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Processo n.º 589/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial de Mértola, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), da sentença daquele Tribunal, na parte em que recusou a aplicação da norma do artigo 153.º, n.º 8, do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1. De acordo com o decidido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 275/2009, o Governo, ao editar, sem prévia autorização legislativa, o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, que deu nova redacção ao artigo 153.º, n.º 8, do Código da Estrada, veio retirar aos condutores sujeitos aos exames para detecção do estado de influenciado pelo álcool, o direito de recusar a colheita de sangue para análise.
2. Consequentemente, a norma extraída a partir da conjugação do artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e dos artigos 152.º, n.º 3 e 153.º, n.º 8, ambos do Código da Estrada, na redacção fixada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, na interpretação segundo a qual constitui crime de desobediência a recusa a ser-se submetido a colheita de sangue para análise, com a finalidade e nas condições anteriormente referidas, foi julgada organicamente inconstitucional, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição.
3. Assim, se se concordar com tal entendimento, deverá ser julgada organicamente inconstitucional a norma do nº 8 do Artigo 153º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 44/2005, negando-se provimento ao recurso.»
3. O recorrido não contra-alegou.
4. Nos presentes autos está em causa a prática de um crime de desobediência (previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal, por referência aos artigos 152.º, n.º 3, e 153.º, n.º 8, ambos do Código da Estrada), por parte do condutor de um veículo (não interveniente em acidente de viação) que, após várias tentativas de análise do teor de álcool no ar expirado, cujos resultados foram “amostra incorrecta” e “sopro insuficiente”, se recusou a efectuar a análise de sangue para quantificação da taxa de álcool.
O arguido foi absolvido da prática do crime de desobediência, por sentença do Tribunal Judicial de Mértola, ora recorrida, que, além do mais, recusou a aplicação da norma contida no artigo 153.º, n.º 8, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
5. O n.º 8 do artigo 153.º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, reza assim:
«Artigo 153.º
Fiscalização da condução sob influência de álcool
1 – (…).
2 – (…).
3 – (…):
a) (…);
b) (…).
4 – (…).
5 – (…).
6 – (…).
7 – (…).
8 – Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.»
Por seu turno, o artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, do Código da Estrada, tipifica como crime de desobediência a recusa do condutor em submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool.
O tribunal recorrido, apoiando-se na fundamentação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 275/2009, considerou que a norma do n.º 8 do artigo 153.º, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, viola o artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da Constituição, por tal alteração ter sido efectuada sem a necessária autorização legislativa e ter conteúdo inovador em relação ao regime anterior, na medida em que retirou ao examinando o direito a recusar a colheita de sangue, independentemente do motivo, nos casos em que seja impossível proceder a pesquisa de álcool em ar expirado. Salientou-se que a redacção do n.º 8 do artigo 153.º dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005 alterou o elemento negativo do tipo de crime de desobediência, substituindo a hipótese de o examinando “se recusar” a ser submetido a colheita de sangue para análise (que constava da redacção do preceito anterior a este diploma) pela não submissão a colheita de sangue para análise apenas no caso de “esta não ser possível por razões médicas”. E conclui que esta nova redacção vem agravar a responsabilidade criminal dos condutores, na medida em que passa a punir como crime de desobediência a recusa de sujeição a colheita de sangue nos casos em que seja tecnicamente possível fazê-lo.
O Acórdão n.º 275/2009, citado na decisão recorrida, julgou organicamente inconstitucional a norma extraída da conjugação do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e dos artigos 152.º, n.º 3, e 153.º, n.º 8, ambos do Código da Estrada, de acordo com a redacção fixada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
No entanto, esta decisão já não corresponde à orientação jurisprudencial mais recente do Tribunal Constitucional nesta matéria (nem à posição do próprio recorrente Ministério Público que, em casos mais recentes, pendentes neste Tribunal, tem pugnado pela não inconstitucionalidade daquelas normas).
Assim, embora versando normas diversas, decidiu-se nesta 2.ª Secção, no Acórdão n.º 479/2010, não julgar organicamente inconstitucionais as normas dos artigos 152.º, n.º 3, e 156.º, n.º, 2 do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que não admitem a possibilidade da pessoa interveniente em acidente recusar-se a ser submetida a recolha de sangue para detecção do estado de influenciado pelo álcool, tipificando tal recusa como um crime de desobediência. Esta decisão foi secundada nos Acórdãos n.ºs 38/2011 e 40/2011.
