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Processo n.º 496/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. apresentou reclamação para a
conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), contra a decisão sumária do relator, de 7 de Maio de
2007, que decidiu, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito
(por se tratar de questão simples, uma vez que já fora objecto de anteriores
decisões do Tribunal Constitucional), “não julga[r] inconstitucional a norma do
n.º 1 do artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela
Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (RGIT), que determina que a suspensão da execução
da pena de prisão aplicada seja condicionada à imposição do pagamento, em
prazo a fixar, das quantias em dívida e acréscimos legais”, e,
consequentemente, negou provimento ao recurso interposto pelo ora reclamante,
confirmando a decisão recorrida (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16
de Janeiro de 2007), na parte impugnada.
1.1. A referida reclamação apresenta a
seguinte fundamentação:
“DA NULIDADE DA DOUTA DECISÃO SUMÁRIA
1. Já depois de interposto o presente recurso, requereu o ora
recorrente, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, que fosse declarado extinto
o presente procedimento criminal por entender que a sua conduta foi
descriminalizada por força da alteração da redacção do artigo 105.º, n.º 4, do
RGIT operada pela Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro.
2. O referido Tribunal da Relação decidiu não apreciar o
mencionado requerimento por considerado esgotado o seu poder jurisdicional.
3. A questão da descriminalização ou, pelo menos, da alteração
do enquadramento legal da conduta imputada ao recorrente é, no entanto, de
conhecimento oficioso e pode ser apreciada em qualquer fase do processo (como
resulta quer do n.º 2, quer no do n.º 4, do artigo 2.º do Código Penal), pelo
que a mesma deveria ter sido objecto de apreciação pelo Venerando Tribunal
Constitucional.
4. A omissão do conhecimento de tal questão constitui, assim,
nulidade, nos termos do disposto nos artigos 668.º, n.º 1, alínea d), e 716.º,
n.º 1, do CPC, ex vi artigo 69.° da LTC, o que se argui para todos os efeitos
legais.
5. Tal nulidade deve ser declarada e sanada mediante o
conhecimento da questão da descriminalização da conduta imputada ao recorrente
suscitada no requerimento por este apresentado em 6 de Fevereiro de 2007.
Sem prejuízo do que antecede, ainda se dirá o seguinte:
DA IMPOSSIBILIDADE OU INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
6. O douto acórdão recorrido foi proferido pelo Tribunal da
Relação de Lisboa na sequência de douto acórdão proferido pelo Supremo Tribunal
de Justiça que julgara aquele Tribunal o competente para apreciar os recursos
interpostos pelo arguido e pelo Ministério Público do douto acórdão proferido
pela 2.ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Loures.
7. Sucede, porém, que, na sequência de recurso extraordinário
para fixação de jurisprudência interposto do aludido acórdão do STJ, foi fixada
jurisprudência no sentido de ser o STJ o tribunal competente para conhecer dos
acórdãos finais proferidos pelo Tribunal Colectivo que visem exclusivamente o
reexame de matéria de direito e, em consequência, foi determinado que os
recursos interpostos pelo ora recorrente e pelo Ministério Público da decisão da
primeira instância sejam apreciados e decididos pelo STJ (cf. cópia do Acórdão
para fixação de jurisprudência que se junta como Doc. n.º 1).
8. Deste modo, enfermam de nulidade ou ineficácia quer o douto
Acórdão recorrido do Relação de Lisboa, quer os termos posteriores ao mesmo,
pelo que deverá ordenar‑se o arquivamento dos presentes autos de recurso, por
impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
À cautela, para o caso de assim não se entender, ainda se dirá
o seguinte:
DA NORMA DO ARTIGO 14.º, N.º 1, DO RGIT, DESIGNADAMENTE
QUANDO INTERPRETADO NO SENTIDO DE QUE EXIGE O PAGAMENTO DA INTEGRALIDADE DAS
PRESTAÇÕES CORRESPONDENTES À TOTALIDADE DAS CONDUTAS QUE INTEGRAM A CONTINUAÇÃO
9. Salvo o devido respeito, afigura-se que a douto Decisão
Sumária de que se reclama não fez correcta interpretação dos princípios
constitucionais aplicáveis, designadamente no atinente à norma extraída do
artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, quando interpretado no sentido de que exige, para
suspensão da execução da pena, a imposição da condição do pagamento da
totalidade das prestações tributárias ou contribuições nos casos em que o
arguido é condenado pela prática de um crime continuado e o valor global das
prestações tributárias em falta é superior ao do valor da que corresponde à
conduta mais grave que integra a continuação.
10. A jurisprudência citada na referida douta Decisão Sumária,
por um lado, não defende os princípios constitucionais cuja violação motivou a
interposição do presente recurso e, por outro lado, não se refere
expressamente, nem se afigura aplicável, à norma extraído do referido artigo,
segundo o qual, em caso de crime continuado, a suspensão da execução da pena
deve ficar dependente do pagamento da totalidade do imposto ou do contribuição
correspondente à continuação criminosa.
11. Com efeito, afigura‑se que a doutrina mais conforme aos
princípios constitucionais de Direito Criminal e aplicável, mutatis mutandis, ao
caso em apreço é aquela que se retira do douto voto de vencido da Veneranda
Conselheira Maria Fernanda Palma constante do douto Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 376/2003, proferido no âmbito do Proc. n.º 3/2003 da 2.ª
Secção; que, com a devida vénia, se reproduz:
«(…)
A subordinação obrigatória do suspensão da execução da pena de
prisão à exigência do pagamento do montante em dívida, na medido em que
pressupõe o alheamento de uma qualquer ponderação da personalidade do agente,
das suas condições de vida, da sua capacidade económica, da sua conduta anterior
e posterior ao crime, da avaliação da culpa e da ilicitude e das necessidades
concretas de ressocialização e de prevenção, é estranho à justificação e à
finalidade constitucionalmente relevantes das penas.
Tal regime consubstancia um desvirtuamento dos meios penais e
uma instrumentalização do sistema punitivo pela recuperação de dívidas fiscais.
Ora, para a cobrança de impostos a Administração Fiscal deve dispor de meios
executivos próprios, adequados e eficazes. Em termos penais, a ausência de
pagamento e de cobrança, neste estádio, só pode relevar na medida em que exprima
uma atitude hostil ou indiferente aos bens jurídicos, mas não se, por exemplo,
resultar de uma situação de carência económica. As normas dos n.ºs 6 e 7 do
artigo 11.º do Regime Geral das Infracções Fiscais não Aduaneiras, na medida em
que subordinam obrigatoriamente ao pagamento da dívida em causa a suspensão da
execução da pena de prisão aplicada pela prática de crime fiscal, são
inconstitucionais, por violação dos princípios da igualdade, da necessidade e
da proporcionalidade da pena consagrados nos artigos 13.° e 18.°, n.º 2, da
Constituição, respectivamente.»
12. Pelas razões ali aduzidas, as quais merecem o nosso
inteiro aplauso, a norma do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT deve ser julgada
inconstitucional.
13. Apenas salientaremos que se afigura manifesta a violação
do princípio da proporcionalidade, se atentarmos na circunstância de
co‑arguidos condenados pela prática, em comparticipação, do mesmo facto em
penas de prisão de duração muito diferentes, designadamente por ser diferente a
sua culpa, terem de estar sujeitos à mesma condição de suspensão da execução da
pena.
14. Violando‑se, assim, o princípio da culpa, designadamente
na sua vertente de nulla poena sine culpa, que se deduz da dignidade da pessoa
humana (artigo 1.º da CRP) e do direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1, da CRP)
e que implica que não há pena sem culpa, nem medida do pena que exceda a da
culpa (José de Sousa Brito, in Estudos sobre a Constituição, 2.º vol, Lisboa.
1978).
15. Sendo, ainda, manifesta a violação dos princípios da
igualdade e da proporcionalidade, porquanto ficarão sujeitos à mesma condição de
natureza pecuniária arguidos que possuem situações económicas muito diferentes,
de tal modo que, na mesma situação jurídico‑penal‑tributária, uns poderão ficar
com o seu património absolutamente exaurido, enquanto que o de outros poderá ser
afectado apenas em termos superficiais.
