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Processo n.º 338/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. No presente processo foi proferida a seguinte decisão (pelo
anterior relator, que entretanto cessou funções no Tribunal Constitucional,
tendo o processo sido redistribuído), ao abrigo do artigo 78.º-A da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro (LTC):
“1. Pelo 1º Juízo Liquidatário do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa
interpuseram A., Lda, B., C. e D. recurso contencioso de anulação do despacho
exarado em 11 de Julho de 2002 pela Vereadora do Pelouro do Licenciamento e
Reabilitação Urbana da Câmara Municipal de Lisboa, por via do qual foi declarada
a nulidade do acto de deferimento do pedido de licenciamento para realização de
determinada obra e ordenado o embargo dessa mesma obra.
Na resposta ao recurso, a entidade recorrida, invocando que, tendo-se verificado
que o despacho impugnado não estava devidamente fundamentado, veio o mesmo a ser
ratificado em 20 de Novembro de 2002, pelo que, em seu entender, a “renovação do
conteúdo decisório do acto sub judice, dotando-o, agora, da devida
fundamentação”, substituía aquele e determinava “a perda do objecto do presente
recurso”, tornando a instância “supervenientemente impossível”, pelo que os
autos deveriam “ser extintos, por impossibilidade superveniente da lide”.
Ouvidos sobre essa questão, vieram os recorrentes, em súmula, requerer a
alteração do pedido inicial formulado no recurso contencioso, de molde a incidir
ele sobre o despacho «ratificado» proferido em 20 de Novembro de 2002, o qual,
na sua óptica, enfermava dos mesmos vícios do acto «primário» de 11 de Julho de
2002, salvo no que toca ao vício de falta de fundamentação.
Por decisão proferida em 28 de Outubro de 2004 pela Juíza daquele 1º Juízo, foi
indeferida a pretensão de substituição do objecto do recurso e julgada extinta a
instância por impossibilidade superveniente da lide.
Do assim decidido recorreram os impugnantes para a Secção de Contencioso
Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo que, por acórdão de 14 de
Fevereiro de 2006, concedeu provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida
por sorte a ser admitida a substituição do objecto do recurso.
De tal acórdão recorreu, por oposição de julgados, para o Pleno da Secção de
Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, a Câmara
Municipal de Lisboa.
Os recorrentes contenciosos vieram apresentar resposta à alegação, na qual – no
que ora releva – disseram em dados passos, formulando a final, as seguintes
«conclusões»:
“(...)
Fazer extinguir uma instância ou uma lide que mantém todos os seus pressupostos
processuais e materiais válidos, e sendo esse o interesse dos ora recorridos, é
manifestamente uma violação do princípio da economia processual, bem como uma
violação dos princípios anti-formalista e pro actione, e dos princípios
constitucionais da tutela jurisdicional efectiva e de acesso ao direito.
(...)
Se a entidade administrativa pode unilateralmente substituir um acto
administrativo por outro, no decurso de um processo judicial, então, o
particular afectado por essa alteração, tem também de conseguir substituir o
objecto do processo pelo novo acto administrativo, desde que seja esse o seu
interesse e se mantenham válidos alguns dos fundamentos para declarar a
anulabilidade do novo acto administrativo. Ou seja, desde que se mantenha a
utilidade da lide.
Tem de haver igualdade de armas entre a administração e os administrados, sob
pena de se estar a postergar direitos fundamentais, em particular o direito a um
processo equitativo, previsto no art. 20º, nº 4, da Constituição da República.
(...)
Vale isto dizer que invocar o princípio da estabilidade da instância é
manifestamente esdrúxulo, senão mesmo uma alegoria jurídica, porque se pretende
justificar uma decisão com um princípio jurídico de processo civil que, na sua
esfera de competência jurisdicional própria, jamais afastaria os tribunais
cíveis de conhecer das restantes causas de pedir e do pedido.
Ou seja, com esta alegoria jurídica mantém-se nas trevas não somente a solução
propugnada pelo processo civil, se este imperasse, mas, outrossim, afasta[m ]-se
escandalosamente os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efectiva,
do direito a um processo equitativo e do direito a ter uma decisão em prazo
razoável.
(...)
Ao decretar-se a impossibilidade superveniente da lide, está a violar-se o
princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, o direito a um
processo célere, o direito a um processo equitativo, previstos nos arts 20º nºs
4 e 5, e 268º nº 4, da Constituição da República Portuguesa e ainda os
princípios da economia processual e da adequação formal, previstos no CPC.
Tem-se pois como certo que a interpretação correcta das normas em apreciação,
tem de ser feita com todos estes princípios e, consequentemente, ainda que se
entenda que a remissão do artº 147º do CPA não é extensível ao processo
judicial, o que não se concede, tem sempre de se admitir a interpretação
extensiva do nº 2 do artº 51º, da LPTA, à[o]s actos administrativos de
ratificação‑sanação, ou assim não se entendendo, tem de se aplicar a
possibilidade de alteração da causa de pedir, por substituição do objecto do
recurso contencioso, nos termos do artº 265º-A e 273º nº1, ambos do CPC.
CONCLUSÕES
1º
O despacho de ratificação-sanação proferido pela Entidade Recorrente substituiu
na ordem jurídica o acto ratificado, com efeitos retroactivos;
2º
O despacho de ratificação-sanação não expurgou todos os vícios do acto
ratificado, conforme alegado pelos recorridos;
3º
O despacho de ratificação-sanação continua a manter três dos vícios que podem
originar a sua anulabilidade;
4º
A presente lide continua a ser processualmente útil e possível;
5º
Ao aceitar-se a impossibilidade superveniente da lide e a extinção da instância
está-se a violar os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efectiva,
do direito a um processo judicial célere e o direito a um processo equitativo;
6º
Está-se igualmente a violar os princípios da economia processual e da adequação
formal do processo;
7º
Segundo o entendimento do Acórdão-fundamento, se o Código do Procedimento
Administrativo, no seu artº 137 nº 2, previsse uma remissão genérica para as
regras da revogação, era possível a substituição do objecto do presente
processo;
8º
No entanto, o Código do Procedimento Administrativo prevê, no seu artº 147º a
remissão das normas da revogação para a alteração e substituição dos actos
administrativos;
9º
A norma do artº 51º nº2, da LPTA, prevê a substituição do objecto do processo
quando ocorre a substituição de um acto administrativo;
10º
Com a ratificação-sanação efectuada pela ora Recorrente, ocorreu a substituição
do acto administrativo por um novo acto administrativo;
11º
Logo, é possível no presente processo a substituição do objecto da presente
lide, porquanto se mantem os fundamentos para se considerar igualmente o novo
acto administrativo anulável;
12º
A remissão do artº 147º; do CPA, também se aplica ao direito processual;
13º
O direito processual é um direito instrumental do direito material, tendo-se de
conformar com as suas regras, que se lhe aplicam por igualdade de razão ou por
força do principio da prevalências das normas materiais sobre as normas
processuais;
14º
O Direito é um todo, não sendo aceitável defender que o direito processual não
deve ter em consideração as normas de direito material.
15º
Em consequência, deve aplicar-se o nº 2 do artº 51, da LPTA, porque o legislador
sabiamente e por remissão do artº 147º; do CPA, permite uma aplicação imediata
da substituição do objecto do pedido.
NOUTRA PERSPECTIVA, MAS SEM CONCEDER, SEMPRE SE CONCLUI O
SEGUINTE:
16º
As normas excepcionais comportam interpretação extensiva, conforme previsto no
artº11ºdo Código Civil, e ao contrário do entendido pelo Tribunal ‘a quo’;
17º
As razões de facto e de direito que permitem concluir pela substituição do
objecto do recurso, na revogação-substituição de actos administrativos, são
exactamente as mesmas para a ratificação-sanação, a reforma e a conversão de
actos administrativos, desde que se mantenham válidos os fundamentos já
alegados, para a impugnação do novo acto administrativo;
18º
O artº 51º nº 2 da LPTA não é uma excepção ao princípio da estabilidade da
instância, mas uma emanação do princípio da economia processual, bem como dos
princípios constitucionais já acima referidos;
19º
É manifestamente inconstitucional e ‘contra legem’ a interpretação restritiva do
artº 51º nº 2 da LPTA, ao entender que a mesma não comporta ‘aplicação
extensiva’;
20º
Se a instância se mantém válida relativamente a todos os seus elementos
essenciais, e se o espírito da norma contida no artº 52º nº1, da LPTA, é
permitir que num processo iniciado se possa conhecer do mérito da causa, então,
tem de se admitir a continuação do presente processo, por interpretação
extensiva;
21º
A norma do artº 51º nº2, da LPTA, faz o seu enfoque na substituição do objecto
da lide, e não na revogação, pelo que o legislador quis manifestamente dizer
mais do que aquilo que estatuiu;
22º
Não é a revogação que permite a substituição do objecto da lide, mas sim a
substituição do acto administrativo anterior por um novo acto administrativo;
23º
A mera revogação do acto administrativo não é susceptível de substituição,
porque desaparecem os fundamentos para a sua anulabilidade;
24º
Qualquer interpretação das normas administrativas tem de ser feita ao abrigo dos
princípios anti formalista e pro actione;
25º
Em conformidade, a norma do artº 5º nº2, da LPTA, admite, por interpretação
extensiva, a sua aplicação ao pedido de substituição do presente processo,
porque se mant[ê]m válidos todos os pressupostos processuais e os fundamentos já
invocados. -
AINDA NOUTRA PERSPECTIVA, MAS TAMBÉM SEM CONCEDER:
26º
Se a norma do artº 51º nº2, da LPTA, não tem de todo aplicação ao pedido de
substituição do objecto da presente lide, então também não é forçoso concluir
que tenha aqui aplicação a norma do artº268º, primeira parte, do Código de
Processo Civil;
27º
O princípio da estabilidade da instância está hoje completamente postergado pelo
princípio da adequação formal do processo, constante do artº 265º-A, do CPC;
28º
O CPC permite expressamente que se altere a causa de pedir, mesmo na falta de
acordo das partes;
29º
Antes de se aplicar a primeira parte do artº 268º do CPC, tem de se buscar
solução processual para a alteração da causa de pedir, por força da previsão
contida na segunda parte do mesmo preceito legal;
30º
Acresce que, o princípio da estabilidade da instância não significa
imutabilidade da instância;
31º
Acresce que, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide obrigam a um
juízo de valor autónomo;
32º
Nos termos do artº 273º nº 1, segunda parte, e do nº 6, é possível pugnar e
decidir pela substituição do objecto da presente lide, porque não há alteração
da relação jurídica controvertida, ou seja, mant[ê]m-se os mesmos fundamentos e
o mesmo pedido para considerar o acto administrativo anulável;
33º
O novo acto administrativo encontra-se nos autos e está a produzir efeitos, pelo
que é possível conhecer dos seus vícios no presente processo;
34º
Neste momento os recorridos já não têm meio para impugnar o novo acto
administrativo, com os fundamentos constantes do presente recurso contencioso de
anulação;
35º
Só neste processo é possível que se conheça dos seus vícios e se garanta aos
recorridos que seja conhecido o mérito da causa;
37º
Assim não ocorrendo, os recorridos perdem, neste processo, a garantia
constitucional de acesso aos tribunais.”
O Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal
Administrativo, por acórdão de 23 de Janeiro de 2007, concedeu provimento ao
recurso interposto pela entidade recorrida, assim confirmando a sentença
proferida na 1ª instância que julgou extinta a instância por impossibilidade
superveniente da lide.
A esse aresto foi carreada a seguinte fundamentação: –
“(…)
2. O acórdão fundamento apresenta-se, neste contexto, como uma peça essencial
para nos colocar no centro da questão, enunciando, de forma muito clara, os seus
antecedentes legais, jurisprudenciais e doutrinais, e apresentando a solução
ínsita na LPTA como uma consequência lógica desses antecedentes. Por isso, e por
traduzir uma posição jurisprudencial firme deste STA, até este momento, vai
transcrever-se integralmente o segmento que aprecia a referida questão:
‘Aqui chegados, nada obsta então a resolver a questão de saber se o disposto no
n.º 2 do artigo 51.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovada
pelo Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, e que entrou em vigor em 1 de
Outubro de 1985 (cfr. artigo 136.º) é também aplicável aos casos em que tenha
havido ratificação do acto contenciosamente impugnado. Prescreve tal normativo:
‘Revogado por substituição, o acto recorrido, pode o recorrente substituir o
objecto do recurso quando pretenda impugnar o novo acto com os mesmos
fundamentos, desde, que o requeira antes da extinção do recurso, por decisão
transitada em julgado’. E, assim, claro que para efeitos deste preceito o
objecto do recurso contencioso é o acto impugnado. O princípio da estabilidade
da instância vem consagrado no artigo 268.º do Código do Processo Civil, que é
aplicável ao contencioso administrativo ex vi do artigo 1.º da Lei de Processo
nos Tribunais Administrativos. E ali se prescreve que, com a citação do
contra‑interessado, a instância se mantém, objectiva e subjectivamente, «salvas
as possibilidades de modificação consignadas na lei». Por isso, o n.º 2 do
artigo 51.0 da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos é norma de natureza
excepcional, permitindo a modificação da instância do recurso, quanto ao seu
objecto e pedido (este dirigido a novo acto), e, eventualmente, quanto ao
sujeito passivo, no caso de o acto revogatório por substituição ser praticado
por entidade diversa da autora do acto revogado. Na interpretação da lei, nos
termos do artigo 9.º do Código Civil, não pode ser considerado o sentido que não
tenha um mínimo de correspondência com ela, embora se devam ter em conta, para
além do elemento literal, o teleológico, para o que assumem relevância os
elementos sistemático e histórico. A ratificação ou ratificação-sanação é
normalmente definida como acto «pelo qual o órgão competente decide sanar um
acto inválido anteriormente praticado, suprindo a ilegalidade que o vicia» (cfr.
Marcello, Manual, vol. 1.º, 10. [a] ed., pág. 557; Sérvulo Correia, Noções de
Direito Administrativo, 1982, pág. 505; Freitas do Amaral, ob. cit., 1984-1985,
pág. 398). Trata-se de acto cujo objecto mediato é o acto ratificado, sendo seu
objecto imediato a sanação daquele anterior, suprindo a invalidade quando ela
seja sanável. A tal propósito ensina Marcello, ob. cit., pág. 556: ‘Se o acto
administrativo é anulável no decurso de certo prazo, a lei, seguindo o princípio
da economia dos actos jurídicos, permite que dentro desse prazo se remedeie o
vício que o afecta, de modo a salvar a sua vigência desde a data da respectiva
produção. Eis o fundamento da ratificação, da reforma e da conversão, que visam
confirmar ou substituir o acto inválido, harmonizando-o com a ordem jurídica’. E
a fls. 558: ‘Em princípio tem competência para ratificar quem a tenha para
revogar, pois quem pode destruir o acto poderá também, por uma regra de economia
jurídica, conservá-lo, reparando a invalidade, caso esta seja sanável. Por isso
a ratificação tem o mesmo regime da revogação quanto aos actos ratificáveis, à
sua oportunidade e à forma de ratificar’. E a fls. 560: ‘O efeito da
ratificação, da reforma e da conversão dos actos constitutivos ilegais retroagem
à data dos actos ratificados, reformados ou convertidos: é esta a importância de
tais institutos que assim permitem salvar os efeitos já produzidos.’ E Freitas
do Amaral, ob. cit., págs. 157, 397 e 398: ‘A ratificação-saneadora destina-se a
eliminar uma ilegalidade. A situação que tem como pressuposto é esta: há um
órgão que não é competente, nem sequer a título excepcional, para praticar um
acto, mas que o pratica; pratica-o com incompetência, há ilegalidade por invasão
da esfera de competência de outro órgão; mas o órgão competente, se concordar,
pode manifestar a sua concordância com tal acto, ratificando-o. Aqui a
ratificação é uma ratificação-sanação, na medida em que houve uma ilegalidade, e
é a ilegalidade que desaparece através dessa ratificação-saneadora. [...] Só que
estes actos - ratificação, reforma e conversão - configuram uma modificação do
acto anterior, e não já, como a revogação, uma forma de o extinguir. Todavia […]
o regime jurídico comum à ratificação, reforma e conversão é, no essencial,
decalcado sobre o regime jurídico da revogação anulatória. Acentue-se,
nomeadamente, que a ratificação, a reforma e a conversão de actos constitutivos
de direitos ilegais só são possíveis nos mesmos casos, e com os mesmos limites,
que a revogação desses actos. (1) «Vide o artigo 77.º da Lei das Autarquias
Locais e os artigos 83.º e 411.º do Código Administrativo.»
Hoje a ratificação, instituto que particularmente nos interessa no caso a
decidir, tem o seu regime estabelecido no artigo 137.º do Código do Procedimento
Administrativo, dele constando, nomeadamente, que:
1-...
2- São aplicáveis à ratificação, reforma e conversão dos actos administrativos
anuláveis as normas que regulam a competência para a revogação dos actos
inválidos e a sua tempestividade.
3- Em caso de incompetência, o poder de ratificar o acto cabe ao órgão
competente para a sua prática.
4- Desde que não tenha havido alteração ao regime legal, a ratificação, reforma
e conversão retroagem os seus efeitos à data dos actos a que respeitam.
Em anotação a tal preceito, dizem Freitas do Amaral e outros no (Código do
Procedimento Administrativo Anotado, 1992): Trata-se de prever os meios de sanar
a invalidade de acto anterior, modificando-o e aos respectivos efeitos
jurídicos. Note-se que ao invés do que sucede quanto à revogação de acto viciado
de incompetência, em que é competente o autor efectivo do acto, já para a
ratificação, reforma e conversão a competência é do órgão competente para a
prática do acto, porque se trata de regular novamente a situação pelo que só
quem detém poderes dispositivos sobre a matéria poderá actuar.
Paralelamente ao n.º 2 do artigo 51.º da Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos, este veio prescrever no seu artigo 48.0 da Lei de Processo nos
Tribunais Administrativos: ‘O acto ou facto que apenas faça cessar para o futuro
os efeitos de acto anterior não obsta à interposição ou prosseguimento do
recurso, para sentença anulatória, em relação aos efeitos produzidos. ‘Como se
disse no acórdão desta Secção de 27 de Janeiro de 1994, recurso n.º 29153, para
se compreender o sentido e alcance dos dois preceitos, importa ter em conta,
relativamente ao período anterior aos mesmos, alguns princípios e ensinamentos
doutrinais sobre a revogação de actos administrativos e posições doutrinais e
jurisprudenciais que eram defendidas quanto à repercussão da revogação na
instância do recurso contencioso que tem como objecto o acto revogado. Assim:
A revogação, como ensinam Marcello Caetano, Sérvulo Correia respectivamente,
Manual, vol. 1, 10.8 ed., reimpressão, pág. 531, Noções de Direito
Administrativo, pág. 471, é um acto administrativo secundário que tem por
objecto a destruição ou cessação para o futuro dos efeitos de acto
administrativo anterior. Quanto aos seus efeitos, a revogação é extintiva, com
efeitos ex nunc, quando o acto revogatório só produz efeitos para o futuro,
salvaguardando os efeitos entretanto produzidos pelo acto revogado; é
anulatória, com efeitos ex tunc, quando o acto revogatório produz efeitos a
partir da entrada em vigor do acto revogado, destruindo todos os efeitos de
direito produzidos ab initio pelo acto revogado. Esta última modalidade é típica
da revogação fundada na ilegalidade do acto revogado, «por não fazer sentido pôr
termo ao acto por ser ilegal e manter-lhe parte dos efeitos» - Sérvulo Correia,
ob. cit. pág. 477. E a revogação pode ser pura e simples, sem emissão de um
outro acto que contenha nova regulamentação da mesma situação concreta, ou com
uma regulamentação material desta, incompatível com a decorrente do acto
administrativo anterior, com substituição da regulamentação criada pelo acto
primário, por isso se falando em revogação por substituição. Antes da actual Lei
de Processo nos Tribunais Administrativos, a jurisprudência maioritária deste
Supremo Tribunal Administrativo (cfr. acórdão do pleno de 17 de Dezembro de
1980, Acórdãos Doutrinais, n.º 236, pág. 1058, desta Secção, de 19 de Fevereiro
de 1981, Acórdãos Doutrinais, n.º 236, pág. 704), na esteira do entendimento de
Robin de Andrade (A Revogação dos Actos Administrativos, pág. 383) era no
sentido de que a revogação do acto que era objecto de recurso contencioso
pendente (mesmo que fosse meramente extintiva) conduzia a extinção do recurso,
por impossibilidade superveniente da lide [por aplicação subsidiária dos artigos
287.º, alínea e), e 663.º, ambos do Código de Processo Civil] uma vez que, em
síntese, o recurso contencioso é dirigido contra um acto administrativo e este,
pelo facto da revogação, deixa de ser um acto juridicamente em vigor, daí
resultando a perda do objecto do recurso. Igual orientação era seguida para o
caso de caducidade do acto administrativo que era objecto de recurso contencioso
(cfr. citado acórdão do pleno da Secção de 17 de Dezembro de 1980). Tal posição
foi objecto de discordância (cfr. Afonso Queiró, Revista de Legislação e de
Jurisprudência, n.º 3694, pág. 23, em anotação ao citado acórdão de 19 de
Fevereiro de 1981, e Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, pág.
480, e voto de vencido do referido acórdão do pleno). E que, no entendimento
desses juristas, o primeiro dos quais invocou doutrina e jurisprudência francesa
e italiana, a anulação contenciosa tem efeitos retroactivos e o recorrente tem
direito à destruição pelo tribunal de todos os efeitos do acto impugnado e não
apenas à sua cessação para o futuro, sendo esta consequência a que decorre da
revogação ex nunc. Assim, mesmo quando ocorre revogação ex nunc, com a
impugnação contenciosa do acto administrativo, o recorrente pretendeu obter a
sua eliminação ex tunc e, por isso, «não se justifica que fique imune ao
controlo jurisdicional um acto que se mantém vivo e com eficácia no que respeita
ao período que medeia entre a sua prática e a sua revogação».
O regime inovatório constante dos artigos 48.º e 51.º, n.º 2, da Lei de Processo
nos Tribunais Administrativos não é estranho a tais posições doutrinais e
jurisprudencial. Traduz uma solução de equilíbrio entre ambas as posições
antagónicas. De um lado, dando em parte razão às críticas que a doutrina
dirigida à citada orientação jurisprudencial, consagrou-a no artigo 48.º da Lei
de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável designadamente aos casos de
revogação ex nunc, e de caducidade do acto contenciosamente impugnado (cfr.
Contencioso Administrativo de Artur Maurício, Dimas de Lacerda e Simões Redinha,
em anotação a esse artigo, e acórdão desta Secção de 2 de Julho de 1987, Boletim
do Ministério da Justiça, n.º 369, pág. 426). Mas, como resulta de tal preceito,
o prosseguimento do recurso para sentença anulatória (decisão de fundo), nos
casos ai previstos, é restringido aos efeitos produzidos pelos actos impugnados.
Por outro lado, não deixou de considerar que sendo o recurso contencioso, salvo
disposição em contrário, de mera legalidade (artigo 6.º do Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais), tal significa que o seu objecto são as
ilegalidades imputadas ao acto. Sendo esse acto revogado por substituição,
deixou de estar vigente, os seus efeitos foram destruídos, ou suprimidos do
mundo do direito com eficácia ex tunc e isso implica necessariamente a perda
superveniente de objecto do recurso contencioso (por não serem concebíveis, com
existência autónoma as ilegalidades de que o acto era arguido), o que determina
a extinção do recurso.
No entanto, entendeu o legislador, unicamente por razões de economia processual
(cfr. acórdãos do pleno da Secção de 25 de Junho de 1991 e de 11 de Julho de
1991, recursos n.ºs 24032 e 26330), ser de facultar ao recorrente, caso esteja
interessado na impugnação do acta revogatório por substituição, que este possa
requerer nesse processo a substituição do seu objecto, passando o recurso a ter
como objecto o novo acto que o substituiu na ordem jurídica, ainda que sob a
condição de a nova impugnação não se afastar dos fundamentos anteriormente
invocados na impugnação do acta revogado e de essa pretensão ser feita antes de
se consolidar como caso decidido a extinção do recurso inicial pela referida
impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 287.º, alínea e), do
Código de Processo Civil, ex vi do artigo 1º da Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos. Trata-se de mera faculdade, porém, que o recorrente utilizará
ou não, segundo o que tenha por mais adequado à defesa do seu direito. Nada
obsta a que, na hipótese aí contemplada, o interessado, com observância dos
princípios reguladores da interposição do recurso contencioso, impugne em novo
processo o acta secundário, sejam ou não os fundamentos de que então se sirva os
mesmos do recurso inicial. Foi nesta conformidade, e em interpretação do n.º 2
do artigo 51.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, que se afirmou
no acórdão do pleno desta Secção de 7 de Novembro de 1991, recurso n.º 22655:
[…] o funcionamento do direito de substituição do objecto do recurso, nos termos
do disposto no artigo 51.º, n..º 2, da Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos, parte do pressuposto de que tal objecto seja integrado por acto
ou actos contenciosamente recorríveis e que o acto revogatório não só possua
eficácia destrutiva dos efeitos do primeiro, como disponha, ex novo, sobre a
mesma matéria, sem que tenha havido alteração dos pressupostos de facto e da
regulamentação jurídica na base das quais o primeiro acto fora tomado. Pois bem,
como vimos, os institutos da ratificação-sanação de actos administrativos, tal
como a reforma e conversão dos mesmos, já eram doutrinalmente tratados, entre
nós, nos termos acima estabelecidos. E este Tribunal, já então, havia decidido
(v.g. nos acórdãos de 19 de Janeiro de 1984 e de 10 de Janeiro de 1985, em,
respectivamente, nos recursos n.ºs 17549 e 15311) que a ratificação de acto
anterior e objecto de recurso contencioso implicava a extinção do recurso, por
impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 287.º, alínea e), do
Código de Processo Civil, porque, não obstante, tal acto não ter visado
«destruir os efeitos jurídicos do primitivo acto, mas apenas eliminar
irregularidades de que o mesmo enfermava» «para efeitos de prosseguimento do
recurso, o resultado é o mesmo, porque o acto ratificativo, como acto secundário
que é, faz desaparecer da ordem jurídica o acto ratificado visto não poderem
coexistir dois actos com o mesmo conteúdo». E tal entendimento foi mantido por
este Tribunal, após a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (cfr., entre
outros, acórdãos de 29 de Março de 1990, de 10 de Maio de 1990, de 2 de Dezembro
de 1993 e de 17 de Maio de 1994, respectivamente, recursos n.ºs 18 878, 24030,
31 500 e 33727).
Do exposto se pode concluir que: A ratificação-sanação é figura jurídica
distinta da revogação por substituição e não cabe minimamente na letra do n.º 2
do artigo 51.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos. Este normativo
foi pensado apenas para a revogação por substituição, e por opção legislativa,
não obstante serem já doutrinalmente conhecidas as figuras jurídicas de
substituição de actos anteriores (ratificação, reforma e conversão), as quais se
entendia terem efeitos de retroacção ao acto primário, e, nomeadamente, no que
conceme à ratificação-sanação, que por ora nos interessa, este Supremo Tribunal
Administrativo também já havia decidido que ela era causa de extinção de
instância de recurso, por impossibilidade superveniente da lide, quando o
recurso tivesse como objecto o acto ratificado. No caso, no n.º 2 do artigo 51.º
da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, o legislador não se exprimiu
restritivamente, dizendo menos do que pretendia, mas disse precisamente o que
queria. E estamos perante norma de natureza excepcional em relação ao regime
geral da estabilidade da instância. Actualmente, o legislador, na consagração do
regime geral da ratificação, remetendo em parte para o regime da revogação,
confinou-o, nesse tocante, às normas que regulam a competência para a revogação
de actos inválidos e sua tempestividade (artigo 137.º, n.º 2, do Código do
Procedimento Administrativo).
Pelo exposto e atento o disposto nos artigos 9.º e 11.º do Código Civil, o n.º 2
do artigo 51.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos não é
directamente aplicável, nem comporta aplicação extensiva ou analógica, à figura
jurídica da ratificação-sanação. Porém, os interessados não estão impedidos de
poderem impugnar contenciosa e autonomamente em novo processo os actos
ratificativos, quando lesivos, pelos mesmos ou diversos fundamentos dos que
haviam imputado ao acto ratificado. Não se vislumbram razões para se não seguir
a jurisprudência deste tribunal no sentido de que a ratificação-sanação de acto
anulável e que é objecto de recurso contencioso (ocorrida no decurso do prazo
para a contestação ou resposta da autoridade recorrida), sendo novo acto que
expurga vício ou vícios que afectavam o acto ratificado e retroagindo os seus
efeitos ao momento constitutivo do acto primário, implica a extinção do recurso
contencioso, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo
287.º, alínea e), do Código do Processo Civil, ex vi do artigo 10 da Lei de
Processo nos Tribunais Administrativos, uma vez que não se pode conceber a
existência simultânea na ordem jurídica de dois actos com o mesmo conteúdo.’
3. O acórdão contém uma elaborada caracterização dos institutos da revogação,
ratificação e sanação dos actos administrativos, concluindo que a
«ratificação-sanação» e a «revogação por substituição» são figuras jurídicas
distintas, e que só a segunda é visada na norma do n.º 2 do artigo 51.º da Lei
de Processo nos Tribunais Administrativos. E a consagração do entendimento,
sufragado pela jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Administrativo, de
que o direito de substituição do objecto do recurso, consagrado no n.º 2 do
artigo 51.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, tem como
pressuposto que o acto revogatório não só possua eficácia externa destrutiva dos
efeitos do primeiro, como disponha ex novo sobre a mesma matéria, o que,
manifestamente não sucede com o acto de ratificação-sanação, que apenas visa
sanar a ilegalidade de um acto anterior, mantendo o seu conteúdo (cfr. os
acórdãos do Pleno de 7 de Novembro de 1991, recurso n.º 22655, e de 30 de
Setembro de 1993, recurso n.º 21186).
4. Vejamos agora como lhe respondeu o acórdão recorrido.
‘... não nos parece sustentável recusar a aplicação do art. 51º, 2 da LPTA aos
casos em que o acto recorrido, seja objecto de uma ratificação-sanação. Deve
notar-se, desde logo, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal
- citada na decisão recorrida não é unânime. No Acórdão de 23 de Setembro de
1998, proferido no recurso n.º 32.434, decidiu-se de modo diverso, com o
argumento de que a ratificação-sanação deve merecer o mesmo tratamento
processual que a revogação, já que em termos substantivos ambas têm os mesmos
efeitos. Julgamos preferível este entendimento. Na verdade, o efeito processual
da revogação e da ratificação-sanação é idêntico quanto à destruição do objecto
do acto primário, levando assim à extinção do objecto do recurso contencioso do
acto primário. A razão de ser da regra do art. 51º, 2 da LPTA, que é aproveitar
um processo judicial já instaurado, é a economia processual, evitando a
duplicidade de processos. Assim, toda a argumentação que leva a concluir que a
ratificação-sanação implica a extinção da instância, por ser essa também a
consequência da revogação, deve levar também a que se aceite a substituição do
objecto do recurso. O facto do art. 137º, 2 do CPA mandar aplicar as regras da
revogação no que respeita à competência e tempestividade da revogação, não tem
intenção de excluir todas as demais regras. Este artigo pretende realçar alguns
aspectos, onde a aplicação do regime da revogação pela via subsidiária, pudesse
ser discutível, deixando assim clara a posição do legislador, nesse domínio. Nos
casos que não estejam especialmente previstos, vale o princípio geral do art.
147º do CPA, segundo o qual, às alterações e substituições dos actos
administrativos são aplicáveis as regras reguladoras da revogação. Não há, por
outro lado, qualquer interesse processual ou material que justifique a não
aplicação do art. 51º, 2 da LPTA, aos casos de ratificação‑sanação, uma vez que
tal aplicação em nada altera a posição das partes, ou seu estatuto jurídico. Se
o interessado, não quiser impugnar o acto de ratificação, por entender que este
não tem vícios próprios (competência e tempestividade), e pretender continuar
apenas a pugnar pelos vícios anteriormente invocados e que o acto apesar de
ratificado (em seu entender) ainda contém, não se compreende porque não há-de
poder, no mesmo processo, continuar a discutir aquilo que já vinha discutindo...
Finalmente, o argumento de que a regra do art. 51º, n.º 2 da LPTA tem natureza
excepcional, não podendo ser aplicada por analogia, e não permite uma
interpretação extensiva, não nos parece decisivo. Como vimos, são aplicáveis à
ratificação-sanação, enquanto acto substitutivo de anterior acto administrativo,
as regras da revogação, por força do art. 147º do C.P.Adm. E de aceitar que
neste conjunto de regras se incluam não só as regras procedimentais, mas também
as regras processuais (processo judicial) específicas da revogação. Existe,
assim, uma norma remissiva que completa o regime da ratificação-sanação. Neste
caso não há lacuna, pois a norma remissiva completa o regime imperfeito da
ratificação-sanação, mandando aplicar as regras sobre a revogação, permite
interpretar o art. 51º, 2 da LPTA para além da sua estrita terminologia. A
vontade do legislador, expressa no Código de Procedimento Administrativo, ao
mandar aplicar à ratificação-sanação o regime da revogação, aliada às razões, de
economia processual, que justificam a substituição do objecto do recurso,
levam‑nos a concluir que no art. 51º, 2 da LPTA disse, efectivamente menos do
que quereria dizer. Justifica-se, assim, uma interpretação extensiva do art.
51º, 2 da LPTA, aplicando-o não só aos ca[S]os literalmente previstos (revogação
por substituição) mas ainda a todos os casos em que o legislador manda aplicar o
regime da revogação. Daí que, a nosso ver, nada obsta a que seja admissível a
substituição do objecto do recurso, nos casos em que o acto primário seja
objecto de um posterior acto de ratificação-sanação.’
5. O acórdão fundamento enuncia muito claramente a jurisprudência tradicional, a
critica que a doutrina lhe fez e as soluções jurídicas que, por força das duas,
a lei de processo (LPTA) veio a consagrar. A partir da LPTA toda a
jurisprudência deste Tribunal foi no sentido das teses consagradas neste aresto
(um dos últimos é o acórdão do Pleno da Secção de 21.3.00 proferido no recurso
29722, em cujo sumário se pode ver que ‘O acto de ratificação-sanação substitui
o acto sanado na ordem jurídica e determina a perda de objecto do recurso
contencioso que contra ele tenha sido interposto; daí que, por esse facto, a
instância de tal recurso se torne supervenientemente impossível’). Com a
excepção do acórdão citado na decisão impugnada, de 23.9.98, proferido no
recurso 32434, que todavia não decide esta questão limitando-se a fazer-lhe uma
referência incidental - com efeito, o que ali se decidiu foi coisa bem diversa,
a revogação por substituição directamente contemplada no n.º 2 do art.º 51 da
LPTA, e o momento a partir do qual começa a correr o respectivo prazo, como
decorre do seu sumário: ‘Mesmo que se entenda que a faculdade de requerer a
substituição do objecto do recurso, nos termos do n.º 2 do art.º 51 da LPTA, tem
de ser exercitada no prazo de interposição do recurso do acto revogatório por
substituição, este prazo só começa a correr a partir da notificação deste acto
feita pela Administração ao interessado, não valendo como notificação o
conhecimento da prolação do acto revogatório por substituição que ao mandatário
do recorrente advenha por intermédio da notificação da resposta da entidade
recorrida e dos documentos que a acompanhavam, entre os quais cópia desse acto’
- até ao acórdão recorrido não se encontrou qualquer outro que tenha decidido em
sentido contrário ao do acórdão fundamento.
Importa, portanto, analisar as razões ali apontadas para seguir caminho diverso.
O primeiro argumento, aparentemente o argumento principal, assenta na
interpretação do art.ºs 137, n.º 2 e 147 do CPA, interpretação essa que partindo
do regime substantivo do CPA permitiria avançar para a interpretação extensiva
do art.º 51, n.º 2 da lei de processo. O primeiro, sob a epígrafe de
‘Ratificação, reforma e conversão’, manda aplicar a essas figuras ‘as normas que
regulam a competência para a revogação dos actos inválidos e a sua
tempestividade’ e o segundo, epigrafado de ‘Alteração e substituição dos actos
administrativos’ diz que ‘Na falta de disposição especial, são aplicáveis à
alteração e substituição dos actos administrativos as normas reguladoras da
revogação’. Ora, a tese do acórdão recorrido seria a de que ambos os preceitos
eram aplicáveis, regulando o primeiro os pontos específicos ali mencionados e o
segundo outros nele não contemplados. Não nos parece que possa ser assim. Com
efeito, não faria qualquer sentido que estando o legislador, no art.º 137, a
tratar de definir, no plano substantivo, o regime jurídico de figuras afins da
revogação, identificando‑as, até, no respectivo título, não esgotasse nesse
momento o assunto fazendo corresponder na sua totalidade os respectivos regimes,
se essa fosse a sua intenção, o que até seria bem fácil, podendo dizer-se, por
exemplo ‘Que são aplicáveis à ratificação, reforma e conversão dos actos
administrativos anuláveis as normas que regulam a revogação dos actos
inválidos’. Ao restringir a correspondência de regimes jurídicos à competência e
à tempestividade, quando estava a tratar do regime das três figuras, o
legislador evidenciou a sua vontade inequívoca de o fazer, não tendo qualquer
sentido procurar fundamentar essa correspondência num preceito de índole
genérica que remete para o regime jurídico da revogação o de figuras
indiferenciadas que lhe estão próximas. Portanto, sob o ponto de vista de mera
técnica legislativa a construção do acórdão recorrido não é aceitável. Não será
de mais, a este propósito, relembrar que o legislador consagra as soluções mais
acertadas e sabe exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9, n.º 2,
do CC). Mas, no caso em apreço, é o próprio art.º 147 que se exclui pois o
respectivo regime só será de aplicar à alteração e substituição dos actos
administrativos, na falta de disposição especial e essa disposição especial
existe, é o citado n.º 2 do art.º 137 que restringe a correspondência de regimes
à competência e à tempestividade. O segundo argumento assenta na repetida
afirmação de a revogação e a ratificação‑sanação serem figuras essencialmente
idênticas não havendo qualquer razão para as distinguir. Só que, a partir do
momento em que se legisla passamos do plano do jure condendo para o do jure
condito, e, portanto, já passámos do momento das construções teóricas para o das
soluções práticas. Ora, o contexto em que se gerou a LPT A está devidamente
explicitado e explicado no acórdão fundamento. As soluções a que a
jurisprudência do STA chegou, as críticas que lhe foram feitas e a forma como
emergiu a Lei de Processo de 85. Se no direito a constituir várias soluções eram
possíveis - designadamente a de fazer corresponder integralmente os regimes
jurídicos da revogação e da ratificação - a verdade é que o legislador, no
direito constituído, optou por solução diferente, fazendo-os corresponder
quan[t]o à competência e tempestividade, mas recusando-a em todos os demais
aspectos. Finalmente, sendo esta a interpretação dos dois preceitos da LPTA,
subsiste o carácter excepcional da regra do art. 51º, n.º 2, da LPTA, em relação
à estabilidade da instância, afirmado no acórdão fundamento, a retirar
ostensivamente a ratificação-sanação do âmbito da sua previsão e a afastar
qualquer possibilidade de interpretação extensiva ou analógica (art.ºs 9 e 11 do
CC). Uma nota ainda. Como se viu, toda a jurisprudência deste STA tem vindo a
ser emitida no sentido do acórdão fundamento. O único acórdão aparentemente
discordante - dizemos aparentemente, porquanto não foi chamado a pronunciar-se
sobre esta questão, tendo argumentando com a semelhança de regimes jurídicos a
justificar identidade de tratamento processual, num discurso argumentativo que
visava um objectivo distinto, a determinação da data a partir da qual deveria
contar-se o prazo para operar a substituição do objecto do recurso
(tempestividade), nos termos do art.º 51, n.º 2, da LPTA, em caso de revogação,
sendo certo que aí é a própria lei, o já citado art.º 137, n.º 2, do CPA, a
dizer que se aplica à sanação o regime da revogação - foi referenciado acima e
não decidiu esta matéria. A jurisprudência, ou melhor, a coerência
jurisprudencial, é um valor relevante que as leis de processo protegem através
dos diversos recursos tendentes à sua uniformização (observe-se que na lei
actual, no CPTA, o art.º 142, n.º 3, e), veio permitir o recurso jurisdicional,
independentemente da alçada, sempre que a decisão haja sido proferida ‘contra
jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal Administrativo’ e o art.º 152,
n.º 3 veio impedir a admissão do recurso para uniformização de jurisprudência
sempre que ‘a orientação perfilhada no acórdão impugnado estiver de acordo com a
jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo [T]ribunal
Administrativo). Valor esse que atingiu um patamar bastante mais elevado no
contexto do contencioso administrativo por razões ligadas à sua maior juventude
em relação ao direito civil e ao direito penal e, também por isso, por uma menor
elaboração doutrinal que o tem envolvido. Daí que só razões ponderosas fundadas
em argumentos sérios e inultrapassáveis, antes ignorados, devam constituir os
alicerces da sua alteração, tanto mais que se está no fim de um ciclo
legislativo no âmbito do contencioso administrativo operado pela entrada em
vigor, em Janeiro de 2004, do CPTA que veio substituir a LPTA. Não se vê nos
fundamentos do acórdão recorrido nenhuma dessas razões.
(...)”
Do acórdão de que parte se encontra extractada recorreram os impugnantes para o
Tribunal Constitucional, fazendo-o por intermédio de requerimento em que
consignaram: -
“A., LDA. e OUTROS, Recorridos nos autos acima identificados, tendo sido
notificados do Acórdão, do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo, que
decidiu conceder provimento ao Recurso e revogou o Acórdão recorrido,
confirmando a sentença do Tribunal Administrativo Central que julgou extinta a
instância por impossibilidade superveniente da lide, não se conformando com o
mesmo vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz ao
abrigo das alíneas b) e f), do nº 1 do art.º 70º, da Lei do Tribunal
Constitucional, para fiscalização concreta da interpretação e aplicação do art.º
147º, do Código de Procedimento Administrativo, e do nº 2 do art.º 51º, da lei
de Processo nos Tribunais Administrativos (D.L. nº267/85, de 16/7, com
alterações posteriores), com fundamento na sua inconstitucionalidade e/ou
ilegalidade, por violação dos princípios constitucionais plasmados nos nºs. 4 e
5, do artº 20º e no número 4, do art. º 268º, da Constituição da República
Portuguesa, e por violação dos princípios infra-constitucionais ou princípios
que são emanação daqueles princípios constitucionais, contidos nos artºs. 2º,
3º-A, 156º nº 1, 265º-A, 266ºnº 1, todos do Código de Processo Civil, bem como
por violação das normas legais contidas nos artºs. 8º nºs 1 e 3, 9º e 1] º,
todas do Código Civil, sendo que a questão da inconstitucionalidade foi
suscitada pelos ora recorrentes nas suas Alegações apresentadas no Supremo
Tribunal Administrativo.”