Pronunciando-se ainda sobre o artigo 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, e embora adoptando fundamentação diversa da que sustentou o Acórdão n.º 479/2010, a 3.ª Secção deste Tribunal decidiu igualmente, no Acórdão n.º 485/2010, não julgar organicamente inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 156.º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, renumerado pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro. Os fundamentos deste Acórdão n.º 485/2010 foram seguidos nos Acórdãos n.ºs 487/2010, 15/2011 e 28/2011.
Mais recentemente, a Decisão Sumária n.º 62/2011 (igualmente disponível em www.tribunalconstitucional.pt), remetendo para a fundamentação do Acórdão n.º 485/2010, decidiu não julgar inconstitucional a norma do n.º 8 do artigo 153.º do Código da Estrada.
6. Como já se referiu no Acórdão n.º 479/2010, é certo que a Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, ao abrigo da qual foi emitido o Decreto-Lei n.º 44/2005, não contém qualquer autorização ao Governo para legislar em matéria de tipificação penal de determinada conduta ou de regulação de um meio de prova que pode ser utilizado em processo penal, matérias que são da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo (artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição).
No entanto, como este Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, a falta da necessária autorização legislativa não determina, só por si, a inconstitucionalidade orgânica das normas, mostrando-se, ainda, necessário que as mesmas introduzam um regime jurídico materialmente diverso daquele que vigorava à data da sua aprovação.
Assim, a questão de constitucionalidade que importa decidir é a de saber se a norma do artigo 153.º, n.º 8, do Código da Estrada, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, é inovadora relativamente à legislação que a antecedeu.
Quer na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, quer nas redacções anteriores do Código da Estrada, a recusa a submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool (o que claramente inclui a recolha de sangue para análise), é (e já era) punida como crime de desobediência.
É o que estabelece o já citado artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, do Código da Estrada, na redacção actual, que corresponde à versão do Decreto-Lei n.º 44/2005, sendo certo que o sancionamento penal deste comportamento já tinha sido introduzido, no Código da Estrada, pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro (correspondendo, então, ao seu artigo 158.º, n.º 3), diploma esse emitido no uso da autorização legislativa concedida pelos artigos 1.º a 3.º da Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto, que autorizara o Governo a rever o Código da Estrada, nomeadamente, quanto à «punição como desobediência da recusa, por condutor ou outra pessoa interveniente em acidente de trânsito, em submeter-se aos exames legais para detecção dos estados de influenciado pelo álcool».
Não tendo a decisão recorrida recusado a aplicação da norma do artigo 152.º, n.º 3, e não sendo ela, em consequência, objecto da presente questão de constitucionalidade, a sua aplicabilidade aos casos de exames decorrentes da normal fiscalização rodoviária, bem como a sua legitimação pela referida Lei n.º 97/97, nessa dimensão, não está em apreciação, nos presentes autos. Partindo do pressuposto de que aquela norma (em si mesma e na sua articulação com a lei de autorização) tem, em princípio, eficácia incriminadora das recusas, também em situações como a dos autos, apenas há a ajuizar se, no caso específico dos exames por colheita de sangue, a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005 ao artigo 153.º, n.º 8, trouxe uma inovação legislativa que, por confronto com o correspondente n.º 7 do artigo 159.º (na redacção do Decreto-Lei n.º 265-A/2001), deve ser interpretada como a retirada de um direito de recusa cujo exercício implicava (anteriormente à redacção actual) a não punição por crime de desobediência.
O n.º 8 do artigo 153.º, na parte agora relevante, estabelece que deve ser realizado exame médico para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool quando a colheita de sangue para análise “não for possível por razões médicas”, enquanto que na anterior versão da norma (dada pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro), se previa a realização do exame médico no caso de o examinando “se recusar” a ser submetido a colheita de sangue para análise.
Mas a identificada modificação da redacção da norma do n.º 8 do artigo 153.º – traduzida na supressão de uma referência expressa à “recusa” do examinando – não significa que se tenham alterado as consequências jurídicas associadas à recusa em ser submetido à referida colheita de sangue.
A previsão de uma recusa de colheita de sangue, na norma reguladora dos procedimentos de fiscalização vigente anteriormente à promulgação do Decreto-Lei n.º 44/2005, não tinha, na verdade, projecção limitativa da eficácia incriminadora da (única) norma que, a partir do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, estabeleceu, no Código da Estrada, sanção penal para aquele comportamento: o artigo 158.º, n.º 3 (actualmente, 152.º, n.º 3). Não pode, assim, dizer-se, como se lê na decisão recorrida, que o n.º 8 do artigo 153.º do Código da Estrada «(…) passa a punir como crime de desobediência a recusa de sujeição a colheita de sangue nos casos em que seja tecnicamente possível fazê-lo», pela simples (mas decisiva) razão de que tal punição já estava anteriormente consagrada, por normação legislativamente autorizada.
Que assim é, demonstrou-o concludentemente a aturada análise da evolução legislativa, neste domínio, levada a cabo pelo Acórdão n.º 479/2010.
Transcrevemos, desse Acórdão, o passo mais relevante, para este efeito:
«Note-se que, anteriormente à alteração do Código da Estrada introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, a recusa à submissão a qualquer exame para detecção de possíveis intoxicações por parte de condutores e demais utentes da via pública, estes últimos apenas quando tivessem sido intervenientes num acidente de trânsito, era tipificada e punida como um crime específico.
Na verdade, apesar da versão originária do actual Código da Estrada (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03 de Maio) não estabelecer quaisquer sanções – penais ou de outra natureza – para os indivíduos que recusassem a realização dos referidos exames, limitando-se, por força do artigo 159.º, a remeter o procedimento de fiscalização para legislação especial, vigorava ainda o disposto no Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, que fixava o regime jurídico aplicável à condução sob efeito de álcool, bem como o respectivo Decreto Regulamentar n.º 12/90, de 14 de Maio. Estes diplomas não haviam sido alvo de revogação pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03 de Maio, uma vez que o seu artigo 7.º determinava a manutenção em vigor de todos os regimes jurídicos especiais até que entrassem em vigor as normas regulamentares necessárias à aplicação do novo Código da Estrada. Depois de prever o dever legal de sujeição a exames para efeitos de fiscalização da condução sob o efeito de álcool (artigos 6.º, 8.º e 9.º), o artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril de 1990, determinava o seguinte:
“Artigo 12º
Recusa a exames
1 – Todo o condutor que, ou pessoa que contribua para acidente de viação, que se recusar a exame de pesquisa de álcool será punido com pena de prisão até um ano ou multa até 200 dias.”
E o artigo 8.º, do mesmo diploma, que regulava a realização de exames nos casos de acidente dispunha:
“Artigo 8.º
Exames em caso de acidente
1 - Os condutores e quaisquer pessoas que contribuam para acidentes de viação serão submetidos, sempre que o seu estado de saúde o permita, ao exame de pesquisa no ar expirado, observando-se, na parte aplicável, o disposto no artigo 6.º
2 - Caso não seja possível a realização do teste no local, deverá o médico da instituição hospitalar a que os intervenientes tiverem sido conduzidos providenciar no sentido da submissão dos mesmos aos exames que entender necessários para diagnosticar o seu estado de influenciados pelo álcool.”
O referido Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, foi precedido da necessária autorização legislativa, concedida pela Lei n.º 31/89, de 23 de Agosto, que, nos termos da alínea a), do artigo 2.º, previa expressamente a possibilidade de o Governo criar tipos incriminadores relativamente à recusa de realização de exames para detecção de álcool no sangue. Tal regime vigorou até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, que, através do seu artigo 20.º, n.º 1, revogou expressamente o Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, optando por concentrar o regime jurídico primário da fiscalização da condução sob o efeito do álcool no próprio Código da Estrada (artigos 158º a 165º).
Assim, a Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto, apenas autorizou o Governo a remeter a punição do comportamento de recusa do condutor ou outra pessoa interveniente em acidente de trânsito, em submeter-se aos exames legais para detecção de estados de influenciado pelo álcool, para o tipo legal genérico do crime de desobediência inscrito no Código Penal, em substituição da anterior solução de tipificação específica dessa conduta como crime, não tendo autorizado, em parte alguma, a despenalização de qualquer destas recusas, designadamente a recusa à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool.
A exigência de que a definição dos crimes e penas é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, constante do artigo 165.º, n.º 1, b), da C.R.P., não contempla apenas a criminalização de comportamentos, mas também a sua descriminalização, apenas sendo possível despenalizar uma determinada conduta até aí tipificada como crime, através da aprovação de lei parlamentar, ou lei governamental devidamente autorizada (vide, neste sentido, J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa anotada”, vol. II, pág. 328, da 4.ª ed., da Coimbra Editora).
Encontrando-se tipificada como crime a recusa à realização de qualquer exame para detecção de estados de influenciado pelo álcool, no artigo 12.º, do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, o qual havia sido precedido da necessária autorização legislativa, concedida pela Lei n.º 31/89, de 23 de Agosto, conclui-se que o legislador do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, não tinha autorização do parlamento para proceder à despenalização da conduta de recusa de interveniente em acidente de viação à realização de colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool.
Daí que, optando-se pela interpretação do disposto no artigo 162.º, n.º 3, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, no sentido de não ser criminalmente punida essa recusa, teríamos também que concluir que nos encontrávamos, mais uma vez, perante normação emitida sem autorização do órgão legislativo competente, pelo que, tal como se considerou, relativamente ao Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 22 de Maio, a mesma não era idónea para avaliar do conteúdo inovatório das normas do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, sendo necessário recuar um pouco mais no percurso legislativo para apurar a última vontade do legislador competente, nesta matéria.
Ora, como vimos, anteriormente à redacção do Código da Estrada, conferida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, a punição criminal dos actos de recusa à realização de exames dos intervenientes em acidente de viação estava prevista, como crime específico, no artigo 12.º, do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril de 1990, não se mostrando afastada essa previsão pela regras que previam a colheita de sangue para detecção do estado de influenciado pelo álcool em estabelecimento hospitalar, quando não fosse possível realizar o exame através do método de ar expirado no local do acidente (artigo 8.º).
Estando essa tipificação autorizada pelo legislador parlamentar (artigo 2.º, alínea a), da Lei n.º 31/89, de 23 de Agosto), encontraríamos, finalmente, aqui expressa a última vontade emitida por um legislador devidamente credenciado, anteriormente à emissão do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, caso se perfilhasse a interpretação de que a redacção do Código da Estrada introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, não punia criminalmente a recusa à colheita de sangue para detecção do estado de influenciado pelo álcool por interveniente em acidente de viação. E essa vontade, quanto à admissibilidade da recusa à colheita de sangue, era coincidente com a solução contida nas normas sob análise, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, pelo que as mesmas não revelavam um cariz inovatório, relativamente à última pronúncia efectuada por legislador credenciado por autorização parlamentar. É certo que se regista uma alteração do tipo legal de crime onde se encontra previsto o sancionamento penal deste comportamento, mas essa alteração já advém da redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, o qual dispunha da necessária autorização parlamentar para esse efeito.
Assim sendo, verifica-se que, independentemente da interpretação infra-constitucional que se prefira, relativamente à solução que resultou da redacção dos artigos 158.º, n.º 3, e 162.º, n.º 3, do Código da Estrada, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, a conclusão é precisamente a mesma – o conteúdo do disposto nos artigos 152.º, n.º 3, e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, não regista qualquer inovação relativamente à legislação anteriormente vigente, aprovada com a devida autorização do legislador parlamentar.
Deste modo, o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, ao tipificar a recusa da pessoa interveniente em acidente a ser submetida a recolha de sangue para detecção do estado de influenciado pelo álcool, como crime de desobediência, apesar de não se encontrar credenciado para legislar sobre esta matéria pelo parlamento, limitou-se a manter a tipificação de tal comportamento, constante da legislação que o antecedeu, a qual dispunha da necessária autorização legislativa, pelo que tal norma não reveste um cariz inovador, não necessitando, por isso de estar coberta por nova autorização parlamentar.»
7. Sendo a norma do artigo 153.º, n.º 8, do CE, o exacto equivalente funcional, para os casos de exames no âmbito da normal fiscalização rodoviária, da norma do artigo 156.º, n.º 2, prevista para os exames em caso de acidente, tudo quanto no Acórdão n.º 479/2010 se diz da última é inteiramente transponível para os presentes autos.
Há, assim, que concluir pela não inconstitucionalidade orgânica da norma do artigo 153.º, n.º 8, do Código da Estrada.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Não julgar organicamente inconstitucional a norma do 153.º, n.º 8, do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro;
Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 3 de Março de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.