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Processo n.º 721/10
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A., Lda. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
No requerimento de interposição de recurso, definiu, como objecto respectivo, a apreciação da constitucionalidade e legalidade dos artigos 376.º, 503.º, n.º 2, 508.º do Código Civil (CC), 668.º, alínea d) do Código de Processo Civil (CPC), alegando violação dos artigos 3.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“4. O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objecto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
5. Na presente situação, a recorrente requer a “declaração da inconstitucionalidade e ilegalidade” dos artigos 376.º, 503.º nº 2, 508.º, todos do Código Civil, e ainda 668.º, al. d) do Código de Processo Civil.
A alusão a “ilegalidade” dever-se-á a mero lapso, porquanto o recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, sendo à luz deste normativo que será perspectivado.
Não obstante a menção de vários preceitos de direito infra-constitucional – cuja relação, de resto, não é esclarecida – a recorrente não identifica qual a específica norma ou interpretação normativa – presumivelmente extraída dos aludidos preceitos – cuja sindicância pretende. Igualmente não identifica a peça processual, em que suscitou previamente a questão, perante o tribunal a quo.
O assinalado incumprimento do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º A da LTC não legitima, in casu, qualquer convite ao aperfeiçoamento, nos termos dos n.ºs 5 e 6 do mesmo normativo.
Na verdade, o convite ao aperfeiçoamento, previsto no artigo 75.º A, n.ºs 5 e 6, da LTC, só tem sentido útil quando faltam apenas requisitos formais do requerimento de interposição do recurso, carecendo, ao invés, de utilidade quando faltam verdadeiros pressupostos de admissibilidade do recurso, insupríveis por essa via. Nesta última hipótese, em vez de proferir um convite ao aperfeiçoamento – que determinaria a produção de processado inútil, em prejuízo dos princípios de economia e celeridade processuais – deve o relator proferir logo decisão sumária, no sentido do não conhecimento do recurso (cfr., neste sentido, acórdãos deste Tribunal Constitucional n.ºs 99/00, 397/00, 264/06, 33/09 e 116/09, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.)
Na presente situação, a prolação de convite ao aperfeiçoamento careceria de sentido útil, porquanto a recorrente não suscitou previamente, junto do tribunal a quo, qualquer questão de constitucionalidade normativa.
De facto, a recorrente apenas invocou a inconstitucionalidade da utilização de presunções naturais, reportando-se especificamente à presunção de que quem tem a titularidade do registo do direito de propriedade tem a direcção efectiva do veículo a que o registo se reporta.
Tal invocação – além de se encontrar desacompanhada de qualquer suporte argumentativo que fundamente o juízo de desconformidade constitucional alegado – não contém uma verdadeira dimensão normativa, sendo manifesto que o vício de inconstitucionalidade é imputado à concreta operação subsuntiva ínsita na decisão jurisdicional.
Assim, sendo certo que o Tribunal Constitucional apenas pode sindicar a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas e não de decisões, nomeadamente jurisdicionais, não compreendendo o nosso ordenamento jurídico a figura do recurso constitucional de amparo ou queixa constitucional, concluindo-se pela inexistência de suscitação prévia de uma verdadeira questão normativa, perante o tribunal a quo, no presente caso, sempre se encontraria prejudicada a admissibilidade do recurso.
Acresce que o preceito, que baseia a presunção aludida pela recorrente, é identificado, nos termos da decisão recorrida, como correspondendo ao artigo 1305.º do Código Civil, inciso que não é sequer abarcado no grupo de artigos mencionados no requerimento de interposição de recurso, o que sempre nos levaria a questionar se o problema de constitucionalidade, que a recorrente pretenderia colocar perante o Tribunal Constitucional, teria qualquer relação com as presunções naturais. Certo é que a recorrente não invocou qualquer outra questão de constitucionalidade, previamente, perante o tribunal a quo.
Não tendo a recorrente cumprido, oportunamente, o ónus de suscitação de uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, perante o tribunal a quo, ficou irremediavelmente perdida a possibilidade de vir interpor, com utilidade, recurso de constitucionalidade, porquanto o referido incumprimento é insuprível.
É essa insusceptibilidade de suprimento do requisito de suscitação prévia que torna inútil um ulterior convite ao aperfeiçoamento, que, obviamente, apenas poderia incidir sobre o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade e não sobre peças processuais anteriores.
Pelo exposto, decide-se não conhecer do recurso.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. Fundamentando a sua discordância relativamente à decisão reclamada, refere a reclamante:
“Salvo melhor entendimento, a questão suscitada em sede de Recurso para esse Tribunal, ao CONTRÁRIO DO REFERIDO NA (aliás Douta) DECISÃO SUMÁRIA, talvez devido a uma menos avisada redacção das Alegações lavradas em sede de Revista, foi, com todo respeito pela opinião defendida pela Exma Conselheira, aí referenciada, assim atente-se no
IV-A INCONSTITUCIONALlDADE DA UTILIZAÇÃO DAS PRESUNÇÕES NATURAIS (Das Alegações),
“ Consideram-se presunções naturais as que resultam da experiência do curso normal das coisas e da normalidade dos factos. O uso de tais presunções têm de ser devidamente acauteladas sobre pena da discricionariedade na sua utilização. Ao contrário das presunções naturais legais ou judiciais, não podia a Relação lançar mão da presunção natural que não foi admitida na lª instância (…)
Ora,
Como é entendimento desse TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, considera-se que “ .. o principio da igualdade reconduz a uma proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais, constituindo um limite externo da liberdade de conformação dos poderes públicos,” e
O que se acaba de referir não se compagina “com mau perder’, outrossim, com uma verdadeira ilegalidade preferida pelos Tribunais
Acresce que os danos causados se deram por alguém que conduzia um veículo, desconhecendo-se a que titulo (matéria de facto provada) .Apesar de estes factos atrás referidos serem dados como provados a Recorrente perde a acção, porque, “objectivamente a apreciação arbitrária e caprichosa da prova, que nem sede penal é admitida como foi aliás reconhecido por essa tribunal no Acórdão ( desse TRIBUNAL) nº 1165/96 onde diz, passa-se a citar:
“ o julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância a regras de experiência comum utilizando como metido de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo.”
Obviamente, que tal não foi o caminho seguido no STJ, que no caso em apreço, em total denegação do conteúdo dos artº 13º e 20º da CRP, faz uma subsunção dos factos ao Direito, numa verdadeira aplicação “light” da LEI. Na realidade, e em síntese, a interpretação dada pelo STJ, ao artº 503º e a NÃO aplicabilidade do artº 376º do CC, à situação em crise é no mínimo bizarra, e por muito respeito intelectual que se tenha pela sageza jurídica não se consegue vislumbrar a razão de ser da referência Aresto. Em consequência de que se acaba de defender é que verificando-se um situação claríssima de arbítrio na apreciação da Prova, não foi a Recorrente tratada por igual perante a LEI
E sendo esta a questão de fundo se conclui pelo preenchimento dos requisitos ‘ad substantiam’ para o conhecimento do objecto do recurso, pelo que se Requer o conhecimento do presente Recurso.”
4. O reclamado, Fundo de Garantia Automóvel, respondeu à reclamação, defendendo o indeferimento da mesma, porquanto a recorrente, desde logo nas alegações de revista, não invocou a inconstitucionalidade de nenhum segmento normativo, limitando-se a impugnar um juízo sobre a decisão da matéria de facto, elaborado com recurso a uma presunção natural, o que constitui matéria insindicável pelo Tribunal Constitucional.
Nestes termos, aderindo aos fundamentos da decisão sumária proferida, concluiu pela improcedência da reclamação.
II – Fundamentos
5. Como resulta do teor da reclamação apresentada e do seu confronto com os fundamentos exarados na decisão sumária reclamada, a reclamante não aduziu argumentos que infirmassem a correcção do juízo efectuado.
Na verdade, resulta da exposição da reclamante a pretensão de sindicância da decisão jurisdicional recorrida, na sua dimensão de operação subsuntiva, o que constitui matéria subtraída ao conhecimento do Tribunal Constitucional.
Assim, apenas resta reafirmar toda a fundamentação constante da decisão reclamada e, em consequência, concluir pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III – Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação apresentada e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada proferida no dia 4 de Janeiro de 2011.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 3 de Março de 2011.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.