O recurso interposto pelo transcrito requerimento foi admitido por despacho
prolatado em 15 de Fevereiro de 2007 pelo Conselheiro Relator do Supremo
Tribunal Administrativo.
2. Entende-se ser de proferir decisão ex vi do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional – não
obstante a manifesta deficiência apresentada pelo mesmo, já que nem sequer é
indicada a dimensão interpretativa dos preceitos que se intentam submeter à
apreciação por este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade (o
que vale por dizer, de acordo com a jurisprudência seguida, sem hesitações, pelo
mesmo, que não são referidas concretamente as normas a sindicar) – é feita
referência a que a impugnação desejada se ancora nas alíneas b) e f) do nº 1 do
artº 70º da Lei n.º 28/82 e que os preceitos onde as normas a analisar se
inserem são os constantes dos artigos 51º, nº 2, da Lei de Processo nos
Tribunais Administrativos e 147º do Código de Procedimento Administrativo.
2.1. É por demais óbvio que o recurso esteado na dita alínea f) do nº 1 do artº
70.º não tem a mínima razão de ser.
Efectivamente, não se posta aqui nenhuma situação de aplicação de norma vertida
em acto legislativo cuja ilegalidade tenha sido suscitada com fundamento em
violação de lei com valor reforçado, de norma emanada de um órgão de soberania,
cuja ilegalidade tenha sido impostada com base em violação de estatuto de uma
Região Autónoma ou de norma constante de um diploma regional, cuja ilegalidade
tenha sido equacionada pelo desrespeito de estatuto de uma Região Autónoma ou de
lei geral da República.
Tanto basta, pois, para que do recurso baseado na mencionada alínea f) se não
possa conhecer.
2.2. Pelo que tange à impugnação fundada na alínea b), também dos mesmos nº 1 e
artº 70º, como resulta do amplo relato supra efectuado, é por demais patente
que, na alegação produzida no recurso para o Pleno da Secção de Contencioso
Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, os impugnantes não utilizaram
a mínima asserção de onde decorra, directa ou indirectamente, explícita ou
implicitamente, o equacionamento de um problema de desarmonia constitucional
reportado a um qualquer normativo alcançado por via de um sentido interpretativo
conferido ao preceito do artº 147º do Código de Processo Administrativo.
E, tratando-se de um recurso ancorado naquela alínea, mister era que o fizessem,
motivo pelo qual, não o tendo feito e, falecendo, por isso, um dos seus
pressupostos, não será possível tomar conhecimento do respectivo objecto
referentemente a uma qualquer norma que deflua do citado artº 147º.
2.3. Concernentemente ao recurso, também interposto por força da alínea b) do nº
1 do artº 70º, aceitando-se que os impugnantes, na aludida alegação, vieram a
sustentar a enfermidade constitucional de uma norma resultante de dado sentido
interpretativo incidente sobre o nº 2 do artº 51º da Lei de Processo nos
Tribunais Administrativos (o que se concebe tão somente tendo em atenção o que
ficou escrito na «conclusão» 9º [ 19ª ] supra transcrita, já que no «teor» dessa
mesma alegação, como resulta do que acima se extractou, o que, verdadeiramente,
se questiona é uma actuação jurisdicional que comportasse uma decisão semelhante
à defendida no acórdão fundamento do recurso por oposição de julgados), torna‑se
claro que tal sentido era o de o preceito em causa não poder ser aplicado
extensivamente.
Ora, como deflui da propositadamente extensa transcrição do acórdão impugnado, o
mesmo não sufragou o entendimento de que, tratando-se o nº 2 do artº 51º da Lei
de Processo nos Tribunais Administrativos de uma norma excepcional, não poderia
a ela ser conferida interpretação extensiva.
Na verdade, o que naquele aresto se apontou, em síntese, foi que eram diversos
os regimes substantivos previstos no artigos 137º, nº 2, e 147º, ambos do Código
de Procedimento Administrativo, diferenciando-se as figuras jurídicas de um e de
outro, não constituindo, assim, o primeiro daqueles preceitos uma regulação dos
específicos pontos nele consagrados e o segundo os casos não especialmente
regulados no primeiro.
E, prosseguindo, entendeu que o legislador, na sua liberdade conformativa, optou
por, relativamente às figuras de ratificação, reforma e conversão dos actos
administrativos e de alteração e substituição também desses mesmos actos, dar
tratamento diferenciado, somente fazendo correspondência no que respeita à
competência e tempestividade e, no mais, conferindo outro tratamento; justamente
por isso, o que se estatuía no nº 2 do artº 51º da Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos visava unicamente o nº 2 do artº 137º.
Sendo assim, a profunda razão de ser do acórdão querido impugnar não residiu na
impossibilidade de conferência de uma interpretação extensiva ao nº 2 do artº
51º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, mesmo que se entendesse
ser ela uma norma especial ou excepcional, mas sim nos referidos preceitos do
Código de Procedimento Administrativo que, interpretados como o foram no acórdão
em causa, conduziam a que se não postasse uma situação de lacuna, a integrar por
interpretação extensiva daquele preceito, nos casos de ratificação, reforma e
conversão.
Neste contexto, por não ter sido aplicada a norma (alcançada por interpretação)
que teria sido questionada precedentemente ao proferimento da decisão desejada
impugnar perante este Tribunal, igualmente se não toma conhecimento do objecto
do recurso no ponto agora em causa.
Custas solidárias pelos impugnantes, fixando-se a taxa de justiça em seis
unidades de conta.”
2. Os recorrentes reclamaram desta decisão, ao abrigo do n.º 3
do artigo 78.º-A da LTC, pedindo que se ordene o prosseguimento do recurso, com
os seguintes fundamentos:
“1
A presente Reclamação incide única exclusivamente na não aplicação pelo Pleno do
Supremo Tribunal Administrativo, da norma constante do nº 2, do artº 51º, da Lei
de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), à situação ocorrida durante um
processo judicial de prática, pela entidade recorrida, de acto administrativo de
ratificação-sanação;
Assim,
2
Concede-se não haver nos autos fundamento para recurso esteado na alínea f) do
nº l do artº 70º LTC, por não haver sido em momento algum suscitada ilegalidade
por violação de lei com valor reforçado ou de estatuto de Região Autónoma ou
suscitada ilegalidade de norma regional desrespeitadora de estatuto de Região
Autónoma ou de lei geral da República, não se reclamando assim do ponto 2.1 da
douta decisão sub judice;
3
De igual modo não se reclama do ponto 2.2 da mesma douta decisão, pois que não
consta dos autos alegação de inconstitucionalidade (feita nos termos do artº 70º
nº l alínea b) LTC) de uma determinada interpretação referente ao artº 147º do
Código de Procedimento Administrativo (CPA) de per si, pois que a questão a
sindicar nesta sede não se refere a uma norma que deflua directamente desse
preceito, antes do artº 51º nº 2 da revogada mas in casu aplicável Lei de
Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA- DL 267/85, de 16 de Julho) quando
interpretada à luz (também) daquele artº 147º CPA;
4
Além disso, e com a devida vénia, se é certo não constar do requerimento de
recurso para o Tribunal Constitucional (TC) a dimensão interpretativa do
preceito em causa que se reputa de inconstitucional, esta consta extensamente
dos autos recorridos:
cfr. conclusões 5 e 19 das alegações – resposta ao recurso pelo Município de
Lisboa, por oposição de julgados, do Acórdão da 2 Subsecção do Supremo Tribunal
Administrativo (STA) e mesmo o seu teor a final – sua página 33 e 34
(contrariamente ao que entre parêntesis no início do ponto 2.3 da decisão
sumária se pretende), o que aliás foi sobejamente entendido pelo Exmº Senhor
Conselheiro Relator;
5
Acresce que, por se tratar da não aplicação de norma a um caso concreto, a
dimensão interpretativa perde algum significado, porque não se trata de
interpretar mas sim de não aplicar norma;
6
Assim sendo, e com o devido respeito, reclama-se do ponto 2.3 da douta decisão
sumária ora em apreciação, de não aceitação do recurso de inconstitucionalidade,
feito nos mesmos termos do artº 70º nº 1, alínea b), da LTC, da específica
“interpretação” feita nos autos recorridos, sobre a norma constante do artº 51º
nº 2 LPTA, pois que o Pleno do STA interpretando-a com o conteúdo exegético que
no seu Acórdão, nesta sede impugnado, lhe foi atribuído, originou violação (em
devido tempo arguida), dos princípios constitucionais da tutela jurisdicional
efectiva, do direito a um processo célere e a um processo equitativo, previstos
nos artºs 20º 4 e 5 e 268º nº 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP);
7
Para o que ora releva e se bem se entende, a decisão sumária de não conhecer o
objecto do presente recurso, no Tribunal Constitucional, assenta no facto de se
entender que a norma contida no nº 2 do artº 51º, da LPTA, não foi sequer
interpretada e aplicada pelo Supremo Tribunal Administrativo, porque o que se
interpretou, para afastar aquela aplicação, foram exclusivamente as normas
contidas nos artºs. 137º e 147º, do Código de Procedimento Administrativo
(apesar de estarmos perante uma situação processual e não material);
9
Ou seja, o STA não aplicou o artº 51º nº 2, da LPTA, porque o CPA nem sequer o
admite, razão pela qual não houve necessidade de fazer uma interpretação do
conteúdo da norma conforme ou desconforme à Constituição;
10
Acontece que, o conhecimento da inconstitucionalidade não radica única e
exclusivamente na aplicação de normas cuja inconstitucionalidade tenha sido
invocada durante o processo, mas, outrossim, na não aplicação de normas que por
sua vez resulte igualmente numa violação da Constituição, por força da
interpretação conjugada das normas contidas na alínea b) do nº 1 do artº 7º e do
artº 79º-C, ambos da LTC;
11
Ora, o conhecimento da aplicação de normas alegadamente inconstitucionais radica
numa intelegibilidade facilmente apreensível, em termos de lógica jurídica;
12
No entanto, a recusa de aplicação ou a não aplicação de normas não radica na
inconstitucionalidade da interpretação ou do raciocínio efectuado (que pode
inexisir), mas antes na inconstitucionalidade que se extrai por a norma não ter
sido aplicada: não há aqui uma avaliação da interpretação das normas aplicadas
pelo Tribunal “a quo”;
13
A diferença de raciocínio é o mesmo que se consegue ou alcança na acção e
omissão na responsabilidade penal ou civil: na acção avalia-se o dano e na
omissão o objecto de avaliação é a própria norma que obrigava a agir – ali há
violação de bens e aqui há violação de normas de conduta;
14
Similarmente, na inconstitucionalidade por não aplicação de norma, o objecto de
avaliação é a norma não aplicada, sem curar de se saber porque é que ela não foi
aplicada: o relevante é saber se devia ter sido aplicada;
15
Assim sendo, e salvo melhor opinião, é irrelevante que o STA tenha interpretado
e aplicado exclusivamente normas do CPA;
16
Para os reclamantes é única e exclusivamente relevante que o STA tenha decidido
ou se tenha recusado a aplicar a norma constante do nº 2 do artº 51º da LPTA,
independentemente de saber se sobre a mesma se pronunciou ou expendeu juízos de
valor;
17
Os ora reclamantes defenderam e pugnaram durante o processo que a aplicação do
nº 2 do artº 51º da LPTA, às situações de actos administrativos de ratificação –
sanação, assentava numa interpretação segundo os princípios constitucionais,
tendo para o efeito invocado a seu favor não somente uma interpretação da
própria norma, mas também defendido alternativamente uma interpretação
extensiva: o primeiro Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e os quatro votos
de vencidos do Pleno do Supremo Tribunal de Justiça pugnaram pela aplicação da
norma;
18
Assim sendo, os fundamentos do Pleno do STA, para não aplicar a norma constante
do nº 2 do artº 51º, da LPTA, são irrelevantes, porque o que releva é a sua não
aplicação ao caso concreto, que notória e claramente consubstancia a recusa de
aplicação prevista no artº 79º-C da LTC (salvo melhor opinião, que sempre se
admite);
19
A exigência de aplicação da norma cuja recusa de aplicação feita pelo tribunal a
quo se reputa de inconstitucional, e se rogou ao TC que apreciasse, verifica-se
clara e amplamente nos presentes autos;
Se não vejamos,
20
Repetidas vezes e com argumentos variados os ora reclamantes arguíram que o artº
51º nº 2, LPTA, deveria comportar na sua previsão os actos de ratificação –
sanação, subsumindo-os ao conceito dele constante de “revogação por
substituição”: porque, ainda que se aceitasse que de uma interpretação
declarativa tal não decorresse (no que os reclamantes nunca concedem e vêm a
ver-lhes atribuída razão no voto de vencido do Acórdão do Pleno do STA) mas se
insistisse na necessidade de interpretação extensiva, teria fundamento quer num
conceito amplo de acto de substituição que numa interpretação sistemática
constaria do artº 147º CPA, repudiando a aplicação in casu do artº 137º nº 2
CPA, quer (subsidiariamente) por razões teleológicas e funcionais, na presença
de imperativos de economia processual e da adequação formal do processo
(extraídos do Código de Processo Civil – artºs 265º-A e 273º nº l CPC -
subsidiariamente aplicados por força do artº 1 LPTA);
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Paralelamente o que sempre os reclamantes afirmaram relativamente à
interpretação extensiva foi que, caso aceitando a natureza excepcional da norma
do LPTA, face ao Princípio Processual Geral da Estabilidade da Instância, esse
artº 51º nº 2 LPTA ainda assim comportaria tal interpretação por força do artº
11º do Código Civil (CC), mas nunca tal constituiu o fundamento de Direito
basilar à interpretação que pretendiam da norma, antes um argumento jurídico
auxiliar (questão prévia) que abrisse caminho àquela interpretação, a levar a
cabo com uma argumentação distinta;
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E igualmente os ora reclamantes sustentaram, ao longo dos recursos interpostos,
que recusar a interpretação e a aplicação que pretendiam para o dispositivo
legal convocado, violava os princípios constitucionais da tutela jurisdicional
efectiva, do direito a um processo célere e a um processo equitativo, previstos
nos artºs 20º nºs 4 e 5 e 268º nº 4 da CRP, nunca relacionando a imputação da
violação da Lei Fundamental ao carácter excepcional ou não da norma
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Logo daqui se conclui, com a devida vénia, dever ser revogada a decisão sumária
ora em apreciação, porque continua por apreciar se é inconstitucional a recusa
de aplicação do artº 51º nº 2 LPTA aos casos de ratificação – sanação de actos
administrativos praticados durante o decurso de processo judicial
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De qualquer modo, e salvo o devido respeito, ressalta da decisão sumária a
pequena incorrecção em afirmar que o acórdão impugnado não sufragou o
entendimento de que não poderia à disposição legal ser conferida interpretação
extensiva: fê-lo expressamente e em trecho que aliás consta da transcrição da
própria decisão sumária (cfr. sua pág. 14);
Contudo,
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É o dever de aplicação da norma do artº 51º n.º 2, da LPTA, que verdadeiramente
releva nesta fase processual, porque previamente reputada de constitucional
pelos ora reclamantes;
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Na interpretação-aplicação dos artigos do CPA, perpetrada pelo Pleno do STA,
está em causa ou subjacente a não aplicação do nº 2 do artº 51º da LPTA, como
facilmente se depreende, e é essa não aplicação que se torna inconstitucional,
porque relegando o artº 51º nº 2 LPTA a um mero objecto de outras normas
convocadas, está a retirar-se a essa norma um valor e títulos próprios;
Se não vejamos,
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O Acórdão do Pleno do STA pretende restringir o conceito de “revogação por
substituição” recusando integrar-lhe a ratificação – sanação e fá-lo com a
consideração da questão lateral da proibição da interpretação extensiva pelo
artº 11º CC, no que erra redondamente mas, para o que aqui nos interessa,
aplicando logo aqui necessariamente, sem qualquer dúvida, o artº 51 nº 2 LPTA:
impossível atribuir-lhe natureza excepcional e confrontá-lo com o artº 11º CC
sem o aplicar no processo, sem o interpretar (por confronto com o Princípio da
Estabilidade da Instância);
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Mas mais relevantemente (se bem que bastaria o que já dissemos para proceder a
presente reclamação) também quanto à questão de fundo, à profunda razão de ser
do Acórdão, o tribunal a quo avaliou a possibilidade de aplicação o artº 51º nº
2 LPTA, nesta afirmação:
“sendo esta a interpretação dos dois preceitos (do CPA) (...) a retirar
ostensivamente a ratificação – sanação do âmbito da sua (artº 51º nº 2 LPTA)
previsão”;
Ora,
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Não procede pretender que tal afirmação resulta de uma aplicação ao processo dos
artigos do CPA mas não da LPTA, cujo artigo vem lateralmente à colação: não só
tal seria ilegal por non licet, como resulta claramente da mera leitura do
Acórdão do Pleno do STA, o que não poderia deixar de ser o procedimento do
tribunal a quo: confrontado com a questão da aplicação directa ou da
interpretação extensiva do artº 51º nº 2 LPTA, decide contra a conclusão dos ora
reclamantes e do Acórdão da 2 Subsecção do STA mas seguindo o procedimento
destes, apenas com resultado exegético diverso – numa interpretação admissível,
mas que não se aceita, vai ao CPA buscar arrimo para a integração do conceito
“revogação por substituição” do artº 51º nº 2 LPTA, esquecendo a interpretação
sistemática, a interpretação extensiva a interpretação segundo a constituição e
unidade do próprio sistema judicial (e fá-lo aliás de forma parcialmente
contraditória e nunca procedente, mas disso expendirão as alegações de recurso);
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Constituindo tal aplicação no processo, pelo Acórdão recorrido, do dispositivo
legal – o artº 51º nº 2 LPTA – convocado pelos ora reclamantes perante o TC,
aplicação feita por duas vias, uma principal (a consideração sistemática dos
conceitos recorrendo ao CPA) e uma auxiliar (a consideração, que aliás deveria
ser prévia, da possibilidade de interpretar extensivamente, que nega por errada
aplicação do artº 11º CC), e coincidindo as duas dimensões de tal aplicação
exactamente com as que os ora reclamantes fizeram (claro que não no resultado) e
com cuja conclusão de Direito não só não concordaram como impugnaram por
inconstitucional perante o TC, preenchendo-se assim sem dúvida o requisito de
“não aplicação de norma” constante dos artºs 70º nº 1 alínea b) e 79º-C, da LTC
e do artº 280º nº l alínea b) CRP, não se divisando fundamento legal (esse ou
qualquer outro) para a não apreciação da questão, do objecto do recurso, pelo
TC, para o que é competente nos termos desses mesmo artigos.”
3. A reclamação incide, apenas, sobre o ponto 2.3. da decisão
reclamada, no qual se decidiu não poder o recurso de constitucionalidade
prosseguir com fundamento em que a ratio decidendi do acórdão recorrido não
reside na aplicação da norma do n.º 2 do artigo 52.º da LPTA com o sentido cuja
inconstitucionalidade a recorrente suscitou na conclusão 19.ª das
contra-alegações de recurso para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo
do Supremo Tribunal Administrativo. No mais a recorrente conforma‑se com o
decidido.
4. Os recorrentes começam por argumentar que, por força das normas contidas na
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e do artigo 79.º-C da LTC, o conhecimento do
recursos de constitucionalidade não radica, única e exclusivamente, na aplicação
de normas cuja inconstitucionalidade tenha sido invocada durante o processo,
mas, outrossim, na não aplicação de normas que consubstancie, em si mesma, uma
violação da Constituição (cfr. p. ex. n.ºs 5 a 12 da reclamação).
Por esta via, a reclamação está votada ao insucesso, não tendo
tal entendimento qualquer correspondência no regime constitucional e legal do
recurso de constitucionalidade como ele está consagrado no nosso sistema
jurídico.
Na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (como, aliás, em qualquer outra das
alíneas deste preceito) não cabe recurso para o Tribunal Constitucional de
decisões que não tenham aplicado determinadas normas de direito ordinário que,
no entender do recorrente, deveriam aplicar para satisfazer normas ou princípios
constitucionais. O que ao abrigo desta alínea se permite é o recurso que tenha
por objecto normas que tenham sido aplicadas como ratio decidendi da decisão
judicial recorrida, desde que a respectiva constitucionalidade tenha sido
questionada, de modo processualmente adequado (artigo 72.º, n.º 2, da LTC)
perante o tribunal que profira essa decisão.
Ora, se nos ativermos à afirmação dos reclamantes de que para si “é única e
exclusivamente relevante que o STA tenha decidido ou se tenha recusado a aplicar
a norma constante do n.º 2 do artigo 51.º da LPTA, independentemente de saber se
sobre a mesma se pronunciou ou expendeu juízos de valor”, somos forçados à
conclusão de que aquilo que, afinal, se pretende fazer sindicar pelo Tribunal
Constitucional, o que se considera desconforme à Constituição, não é uma dada
norma ou sentido normativo extraído de um determinado preceito legal, mas a
decisão judicial que entende que essa norma não é aplicável ao caso. Ora, o
recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade previsto na alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC tem por objecto necessário a apreciação da
conformidade à Constituição de normas jurídicas que tenham sido aplicadas pela
decisão recorrida (alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da CRP e alínea b) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC) ou a que esta haja recusado aplicação com fundamento em
inconstitucionalidade (alínea a) do n.º 1 do artigo 280.º da CRP e alínea a) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC). A escolha do direito ordinário pertinente e a
determinação do seu sentido é matéria que escapa à censura do Tribunal
Constitucional.
Deste modo, a simples “não aplicação” de uma dada norma de direito ordinário
pelo tribunal da causa na resolução de determinada questão – o que é diferente
da “recusa de aplicação” dessa norma com fundamento em inconstitucionalidade –,
ainda que conduza a dar à concreta questão submetida a julgamento uma solução
desconforme à Constituição e princípios nela consignados, não abre a via do
recurso para o Tribunal Constitucional. Na falta de uma referenciação normativa,
é questão de inconstitucionalidade da decisão, que não encontra remédio
(directo) no recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, como a
Constituição e a lei o configuram.
5. Sucede que a decisão da presente reclamação não será diferente ainda que se
abstraia da insistência improfícua dos reclamantes em fazer caber na alínea b)
do n.º 1 da LTC um recurso de constitucionalidade por “não aplicação” de normas
e se opte por confrontar a realidade processual efectivamente existente com o
regime do recurso de constitucionalidade, tal como a Constituição e a LTC o
estabelecem.
Nesta exercício de aproveitamento, aquilo que os reclamantes
designam por “não aplicação” será, afinal, a interpretação da norma no sentido
de que a sua hipótese normativa não cobre determinada situação, para com base
nesse sentido normativo (na norma assim interpretada) se concluir que a
estatuição que nessa norma se estabelece (: a possibilidade de substituição do
objecto do recurso contencioso) não tem aplicação a essa situação abstractamente
considerada (: a ratificação-sanação dos actos administrativos ocorrida na
pendência do recurso contencioso).
Sucede, porém, que o acórdão recorrido não retirou a
consequência jurídica da impossibilidade de substituição do objecto do recurso
contencioso na hipótese de ocorrer a ratificação-sanação do acto administrativo
impugnado na pendência do recurso contencioso somente da negação da
possibilidade de conferir “aplicação extensiva” ao disposto no n.º 2 do artigo
52.º da LPTA. Encontrou a resposta para a questão de direito que lhe cumpria
resolver a partir da conjugação desse preceito com o disposto nos n.ºs 2 do
artigo 137.º e no artigo 147.º do Código do Procedimento Administrativo. Para a
maioria que fez vencimento no tribunal a quo, o critério de decisão segundo o
qual na hipótese de ratificação-sanação do acto impugnado o recorrente não goza
da faculdade de requerer a substituição do objecto do recurso contencioso,
extinguindo-se a instância por impossibilidade superveniente da lide, extrai-se
– tendo, aliás, como pano de fundo o princípio da estabilidade da instância –
deste bloco legal e não, apenas e directamente, do disposto no n.º 2 do artigo
52.º da LPTA, interpretado nos termos referidos na conclusão 19.ª das
contra-alegações de recurso para o Pleno.
Deste modo, mesmo que se entendesse, face aos termos em que foi definida a
oposição de julgados, em que a questão foi dilematicamente centrada na inclusão
ou não inclusão da hipótese de ratificação-sanação no n.º 2 do artigo 52.º da
LTC, que não seria exigível aos recorrentes, no momento em que suscitaram a
inconstitucionalidade, que incluíssem a referência àqueles preceitos do Código
de Procedimento Administrativo, agora, para que pudesse prosseguir, o recurso de
constitucionalidade teria de versar sobre a norma que constituiu a ratio
decidendi do acórdão recorrido, ou seja, a norma efectivamente aplicada. Vale
por dizer que teriam os reclamantes de incluir a referência a tais preceitos na
enunciação da norma (do preciso sentido normativo, entenda-se) cuja
constitucionalidade querem ver apreciada, porque é seu o ónus de definir o
objecto do recurso (artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC). Não o tendo feito, o recurso
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC não pode
prosseguir.
6. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar a
recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 21 de Junho de 2007
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão