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Processo n.º 507/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam em conferência, na 1.ª Secção, do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., Reclamante nos autos à margem identificados, não se conformando com a
decisão sumária proferida a fls. 193 e seguintes, veio da mesma interpor
reclamação, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3 da Lei do Tribunal
Constitucional, nos seguintes termos:
“A., Recorrida e melhor id. nos autos em epígrafe, vem no seguimento de
notificação de decisão sumária proferida pelo Exmo Juiz Conselheiro Relator., ao
abrigo do art.° 78-A n.° 3 da LTC (redacção da Lei n.° 13-A/98, de 26 de
Fevereiro) vem RECLAMAR nos termos e com os fundamentos seguintes:
I- quanto ao enunciado nos fundamentos da douta decisão sumária e no que
concerne ao item II ponto 6 quando se diz ‘a questão de constitucionalidade foi
suscitada, como se observa do que se transcreve supra, no requerimento de fls.
564 e seguintes, após ter sido indeferida a arguição de nulidade do Acórdão da
Relação do Porto’ e por essa via ‘a questão de constitucionalidade foi invocada
extemporaneamente, isto é, não no decurso do processo mas em momento posterior,
impossibilitando, por conseguinte, o tribunal recorrido de se pronunciar sobre a
matéria’
II- destarte, se um tribunal de 1ª instância aplicou uma norma que uma das
partes arguiu de inconstitucional e se desta decisão couber recurso até ao STJ,
só da decisão deste, que a confirme quanto à questão de constitucionalidade, se
pode interpor recurso para o TC; se da decisão couber recurso até à Relação,
será desta, confirmativa da 1ª instância quanto à questão da
constitucionalidade, que cabe recurso para TC;
III- ora , no caso sub judice, quer a decisão principal e incidental dos
presentes autos foram decretadas improcedentes, absolvendo a Ré dos pedidos
principais e incidentais, e por via disso não foi nem tinha sequer sentido a Ré
recorrer para o Tribunal da Relação, como acabou antes o A por lançar mão;
IV- posto isto, e admitindo que no caso em apreço da decisão da 1ª instância -
favorável à aqui Ré - apenas cabe recurso para a Relação, sendo que a mesma
veio a revogar a decisão da 1ª instância, qual seria o momento idóneo para a Ré
suscitar a questão da constitucionalidade? O impulso processual do recurso
ordinário coube apenas e em exclusivo ao A e não já à Ré (pois as decisões da 1°
instância foi-lhe [sic] favorável);
V- se é verdade, que a questão só é de considerar se for suscitada durante o
processo, também e parafraseando a posição de Ribeiro Mendes, in Recurso de
Processo Civil, obra cit. pág. 423 de Fernando Amâncio Ferreira ‘são em
principio momentos inidóneos para suscitar a questão da inconstitucionalidade o
pedido de aclaração da decisão do tribunal a quo, a arguição de nulidade da
mesma decisão, o requerimento de interposição de recurso de
inconstitucionalidade ou as alegações deste recurso. A arguição tem de ser feita
e [sic] modo processualmente idóneo. Considera-se, porém, que esta doutrina não
vale para os casos em que o recorrente não haja tido oportunidade processual de
suscitar a questão antes da decisão de que se pretende recorrer’. Pois, e ‘em
tais casos, considera-se que tem que haver uma dispensa de arguição da
inconstitucionalidade antes de se haver esgotado o poder jurisdicional do juiz a
quo’.(negrito nosso), doutrina esta que merece de todo aplicação ao caso em
apreço.
VI- posto isto, e salvaguardando o tão acalmado Principio do contraditório, cfr.
art.° 3º n.° 3 do CPC, e salvo o devido respeito por opinião contrária, devem V.
Exas reformar a decisão sumária em questão a fls., conhecendo o recurso para o
TC mantendo-se os fundamentos plasmados naquele pela Ré, fazendo ASSIM V.EXAS
INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.”
A esta reclamação respondeu o Recorrido, ora Reclamado, B., pugnando pela
respectiva improcedência e consequente manutenção da decisão recorrida.
2. A fundamentação da decisão reclamada tem o seguinte teor:
“6. Não obstante o presente recurso ter sido admitido pelo Tribunal a quo, o
certo é que tal decisão não vincula este Tribunal, de acordo com o disposto no
artigo 76.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional. Cumpre portanto aferir,
desde logo, se se encontram preenchidos os pressupostos de conhecimento do
presente recurso de constitucionalidade − a suscitação, pelo recorrente, de
inconstitucionalidade de uma norma durante o processo, constituindo essa norma
fundamento (ratio decidendi) da decisão recorrida, bem como o prévio esgotamento
dos recursos ordinários. A questão de constitucionalidade foi suscitada, como se
observa do que se transcreveu supra, no requerimento de fls. 564 e seguintes,
após ter sido indeferida a arguição de nulidade do Acórdão da Relação do Porto.
Ao não ser admitido o recurso interposto deste Acórdão para o Supremo Tribunal
de Justiça, encontrava-se esgotado o poder jurisdicional, e, como tal, a questão
de constitucionalidade foi invocada extemporaneamente, isto é, não no decurso do
processo mas em momento posterior, impossibilitando, por conseguinte, o Tribunal
recorrido de se pronunciar sobre a referida matéria. Ora, como resulta dos
artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e 70.º, n.º 1, alínea b) da
Lei do Tribunal Constitucional, tal questão deve ser suscitada durante o
processo. Esta expressão tem sido objecto de jurisprudência pacífica e reiterada
deste Tribunal, entendendo-se esta suscitação em sentido funcional, de modo a
que o tribunal recorrido ainda possa conhecer da mesma antes de esgotado o
respectivo poder jurisdicional o que sucede, precisamente, em regra, com a
prolação da sentença, nos termos do artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo
Civil (confiram-se, a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 62/85, 90/85, 90/85 e
450/87, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 31 de
Maio de 1985 e 11 de Julho de 1985, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,
10.º volume, pp. 573 e seguintes).
No caso dos autos, a Recorrente só suscitou a questão de inconstitucionalidade
no requerimento de interposição de recurso ao abrigo do artigo 678.º, n.º 4 do
Código de Processo Civil. Ora, só há lugar a este recurso de oposição de
julgados quando o valor da causa é superior ao da alçada do Tribunal da Relação,
o que não sucede no caso sub judicio. Significa isto, portanto, que a locução da
questão de constitucionalidade se verificou depois de proferida a decisão final.
7. Mas, mesmo que se admitisse que a suscitação da constitucionalidade efectuada
em requerimento de interposição de recurso por oposição de julgados constituía
um modo adequado e atempado de cumprir tal requisito ─ o que apenas se concebe
para efeitos meramente argumentativos ─ o certo é que, ainda assim, o presente
recurso nunca poderia ter sido admitido.
De facto, como resulta da transcrição supra efectuada, a violação dos artigos
2.º, 9.º, alínea b), 13.º, 18.º, 20, n.ºs 1 e 4 e 65.º da Constituição é
imputada ao Acórdão da Relação, isto é, à decisão judicial propriamente dita, e
não a qualquer norma jurídica. Ora, não configurando o recurso de
constitucionalidade, em qualquer uma das suas modalidades, uma espécie de
“amparo constitucional”, o objecto do mesmo apenas poderá incidir sobre a
apreciação, às luz das regras jurídico-constitucionais, de um juízo normativo
efectuado pelo tribunal recorrido. Com efeito, o nosso sistema de fiscalização
de normas jurídicas não permite que se indague da constitucionalidade da decisão
judicial, sendo apenas sindicáveis as normas (ou interpretações normativas) que
configurem a ratio decidendi do litígio.
7. Em face do exposto, por falta de pressupostos, não pode conhecer-se do
objecto do presente recurso.”
Cumpre decidir.
II – Fundamentos
3. Como resulta da argumentação transcrita constante da decisão sumária
impugnada, aí se consignou o não conhecimento do objecto do recurso pretendido
interpor pela Reclamante dado o não preenchimento de todos os requisitos de
conhecimento do mesmo, a saber, in casu, (i) a não suscitação atempada de uma
questão de constitucionalidade, (ii) imputada ou referente a uma norma ou
segmento de norma.
É abundante a jurisprudência deste Tribunal Constitucional relativamente à
adequada interpretação da expressão “durante o processo” constante dos artigos
280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei do
Tribunal Constitucional. Com efeito, o conhecimento do recurso interposto ao
abrigo destas normas – apreciação, em concreto, da constitucionalidade de normas
cujo respectivo vício haja sido impugnado ou suscitado pelo respectivo
recorrente – impõe que tal formulação tenha ocorrido durante o processo. Resulta
este imperativo do carácter difuso do sistema português de fiscalização concreta
da constitucionalidade.
A propósito deste requisito, referem Gomes Canotilho e Vital Moreira[1] que “(…)
ele significa que a questão da inconstitucionalidade deve ser suscitada durante
a pendência da causa, ou seja, até ser proferida a decisão recorrida: qualquer
pessoa que seja parte num processo pode arguir de inconstitucional a norma ou
normas aplicáveis à causa, e se elas vierem a ser ainda assim aplicadas, pode
recorrer para o TC da decisão que as aplicou. O recorrente não pode suscitar a
questão da inconstitucionalidade apenas depois de proferida a decisão recorrida,
quando o tribunal recorrido já aplicou (e não pode agora desaplicar) as normas
arguidas de inconstitucionalidade.”
Significa isto, portanto, que, sendo o Tribunal Constitucional chamado a
pronunciar-se sobre determinada questão de constitucionalidade adequadamente
suscitada durante o processo, em sede de recurso de constitucionalidade, essa
pronúncia só poderá ocorrer perante uma pronúncia prévia, por parte do tribunal
recorrido, sobre tal matéria. Como observam Inês Domingos e Margarida Menéres
Pimentel, “este entendimento assenta na regra de que, visando os recursos
alterar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova, o
recurso para o TC só se justifica na medida em que, relativamente à norma
aplicada, se tenha formado um juízo sobre a sua (in)constitucionalidade (…).”[2]
4. É certo que a jurisprudência deste Tribunal tem aceite e reconhecido
situações-limite em que não é exigível o cumprimento deste ónus por parte do
recorrente. Tal sucede quando, por exemplo, o interessado não teve qualquer
oportunidade processual para intervir, formulando nos termos tidos por
convenientes, a impugnação jurídico-constitucional atinente a determinada norma,
respectivo segmento, conjunto de normas ou dimensão normativa.
A falta de oportunidade processual pode ocorrer em três situações diversas,
todas já objecto de apreciação e decisão, em diversas ocasiões, por parte deste
Tribunal Constitucional: ou porque o interessado não dispôs de oportunidade para
intervir no processo antes de prolatada a decisão final (é o caso, por exemplo,
dos Acórdãos n.ºs 136/85 e 51/90, publicados, respectivamente, no Diário da
República, II Série, de 28 de Janeiro de 1986 e de 12 de Julho de 1990); ou
porque, tendo intervindo, a questão de constitucionalidade só se suscitou
posteriormente à sua intervenção e antes de proferida a decisão final (como
sucedeu no Acórdão 94/88, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de
Agosto de 1988); e, por fim, quando o Tribunal considerou não ser exigível, ao
recorrente, a antecipação da aplicação ao caso concreto de determinada norma ou
determinada interpretação normativa (v. Acórdãos 61/92 e 272/92, publicados,
respectivamente, no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto e 23 de
Novembro de 1992).[3]
As excepções enunciadas assentam todas num pressuposto irredutível que consiste
no facto de, sumariamente, não ser exigível ao interessado na interposição do
recurso de constitucionalidade o cumprimento do ónus atinente à suscitação da
questão de forma atempada – durante o processo – isto é, antes de esgotado o
poder jurisdicional do tribunal a quo.
5. Alega a Reclamante a verificação, no caso sub judicio, de situação subsumível
a tal configuração de excepcionalidade na medida em que tanto a decisão
principal da 1.ª instância referente ao pedido de reconhecimento do direito de
resolução do contrato de arrendamento e consequente condenação à restituição do
locado como o incidente de despejo imediato interposto nos termos do artigo 58.º
do Regime do Arrendamento Urbano lhe foram favoráveis. Não impenderia sobre ela,
portanto, em seu entender, o ónus de suscitação da questão de
inconstitucionalidade da norma referida na medida em que a decisão que lhe foi
desfavorável só veio a ser proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa – isto
é, quando se encontravam já esgotados os recursos ordinários que, face à lei,
cabiam ao caso concreto.
Não procede, no entanto, a argumentação expendida pela ora Reclamante. Com
efeito, o carácter das decisões judiciais – como favoráveis ou não às pretensões
das partes – não poderá relevar para apreciação do cumprimento do ónus de
suscitação atempada da impugnação de constitucionalidade.
A impugnação efectuada pela Reclamante apenas em sede de requerimento de
interposição de recurso por oposição de julgados – cujos pressupostos de dedução
não se encontravam preenchidos, como se referiu na decisão sumária proferida nos
autos – poderia ter ocorrido em momento anterior, nomeadamente nas
contra-alegações de recurso de agravo interposto pelo então Autor, ora
Reclamado, para o Tribunal da Relação do Porto, que foram devidamente
apresentadas pela Reclamante, então Ré-Recorrida.
Nesse o momento processual, a Reclamante veio ao processo deduzir a sua defesa e
pugnar pela procedência da sua pretensão. Não formulou, no entanto, qualquer
questão de constitucionalidade normativa, a propósito do artigo 58.º do Regime
do Arrendamento Urbano ou de qualquer outra norma. Não logrando efectuar tal
formulação – e assistindo-lhe, em concreto, sobeja oportunidade processual para
o fazer – não pode agora a Reclamante invocar precisamente a ausência de tal
oportunidade e a verificação de factualismo conducente à dispensa de suscitação
atempada de questão de constitucionalidade.
Como se escreveu no Acórdão 228/89, publicado no Diário da República, II Série,
de 29 de Junho de 1990, tal questão “(…) tem, necessariamente, de ser levantada
em tempo útil: antes da decisão de mérito quanto a norma que releve para a
decisão do objecto do processo, antes da decisão de forma quanto a norma que
releve para a resolução da questão formal e antes de decisão incidental quanto a
norma que releve para a solução do incidente.”
6. No entanto, e como se salientou igualmente na decisão ora impugnada, ainda
que o pressuposto já versado se tivesse por preenchido, o não conhecimento do
recurso sempre seria de se impor. Com efeito, cotejadas a peças processuais
relevantes, – no caso, o requerimento de interposição de recurso por oposição de
julgados, no qual foi suscitada a questão de inconstitucionalidade – verificamos
que o vício de desconformidade com a Lei Fundamental é imputado, não a uma norma
jurídica, seu segmento ou concretização interpretativa, mas à decisão judicial
em si mesma – portanto, a actividade materialmente jurisdicional a qual, como se
sabe, no sistema português de fiscalização da constitucionalidade, escapa ao
controlo deste Tribunal Constitucional.
Sem ulteriores delongas, porque desnecessárias, refira-se apenas que, tal como
decorre directamente do disposto no artigo 280.º da Constituição, o objecto do
recurso de constitucionalidade são as normas e não as decisões judiciais de que
se recorre.
Portanto, também aqui falha um dos pressupostos de conhecimento do recurso
atinente à fiscalização concreta da constitucionalidade, sem os quais não pode
este Tribunal tomar conhecimento das questões de constitucionalidade suscitadas.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs, sem prejuízo do
benefício do apoio judiciário de que goza.
Lisboa, 6 de Junho de 2007
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos
[1] Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra
Editora, 1993, p. 1020.
[2] “O Recurso de Constitucionalidade (espécie e respectivos pressupostos”, in
Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, AEQUITAS, 1993, p. ?
[3] Para maiores desenvolvimentos sobre estas circunstâncias de excepcionalidade
cfr. Inês Domingos e Margarida Menéres Pimentel, ob. cit.