigor da Constituição de 1976.
Com a revisão constitucional de 1982, suscitou-se o problema de saber qual o
destino, em geral, da figura das contravenções. A este propósito, escrevem J.
J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3ª ed., anotação X ao artigo 168º, pág. 673):
Ao referir o ilícito de mera ordenação social, omitindo toda a referência à
figura das contravenções (que era tradicional no direito português até ao
Código Penal de 1982), a Constituição deixa entender claramente que ela
desapareceu como tipo sancionatório autónomo, pelo que as contravenções que
subsistirem (ou que forem ex novo criadas) têm de ser tratadas de acordo com a
natureza que no caso tiverem (criminal ou de mera ordenação social).
Ora, dúvidas não restam que, no caso vertente, não deparamos com uma infracção
com a ressonância ética suficiente para poder ser qualificada como de natureza
criminal. E, assim sendo, e também porque lhe não corresponde qualquer sanção
privativa ou restritiva da liberdade, o tratamento que lhe deve ser conferido
há-de ser o correspondente às contra‑ordenações […]'.
Não se ignora que o Tribunal tem desenvolvido este tipo de considerações a
propósito de verificação de constitucionalidade de aspectos formais ou de
competência legislativa relativa a contravenções e que não é uma questão desta
natureza que agora temos para apreciação. Todavia, ainda recentemente, no
acórdão n.º 221/2007 (Plenário), em que estava em causa um problema de sucessão
de ilícitos contravencionais e contra-ordenacionais, reafirmou esta mesma ideia
e lembrou que, “para alcançar tal conclusão, o Tribunal assumiu ser decisivo
tratar-se de infracções que correspondem a um comportamento – 'o não pagamento
da taxa de portagem devida pela utilização das auto-estradas' – que 'não pode
ter uma ressonância ética tal que o haja de qualificar como crime' e para as
quais foi definida uma 'pena meramente pecuniária', insusceptível de ser
convertida em prisão”.
Daqui se retira que a apreciação das questões de
constitucionalidade colocadas pelo ilícito contravencional não pode fazer-se por
mera transposição das ponderações efectuadas a propósito de questões semelhantes
no domínio do ilícito e das penas criminais, argumentando a partir de uma
pressuposta identidade de género entre os dois tipos de ilícito que –
independentemente do critério que se perfilhe, face ao direito positivo
infra‑constitucional ou no plano doutrinário, de distinção entre crimes e
contravenções ou de separação entre o 'ilícito penal administrativo” e o
“ilícito penal de justiça' –, a Constituição não acolhe.
9. Por outro lado, o facto de o legislador ter mantido o
processamento e julgamento desse tipo de ilícito – face ao texto constitucional,
desse tertium genus de ilícito – subordinado a um regime de processo penal
simplificado, de natureza judicial e não administrativa (cfr. Decreto-Lei n.º
17/91, de 10 de Janeiro), nada permite inferir sobre a natureza do ilícito e da
sanção que necessariamente se projecte no modo como o seu regime substantivo se
relaciona com os referidos princípios constitucionais. A qualidade do órgão que
pronuncia a sanção nada lhe comunica no plano dos seus efeitos na esfera
jurídica do sujeito a que é aplicada. A judicialização da apreciação da
infracção com observância dos quadros formais do processo penal decorre da
preocupação de assegurar as garantias do arguido, não da preocupação de conferir
ao ilícito apreciado ressonância ética, nem de projectar na comunidade ou de
fazer cumprir à sanção aplicada outro fim que não seja o de contra-motivo ou
advertência meramente social, que não exprime a censura ético-jurídica que vai
ligada à pronúncia das penas criminais. Que não é a solene advertência e o
“pathos” social purgativo próprios do julgamento e da sentença que se procura
obter torna-se, desde logo, evidente pelo facto de se permitir a oblação
voluntária.
Com efeito, a multa contravencional – quer o seu pagamento
seja voluntário, quer decorra de acatamento da sentença, quer resulte da
execução coerciva desta – traduz-se e esgota-se sempre numa sanção de natureza
exclusivamente pecuniária, insusceptível de ser convertida ou substituída por
pena privativa da liberdade (cf., quanto que este último aspecto, entre outros,
os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 188/87 e 308/94, publicados na II Série do
Diário da República de, respectivamente, 5 de Agosto de 1987 e 29 de Agosto de
1994). Não tem qualquer outra consequência que não seja a perda patrimonial que
é inerente ao seu cumprimento, esgotando-se os seus efeitos no mero desembolso
do montante pecuniário em que consiste, quer o agente se livre do procedimento
pela oblação voluntária (artigo 125.º, n.º 5, do Código Penal de 1886), quer o
deixe seguir até ao fim e a sanção lhe seja imposta pela decisão judicial
condenatória.
Assim, a designação multa não identifica esta sanção com a pena criminal com o
mesmo nome (o que é de gritante evidência aí onde vigore o “sistema dos
dias‑de‑multa”), com que tem em comum, apenas, o facto de se tratar de uma
sanção pecuniária. Substancialmente – (i) por poder ser paga voluntariamente,
extinguindo-se com isso o procedimento; (ii) por não ser passível de
substituição por pena privativa de liberdade; (iii) por corresponder a uma
infracção em que a sanção não se liga à personalidade ética do agente e à sua
atitude interna e, (iv) por não lhe estarem legal e socialmente ligados ou
atribuídos quaisquer efeitos estigmatizantes – identifica-se substancialmente
com a coima, denominação recuperada para servir ou funcionar como elemento do
critério formal de determinação do ilícito de mera ordenação social.
Deste modo, não pondo em dúvida que os princípios da proporcionalidade e da
igualdade e mesmo o princípio da culpa também vinculem o legislador na
configuração dos ilícitos contravencionais (como nos de contra-ordenação) e
respectivas sanções (cfr. acórdão n.º 547/2001, publicado no Diário da
República, II Série, de 15 de Julho) é diferente o limite que deles decorre para
a discricionariedade legislativa na definição do que o legislador pode assumir e
o que deve ser deixado ao juiz na determinação concreta da sanção.
Designadamente, não ocorre aqui colisão com nenhum dos preceitos constitucionais
em que se funda a afirmação de violação do princípio da culpa, que é o nuclear
na fundamentação da referida jurisprudência do Tribunal a propósito da
ilegitimidade constitucional de penas criminais fixas. Na verdade, não está em
causa minimamente o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º1) porque a multa
contravencional, diversamente da multa criminal, não tem prisão sucedânea. E só
de modo muito remoto – e nunca por causa da sua invariabilidade – uma sanção
estritamente pecuniária, num ilícito sem qualquer efeito jurídico
estigmatizante, pode contender com o princípio da dignidade da pessoa humana
(artigo 1.º), que é de onde o Tribunal tem deduzido o princípio da culpa na
'Constituição criminal'.
Como diz figueiredo dias, O Movimento da Discriminalização…,
pág. 29, a propósito da culpa na imputação das contra-ordenações, também perante
uma categoria de infracções, punidas “independentemente de toda a intenção
maléfica”, não se trata de uma culpa, como a jurídico-penal baseada numa censura
ética dirigida à pessoa do agente, à sua abstracta intenção, mas apenas de uma
imputação do acto à responsabilidade social do seu autor.
Assim entendido, o princípio da culpa pode ser pressuposto da
imposição da sanção (fundamento), mas não é um factor constitucionalmente
necessário da sua medida concreta (limite individual), não significando a
cominação de uma multa contravencional fixa, por si só, violação dos artigos 1.º
e 27.º, n.º 1, da Constituição.
10. Verifica-se que no domínio do direito de mera ordenação
social o Tribunal tem admitido a constitucionalidade de sanções pecuniárias
(coimas) fixas. É do que dá conta o acórdão n.º 74/95 (Diário da República, II
Série, 12 de Junho de 1995) quando, confrontado com a possibilidade de, na
situação aí apreciada, o jogo interpretativo conduzir a uma identificação entre
o máximo e o mínimo da moldura penal, afirma que 'a jurisprudência deste
Tribunal, plasmada nos Acórdãos nº 83/91 (Diário da República, II Série, de 30
de Agosto de 1991) e nº 441/93, tem sido a seguinte: [...] dos princípios
constitucionais da justiça, igualdade e proporcionalidade «não decorre
necessariamente, de forma directa ou indirecta, a ilegitimidade constitucional
de todas as chamadas penas fixas», não existindo assim um obstáculo
constitucional a uma sanção contra-ordenacional dessa natureza'.
Ora, para o confronto com os princípios constitucionais em causa, uma
contravenção punida, apenas, com multa não se diferencia de uma contra-ordenação
punida com coima, porque estas sanções significam exactamente o mesmo na esfera
jurídica do respectivo destinatário: apenas e só o sacrifício patrimonial. Neste
domínio, em que a punição não é baseada numa censura ética e em que prevalece a
função admonitória, é constitucionalmente suportável que a sanção seja
legalmente tarificada, reduzindo a intervenção mediadora do juiz na
individualização da sanção, em homenagem a exigências de prevenção geral e de
eficácia da dissuasão.
11. Reconhece-se que a estruturação dos sistemas punitivos de
modo a permitir à entidade decisora – em último termo, ao juiz – a
individualização da sanção, mesmo daquela que só tenha expressão pecuniária, de
modo a levar em conta as especificidades de cada caso, o grau de ilicitude e de
culpa e a situação pessoal do agente, se apresenta como a que realiza de modo
mais intenso os princípios da igualdade e da proporcionalidade. Mas as
exigências destes princípios são ainda respeitadas quando, pela natureza do
ilícito sancionado e pela medida da sanção pecuniária fixa prevista, esta última
apareça como razoavelmente proporcionada relativamente à gama de comportamentos
susceptíveis de recondução ao concreto tipo de ilícito.
Na verdade, não se vê que constitua entorse intolerável dos princípios
constitucionais da igualdade e proporcionalidade que o legislador ordinário,
colocado perante a possibilidade de verificação de infracções contravencionais
(ou contra‑ordenacionais) em massa, decorrente da opção legislativa de punir a
esse título, com penas meramente pecuniárias sem quaisquer efeitos pessoais,
comportamentos violadores de simples regras de conduta ou de observância da
ordenação social ou de colaboração com o Estado não possa conferir maior relevo
às exigências postuladas pelo princípio da legalidade em detrimento do sentido
apontado pelo princípio da culpa e, nesse seu juízo, proceder a uma maior
concretização das sanções aplicáveis, afrouxando a necessidade da intervenção do
juiz no apuramento efectivo do montante da sanção a aplicar.
É certo que, embora não seja rigorosamente fixa, a sanção prevista coloca na
mesma posição os infractores que utilizem, sem título válido, o transporte
durante um mesmo percurso, com insensibilidade à situação económica do
infractor, ou ainda todos aqueles em que o valor de 50% do preço do respectivo
bilhete seja inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado.
Todavia, existem razões que podem sustentar, no plano constitucional, essa opção
legislativa de igualação sancionatória.
O fim que ela prossegue é o de desencorajar, pelo modo tido
como eficaz, a utilização dos transportes sem o pagamento da contraprestação
devida pela prestação do transporte e de, por essa via, procurar garantir, na
maior medida possível, a amortização dos custos do investimento e da prestação
do serviço. Ora, estes serviços de transporte são serviços de interesse geral,
porquanto satisfazem necessidades básicas dos cidadãos, que são prestados em
regime de concessão de serviço público e que estão sujeitos a princípios
específicos, como o da universalidade, ou do acesso do maior número possível de
pessoas, neste se incluindo a inadmissibilidade legal da possibilidade de
escolha do contraente e de recusa de contratar, possível relativamente a outros
bens.
Deve notar-se, por outro lado, que a prestação de serviços
deste tipo corresponde a um modo de o Estado se desincumbir da tarefa
fundamental cometida no art. 9.º, alínea d) da Constituição (“promover o bem
estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem
como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais…”).
Por estas razões, os preços relativos à prestação dos serviços de transporte
são, por via de regra, “preços normativos” e não preços estabelecidos por acordo
das partes ou segundo mecanismos de livre funcionamento do mercado, em cuja
determinação intervêm, de modo relevante, factores normativos e ponderações
“políticas”, normalmente, em patamares que se situam abaixo do que resultaria
daquele mercado. Neste enquadramento publicístico, demandando a actividade de
prestação de tais bens avultados investimentos, não poderá, correspondentemente,
o legislador deixar de adoptar instrumentos que garantam, eficazmente, o
pagamento dos preços devidos.
Ora, se os preços são fixados em função de um paradigma
económico que procura colocar todos os consumidores no mesmo plano, quanto à
possibilidade de poder aceder a tais bens, dentro de uma óptica de igualdade de
oportunidades, não se vê que o legislador, optando pela conformação de um
ilícito contravencional (ou contra-ordenacional) perspectivado para conferir
eficácia ao dever do seu pagamento/cobrança, não possa, por decorrência desses
mesmos princípios, estabelecer um padrão de pena igual para todos aqueles que o
violem, desde que ele se situe dentro de valores que não sejam desadequados, e
exista uma infracção a punir.
A sanção fixa corresponderá, deste modo, a uma transposição
para o campo sancionatório dos mesmos critérios a que obedece, precisamente, o
estabelecimento dos preços normativos e a conformação do dever do seu
pagamento/cobrança, maxime, dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.
Reprime-se, afinal, um comportamento que tira vantagem da
massificação da prestação do serviço e em que a eventual diversidade das
motivações individuais é pouco significativa no que revela de atitude perante a
ordenação do comportamento social que se quer assegurar e é indiferente no plano
das consequências desse comportamento para o regular funcionamento do sistema de
transportes colectivo de passageiros. Por outro lado, a multa não graduável é
determinada por um método de cálculo que ainda reflecte a gravidade concreta da
infracção e que, em qualquer caso, privilegiando claramente a finalidade
dissuasora, não parece afastar-se de montantes razoavelmente suportáveis pelo
comum das pessoas. A evolução legislativa mostra, aliás, que, tendo agora optado
pelo sistema de sanções pecuniárias susceptíveis de graduação, o legislador
fixou o limite mínimo da coima a um nível que grosso modo corresponde à multa de
montante fixo anteriormente cominada.
12. Acresce que o juízo sobre essa necessidade de intervenção judicial
individualizadora não pode abstrair do montante da sanção legalmente prevista,
não sendo indiferente que esteja em causa uma sanção pecuniária de montante
elevadíssimo ou, pelo contrário, uma quantia acessível ao comum das pessoas, em
que haverá um claro desfasamento entre o investimento na recolha séria de
elementos para essa tarefa diferenciadora e a sua expressão prática, o que
também é lícito ao legislador levar em conta, numa afectação racional de meios.
Ora, neste aspecto, o montante da multa fixa agora em exame pode objectivamente
considerar-se moderado, em termos de valores absolutos, porque o tipo de
cobrança a que o infractor se furta é característico de carreiras com percursos
urbanos ou de periferia, em que o mínimo cobrável, correspondendo a trajectos
curtos, é necessariamente baixo. O que, aliás, é patente no caso, em que estava
em causa uma multa de €144,40 (1,44 x 100) e bem justifica que se questione a
razoabilidade da averiguação judicial sistemática das circunstâncias que
poderiam relevar na individualização e graduação da sanção, averiguação que
poderia implicar um esforço da máquina judiciária em detrimento de questões mais
relevantes, ou, pelo seu carácter rotineiro, conduzir a situações de injustiça
relativa.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão
recorrido.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Junho de 2007
Vítor Gomes
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha (vencido de acordo com a declaração de
voto da Exma. Conselheira Maria João Antunes)
Maria João Antunes (vencida nos termos da declaração de voto junto)
Mário José de Araújo Torres (vencido pelas razões constantes da
declaração de voto da Exma. Conselheira Maria João Antunes)
Maria Lúcia Amaral (vencido pelas razões constantes da declaração
de voto da Exma. Sra. Conselheira Maria João Antunes)
Rui Manuel Moura Ramos (vencido, pelas razões constantes da
declaração de voto da Exma. Senhora Conselheira Maria João Antunes)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida, acompanhando a fundamentação dos Acórdãos do Tribunal
Constitucional n.ºs 579/2006, 679/2006 e 5/2007 (disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt), por entender que a alínea a) do n.º 2 do artigo
3.º do Decreto-Lei n.º 108/78, de 24 de Maio, viola os princípios
constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, quando sanciona o
comportamento aí descrito com uma multa de montante fixo.
Dada a natureza contravencional da infracção – infracção que se inscreve no
âmbito do direito penal (criminal) substantivo e adjectivo e não no âmbito do
direito administrativo –, a sanção que lhe corresponde é de natureza penal
(criminal). Não está, por isso, subtraída à proibição constitucional de penas
fixas – resultante dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade – que, de forma reiterada, tem fundamentado julgamentos de
inconstitucionalidade de normas que prevêem este tipo de penas (cf. Acórdãos
n.ºs 202/2000, 203/2000, 95/2001, 70/2002, 485/2002 e 124/2004, disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
A circunstância de se tratar de uma pena de multa, de uma sanção patrimonial, em
nada justifica que esta sanção penal (criminal) seja subtraída à proibição
constitucional de penas fixas: a pena de multa é uma pena criminal autêntica,
sem qualquer subordinação político-criminal à pena de prisão (cf. Figueiredo
Dias, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime,
Aequitas/Editorial de Notícias, 1993, p. 118 e ss.). Pelo contrário, a natureza
patrimonial da sanção faz com que a previsão de uma pena fixa ofenda o princípio
da igualdade também por “prejudicar o agente de mais fraca situação
económico-financeira por absoluta incapacidade para a tomar em conta no momento
da determinação concreta” da sanção (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., p. 125.).
Apesar de a pena de multa que sanciona um comportamento contravencional ter
natureza exclusivamente pecuniária, por ser insusceptível de ser convertida em
pena privativa da liberdade, à semelhança do que sucede com a coima, tal não
legitima que se identifique a primeira com a segunda. Se, por um lado, também a
pena de multa que sanciona, a título principal, a prática de um crime é
insusceptível de ser convertida em pena privativa da liberdade, à luz do que
dispõe o artigo 49º do Código Penal; por outro lado, a coima, sanção do direito
de mera ordenação social, diferencia-se claramente, “na sua essência e nas suas
finalidades, da pena criminal” (Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral.
Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, Tomo I, Coimbra Editora, 2004,
p. 154). Sem que isso implique, necessariamente, a legitimidade constitucional
de coimas fixas – questão que não cabe apreciar e decidir nos presentes autos,
dada a já assinalada natureza penal (criminal) da multa fixa em causa.
A natureza penal das contravenções, por seu turno, é compatível com a
consagração de regras privativas desta categoria penal, por comparação com as
previstas para os crimes (cf., por exemplo, artigos 4.º, 25.º, 33.º, 125.º, n.º
5, e 486.º, § único, do Código Penal de 1886 e, sobre isto, Eduardo Correia,
Direito Criminal I, Almedina, p. 221 e ss.). Regras privativas que podem mesmo
abranger o âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia
da República, prevista no artigo 165.º, n.º 1, da Constituição (no sentido de
esta reserva abranger apenas o regime geral de punição das contravenções e o
respectivo processo cf., entre outros, Acórdãos n.ºs 230/2006 e 419/2006,
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Argumentos como os utilizados no ponto 11. e, em geral, os que se referem à
falta de “ressonância ética” da infracção em causa são relevantes apenas para o
efeito de saber se a intervenção penal é legítima, do ponto de vista
jurídico-constitucional, quando o comportamento do agente se traduza em utilizar
transportes colectivos de passageiros sem título de transporte válido (artigo
2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 108/78). Questão que extravasa o objecto do
presente recurso de constitucionalidade.
Maria João Antunes