16. Acresce que, existindo meios processuais próprios
destinados a obter a cobrança dos créditos tributários (designadamente o
processo de execução fiscal), com princípios distintos e aplicados por
jurisdição diferente do dos tribunais comuns, não se vislumbra necessário, nem
justo, socorrer-se em todas as circunstâncias da ameaça penal para obter o
pagamento dos tributos.
17. Veja‑se, por exemplo, que, por força dessa ameaça penal,
se estará inclusivamente a criar a obrigação de pagar os tributos a quem não é,
nem poderá ser, de acordo com as normas tributárias de incidência subjectiva,
devedor dos mesmos (por exemplo, cúmplices do sujeito passivo do imposto).
18. Daí que seja também violado o princípio da necessidade ou
da máxima restrição da pena e das medidas de segurança (artigo 18.º, n.ºs 2 e
3), que está ligado ao princípio da jurisdicionalidade da aplicação do direito
penal, como garantia da máxima objectividade e do mínimo abuso (artigos 27.º,
n.º 2, 23.º, n.º 4, e 30.º, n.º 2, da CRP), uma vez que a imposição do referida
condição não se afigura, em todas os situações, necessária à paz e conservação
sociais, isto é, à própria defesa dos direitos, liberdades e garantias em geral
que são a base do Estado (José de Sousa Brito, ob. cit.).
19. Violando, ainda, aquela norma o princípio da humanidade
que emerge da dignidade da pessoa humana e que preside ao regime jurídico da
execução da pena e da recuperação do criminoso e sua reintegração na sociedade
(José de Sousa Brito, ob. cit.), uma vez que permite a aplicação de uma medida
que, fixada automaticamente, sem ponderação jurisdicional, poderá retirar
quaisquer possibilidades reais de vida digna ao arguido e, concomitantemente,
de reinserção social.
20. Destarte, a suspensão da execução da pena não pode ficar
dependente do pagamento da totalidade das prestações tributárias não entregues.
21. Sem conceder, mesmo que se entenda que o artigo 14.º, n.º
1, do RGIT não é inconstitucional em todos os sentidos que dele podem ser
extraídos, não deixará de ser inconstitucional o norma dele retirada pelo douto
acórdão recorrido no que diz respeito aos crimes continuados.
22. Com efeito, do douto acórdão recorrido resulta que a
Relação interpretou a norma do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT no sentido que,
havendo crime continuado, o valor da prestação tributária e acréscimos legais, a
cujo pagamento ficou condicionada a suspensão do execução da pena aplicada, é o
que corresponde a todo a continuação criminosa e não o montante correspondente à
conduta mais grave integradora daquela continuação.
23. Ora, tal interpretação afigura-se manifestamente
inconstitucional.
24. Com efeito, contra ela militam todas as razões já aduzidas
quanto à inconstitucionalidade daquela disposição legal em todos os seus
sentidos possíveis, mas acrescidas na sua intensidade.
25. A desproporcionalidade da condição de suspensão é
certamente maior ou, pelo menos, mais evidente se se atentar na circunstância de
a lei estatuir que o crime continuado é punido com a pena aplicável à conduta
mais grave (artigo 79.º do Código Penal) e não, no que se refere à pena máxima
abstractamente aplicável, com a soma das penas concretamente aplicáveis, como
sucede nos casos de concursos de crimes (artigo 77.º, n.º 2, do mesmo Código).
26. Isto é, nos casos de crime continuado, é o critério do
próprio legislador que limita a medida da pena.
27. Pelo que se, para o legislador, a medida da pena de multa
ou de prisão aplicável é a que corresponde a uma só conduta, não se pode deixar
de considerar, de acordo com o princípio da unidade do sistema jurídico, a que
preside a Constituição, desnecessário e excessivo que a medida da condição de
suspensão seja a do montante global das prestações tributárias correspondentes a
todas as condutas que integram a continuação.
28. Assim, a norma segundo a qual a suspensão da execução da
pena aplicada a crime continuado depende automaticamente da condição do
pagamento das prestações tributárias correspondentes à totalidade dos condutas
integradoras do continuação é inconstitucional também por violação dos
princípios da necessidade e da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP).
29. Deste modo, no caso de não procederem as questões acima
suscitadas, deverá ser julgada inconstitucional a norma extraída do artigo
14.º, n.º 1, do RGIT, mormente quando se considere que esta impõe nos casos de
crime continuado o pagamento da totalidade do imposto ou contribuição
correspondente a todas as condutas que integram a continuação criminosa.”
1.2. Notificado da apresentação desta
reclamação, o representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional
apresentou a seguinte resposta:
“1.º – A arguição de nulidade da decisão sumária, proferida nos autos é
manifestamente improcedente, já que – como é óbvio – nunca seria da competência
deste Tribunal Constitucional proferir decisão sobre a invocada extinção do
procedimento criminal – matéria que se mostra, aliás, apreciada pela Relação a
p. 646, sendo óbvio que o ali decidido não «transfere» para este Tribunal a
competência para apreciar o requerimento do arguido.
2.º – Por outro lado – e quanto ao mérito da reclamação – é igualmente evidente
a sua improcedência, nada adiantando o reclamante que não tenha sido ponderado
na firme e reiterada corrente jurisprudencial formada sobre a norma questionada.
3.º – Finalmente – e quanto à invocada inutilidade superveniente do recurso,
face ao decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do
recurso de uniformização de jurisprudência, envolvendo a prolação de novo
Acórdão por tal Tribunal – afigura‑se que o Acórdão de pp. 711/726 poderá
efectivamente precludir o interesse processual no conhecimento da reclamação,
dada a eficácia do dito recurso extraordinário na subsistência da decisão,
proferida pela Relação, e objecto do presente recurso de fiscalização concreta.”
O recorrido Instituto de Solidariedade e de
Segurança Social não apresentou resposta.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Resulta dos autos que, por acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa, de 31 de Janeiro de 2006, foi determinada a
remessa do processo ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), por se entender que,
versando os recursos (do Ministério Público e do arguido A.) interpostos da
decisão do tribunal colectivo exclusivamente matéria de direito, era o STJ o
competente para deles conhecer.
Porém, por acórdão do STJ, de 20 de Abril de
2006, entendeu‑se, com um voto de vencido, que a competência para conhecer dos
recursos cabia à Relação, para onde os autos foram reenviados, na sequência do
que foi proferido o acórdão de 16 de Janeiro de 2007, do qual foi interposto o
presente recurso para o Tribunal Constitucional, decidido pela Decisão Sumária,
de 7 de Maio de 2007, ora reclamada.
Entretanto, o Ministério Público havia
interposto recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do referido
acórdão do STJ, de 20 de Abril de 2006, entretanto transitado em julgado,
tendo, por acórdão do plenário das Secções Criminais do STJ, de 14 de Março de
2007, sido concedido provimento ao recurso, fixando‑se a seguinte jurisprudência
“Do disposto nos artigos 427.º e 432.º, alínea d), do Código de Processo Penal,
este último na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, decorre que os
recursos dos acórdãos finais do tribunal colectivo, visando exclusivamente o
reexame da matéria de direito, devem ser interpostos directamente para o Supremo
Tribunal de Justiça”, revogando‑se o acórdão recorrido e, “em conformidade com
a jurisprudência ora fixada, determina‑se que os recursos interpostos por A. e
pelo Ministério Público, constantes no processo n.º 956/06‑5.ª Secção, sejam
apreciados e decididos por este Supremo Tribunal”.
O apenso onde foi proferido este acórdão de
uniformização de jurisprudência só deu entrada neste Tribunal em 21 de Maio de
2007, já após a prolação da Decisão Sumária ora reclamada.
Da revogação, pelo plenário das Secções
Criminais do STJ, do acórdão do STJ de 20 de Abril de 2006 e da decisão de o STJ
proceder ao julgamento dos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo
arguido contra a decisão condenatória do Tribunal Colectivo resulta que deixou
de subsistir o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16 de Janeiro de
2007 (proferido por força do agora revogado acórdão do STJ de 20 de Abril de
2006), e, consequentemente, tornou‑se supervenientemente impossível a apreciação
do recurso de constitucionalidade dele interposto, objecto da Decisão Sumária
ora reclamada.
Termos em que se decide julgar extinto, por
impossibilidade superveniente, o presente recurso, ficando prejudicado o
conhecimento da arguição de nulidade e da reclamação da Decisão Sumária.
Sem custas.
Lisboa, 19 de Junho de 2007.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos