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Processo n.º 3/2011
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constituciona
1. Por apenso à execução que Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Norte Alentejano, ora reclamante, instaurou contra, entre outros, A., ora reclamada, foi por esta deduzida oposição à execução, invocando, entre o mais, a nulidade, por vício de forma, do contrato de penhor mercantil cujo título (documento particular) havia sido dado à execução.
O Tribunal de 1ª instância, após os articulados, proferiu saneador-sentença, decidindo julgar a oposição parcialmente improcedente e, em consequência, não verificada a nulidade do contrato de penhor mercantil, juízo que, nesta parte, foi confirmado pelo Tribunal da Relação no recurso de apelação dela interposto pela oponente.
Exequente e oponente, inconformados com o Acórdão proferido por este último Tribunal, dele interpuseram recurso de revista excepcional, que veio a prosseguir, por decisão proferida ao abrigo do artigo 721.º-A, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), como revista normal, invocando a oponente, como fundamento do recurso, de novo, que o penhor por si constituído em favor da exequente é nulo por não constar de documento autêntico ou autenticado, o que foi impugnado por esta nas suas contra-alegações.
Por acórdão de 9 de Março de 2010, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça negar revista à exequente mas concedê-la à oponente, revogando o acórdão recorrido e declarando a nulidade, por inobservância da forma legal prescrita, do penhor mercantil para garantia da dívida exequenda.
Veio então a exequente requerer a reforma desse acórdão, nos termos do artigo 669º, n.º 2, alínea a), do C.P.C., quanto à revista da oponente, no sentido de se julgar válido penhor mercantil prestado, por documento particular, como garantia de crédito de estabelecimento bancário sem que haja desapossamento dos bens dele objecto, como é o caso dos autos, suscitando, só então, a inconstitucionalidade da interpretação inversa acolhida pelo acórdão reformando.
Indeferido o pedido de reforma, veio então a exequente interpor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Março de 2010 recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, por considerar que «a interpretação que o douto Acórdão do S.T.J fez do artigo único do Dec. Lei 32.032 (de 22 de Maio de 1942), exigindo que o penhor mercantil constituído em garantias de crédito de estabelecimentos bancários só se pode fazer por documento autêntico ou autenticado, viola o princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança constitutivo do estado de direito democrático implicitamente previsto no artigo 2º da C.R.P.»
O Supremo Tribunal de Justiça decidiu, contudo, por despacho do relator de 27 de Setembro de 2010, não admitir o recurso, por inobservância do ónus de suscitação prévia previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, tendo os ora recorrentes dele reclamado, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 76.º, n.º 4, e 77.º da LTC.
A exequente veio então reclamar para o Tribunal Constitucional do despacho de não admissão do recurso, invocando que o acórdão recorrido constitui uma verdadeira decisão surpresa, pelo que não estava obrigada ao ónus de suscitação prévia.
O Ministério Público, em resposta, pugna pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
2. A decisão de indeferimento do requerimento de interposição do recurso, objecto da presente reclamação, fundamentou-se nuclearmente no facto de o requerente, ora reclamante, não ter suscitado, como lhe competia, perante o Tribunal recorrido, no momento processual oportuno, a questão de inconstitucionalidade que integra o objecto do recurso, não sendo o pedido de reforma do acórdão recorrido, formulado com tal exclusivo propósito, meio processualmente adequado de a suscitar.
Considerou, ainda, a decisão reclamada não estar tal omissão processualmente legitimada pelo carácter surpresa da decisão recorrida, como defendeu o requerente no seu requerimento de interposição de recurso, sendo certo que a questão cuja solução normativa agora se pretende sindicar, na perspectiva da sua conformidade constitucional, foi objecto do recurso de revista da oponente e das contra-alegações do exequente, não configurando, pois, a respectiva decisão uma decisão surpresa, nos termos em que a lei a caracteriza no artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
O ora reclamante, admitindo que não suscitou na resposta ao recurso de revista interposto pela oponente, ora reclamada, qualquer questão de inconstitucionalidade atinente ao fundamento normativo do recurso (nulidade do penhor mercantil prestado, por documento particular, como garantia de crédito de estabelecimento bancário, permanecendo os bens dele objecto em poder do devedor), sustenta, no essencial, na presente reclamação, que não lhe era exigível que o fizesse pois que não era previsível que o Supremo Tribunal de Justiça o viesse a acolher, como veio, no acórdão recorrido, pelas seguintes razões essenciais:
Por um lado, «as decisões anteriores conhecidas do Supremo Tribunal de Justiça em situações idênticas às dos autos (…) admitiam a constituição do penhor mercantil por documento particular nos casos de se destinar à garantia de créditos de estabelecimentos bancários e em que o objecto do mesmo fosse constituído por móveis não sujeitos a registo e para a transmissão dos quais a lei não exigia forma especial».
Por outro lado, «(…) na prática corrente da Caixa e no comércio bancário em geral, nos casos como os dos autos – em que o objecto do penhor é constituído por bens móveis não sujeitos a registo para a transmissão dos quais a lei não exigia qualquer formalidade especial – o penhor mercantil sempre foi constituído por documento particular».
Finalmente, «tendo existido duas decisões judiciais que negaram provimento à invocação da nulidade feita pela recorrida e não se tendo admitido o recurso excepcional de revista e uma vez que o (…) Acórdão do STJ acabou por coincidir na solução que acolheu com a que consta do Acórdão fundamento da revista excepcional que não admitiu, era absolutamente impossível à recorrente Caixa antever – sequer imaginar – que o Supremo Tribunal de Justiça pudesse tomar a decisão que tomou.».
Cumpre, pois, perfilados os fundamentos da decisão reclamada e da reclamação, apreciar a questão de saber se era ou não exigível ao requerente, ora reclamante, que antevisse, como possibilidade decisória, a aplicação da norma em causa (artigo único do Decreto-Lei n.º 32.032, de 22 de Maio de 1942), na dimensão ou interpretação normativa cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada no recurso rejeitado.
O princípio geral é o de que a suscitação da questão de inconstitucionalidade deve preceder a prolação da decisão recorrida (artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC), pelo que só em situações excepcionais, como é o caso em que o recorrente é surpreendido com uma interpretação normativa de conteúdo insólito, inesperado ou imprevisível, se admite que, em desvio a tal regra de legitimidade, o recorrente não tenha precedentemente questionado a sua conformidade constitucional perante o Tribunal recorrido.
Não se afigura, contudo, ser o caso.
Com efeito, e como sublinhou o despacho reclamado, não se pode considerar solução normativa inovatória, para o efeito do artigo 3.º, n.º 3, do CPC – à luz do qual deve ser ajustado o próprio conceito constitucionalmente relevante de decisão surpresa, para o efeito de dispensa do ónus de suscitação prévia imposto pelas disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC – aquela que precisamente corresponde à solução por que uma das partes pugnou ao longo de todo o processo, perante as várias instâncias chamadas a intervir, incluindo no recurso que interpôs perante o Tribunal recorrido e a que a parte contrária respondeu nas suas contra-alegações.
Sendo este o caso, pois que a questão da nulidade do penhor mercantil foi invocada pela oponente, ora reclamada, em sede de oposição à execução, que a exequente, ora reclamante, contestou, em sede recurso de apelação, a que esta última também respondeu, e, finalmente, no recurso de revista interposto pela oponente junto do Supremo Tribunal de Justiça, a que a exequente também respondeu, é de concluir que a ora reclamante teve a oportunidade processual, que não usou por facto que lhe é exclusivamente imputável, de contraditar, também na perspectiva da sua constitucionalidade, a interpretação normativa desde sempre reivindicada pela oponente como um dos fundamento de extinção da execução contra si instaurada e que veio, no essencial, a ser sufragada pelo acórdão de que agora pretende recorrer.
Nada há, pois, de surpreendente no facto de o Supremo Tribunal de Justiça ter perspectivado juridicamente o pleito do modo como o fez, sendo irrelevante que o sentido das decisões anteriores, tomadas nos próprios autos, fosse diferente, sendo certo que o instrumento recursivo, accionado pela oponente, ora reclamada, é precisamente um meio de modificação de julgado no sentido, se procedente, pugnado pelo recorrente, como irrelevante a circunstância de a prática bancária contratual alegadamente generalizada, em matéria de penhor mercantil, não revestir qualquer formalidade solene, por não ser esta, como é evidente, critério jurídico de decisão.
Por outro lado, nem sequer assume relevância jurídica, por subjectivamente ancorada, a percepção verbalizada pelo reclamante de que a jurisprudência conhecida do Supremo Tribunal de Justiça admitia, em circunstâncias de facto paralelas, a validade do penhor mercantil que o acórdão recorrido julgou nulo, sendo certo que o que releva, para o efeito de aferir do carácter insólito da decisão, não é uma eventual viragem de tendência jurisprudencial, na interpretação de dada norma, mas a insusceptibidade de se contar com ela, considerando, desde logo, os parâmetros de interpretação legalmente predefinidos – sendo insólita a decisão que com eles se não conforma – o nível de discussão que a questão tem suscitado na generalidade da comunidade jurídica – e não apenas no seio do tribunal recorrido – e, sobretudo, a concreta envolvência processual em que foi proferida a decisão, sendo determinante que, como é o caso dos autos, uma das partes tenha colocado em debate tal questão interpretativa, incluindo-a na sua estratégia de defesa processual.
Ora, não sendo o acórdão recorrido, pelas enunciadas razões, decisão-surpresa, como entendeu o despacho reclamado, é tardia a suscitação da questão de inconstitucionalidade no incidente pós-decisório (reforma) que o ora reclamante deduziu.
É que, estando em causa questão de inconstitucionalidade atinente ao próprio enquadramento substantivo do pleito, tinha o ora reclamante, pelas enunciadas razões, todas as condições para a suscitar antes da prolação da decisão final, sendo-lhe exclusivamente imputável tal omissão.
O requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade apresentado em juízo pela ora reclamante foi, pois, correctamente indeferido pela decisão reclamada.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 2 de Março de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.