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Processo n.º 886/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte “decisão sumária”:
«1. O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2 de Novembro de 2010, que manteve a pena de prisão por dias livres e a inibição da faculdade de conduzir em que fora condenado pela pratica de um crime de desobediência p. e p. pelos artigos 348.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal (CP), com referência ao disposto no artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do Código da Estrada (CE) (recusa de submissão ao teste do álcool no ar expirado).
Não contendo o requerimento de interposição do recurso as indicações impostas pelo artigo 75.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), foi o recorrente convidado, já neste Tribunal, a dar-lhes cumprimento:
O recorrente respondeu nos termos seguintes:
“[…]
1- O presente recurso vem interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC);
2- As normas cuja inconstitucionalidade pretende o recorrente sejam apreciadas, são as constantes da interpretação conferida aos artigos 17.º e 18.º, n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa;
3- Efectivamente o recorrente ao ser condenado na pena de seis meses de prisão, a cumprir em 36 (trinta e seis) períodos de prisão por dias livres, em fins-de-semana seguidos, com a duração de 48 (quarenta e oito) horas cada período, acrescida de pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 12 (doze) meses e considerando o facto do mesmo exercer a actividade de vendedor ambulante, essencialmente ao fins-de-semana, quando há um maior número de pessoas a adquirir bens de consumo, ainda porque o recorrente é o único meio de subsistência do seu agregado familiar, constituído pela sua mulher e três filhos menores, deixa-o desprovido dos mais elementares meios de sobrevivência, sendo desproporcionais tais penas, pois poderiam e deviam ser aplicadas medidas menos lesivas do direito recorrido, violando a eventual aplicação das penas sobreditas o disposto nos artigos 17.º e 18.º, n.º 2, ambos da CRP, mostrando-se profanados de modo intenso os princípios da adequação e proporcionalidade e ainda o princípio do processo equitativo e o da humanidade das penas todos com arrimo constitucional e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
4- Com efeito, a restrição legítima de “direitos, liberdades e garantias”, só se justifica para a salvaguarda de um outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, o que significa, essencialmente, que o sacrifício, ainda que parcial, de um direito fundamental, não pode ser arbitrário, gratuito ou desmotivado, pois que as leis restritivas estão efectivamente vinculadas à salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, ficando vedado qualquer justificação de restrições de quaisquer direitos, liberdades ou garantias. Torna-se pois exigível que o interesse cuja salvaguarda se invoca para restringir, mormente uma liberdade, tenha no texto constitucional suficiente e adequada expressão.
5- Nos termos do preceituado do n.º 2 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, a peça processual na qual foram amplamente suscitadas as inconstitucionalidades sobreditas, constam do recurso penal interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa (5.ª secção, Processo Sumário n.º 152/10.1PCSNT.L1).”
2. Como resulta da resposta ao convite formulado nos termos do artigo 75.º-A da LTC, o recurso não tem objecto idóneo, tal como ele é admitido no nosso sistema jurídico (artigo 280.º da CRP e artigo 70.º da LTC).
As normas que diz pretender ver apreciadas são “as constantes da interpretação conferida aos artigos 17.º e 18.º, n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa”.. Ora, supondo que isso faça algum sentido, ao Tribunal Constitucional não está cometido poder de apreciação da conformidade da Constituição consigo mesma; o que lhe cabe é a verificação de normas infra-constitucionais a regras ou princípios da Constituição.
Vistas as coisas na sua materialidade, o que o recorrente pretende é a apreciação da alegada violação de princípios da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, designadamente dos princípios da proporcionalidade e do processo equitativo, directamente imputada à decisão judicial recorrida. Mas isso não cabe no objecto possível do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, tal como a Constituição e a LTC o configuram. Como é de uso dizer-se, este recurso tem natureza normativa, na acepção de que o seu objecto (em sentido material) são as normas aplicadas (ou a que seja recusada aplicação com fundamento em inconstitucionalidade) pelas decisões dos demais tribunais e não a constitucionalidade destas, consideradas em si mesmas.
3. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em sete unidades de conta.»
2. O recorrente reclamou para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), nos seguintes termos:
“ [ …]
Ora, com o respeito sempre devido, e que é muito, por estes elevados e superiores tribunais, o reclamante não se pode de forma alguma conformar com a douta decisão proferida a fls... que indeferiu a admissão de recurso para o Tribunal Constitucional e de que ora se reclama, porquanto, a mesma ao não conhecer do objecto de recurso enferma de vício de omissão de pronúncia.
Com efeito, não foi o recurso interposto da eventual inconstitucionalidade das normas constitucionais aludidas, pois que, como é sobejamente sabido, aquele está apenas adstrito às normas infra-constitucionais, mas sim da interpretação dada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no seu douto Acórdão de 2 de Novembro de 2010. Exegese, essa sim, que colide com o decidido naquele e que desvirtua o preceituado nos artigos 17.º e 18º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Efectivamente, discorda o ora reclamante do entendimento descrito na douta decisão do Exmo. Senhor Juiz Relator quanto à não verificação de qualquer preceito normativo ou interpretação, de alcance geral e abstracto, inconstitucional, pois estamos perante uma interpretação do tribunal a quo que colide com um direito fundamental — o direito à obtenção de meios de subsistência — que não pode ser afastado da esfera jurídica dos cidadãos.
Não foi, pois, requerida a declaração de inconstitucionalidade da decisão de aplicação da pena, mas, de facto, da interpretação de normas constitucionais, para justificar a inaplicabilidade de uma sanção que salvaguardasse a actividade profissional – feirante do reclamante, essa sim que colide com os preceitos descritos no requerimento de apresentação de recurso.
E a manter-se, irá provocar no reclamante, a total ausência dos mais elementares meios de sobrevivência!
Reiterando-se, desta feita, pela confirmação do ónus da questão de inconstitucionalidade normativa imposta na alínea b) n.º 1 do artigo 70.º e n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
O recorrente ao ser condenado na pena de seis meses de prisão, a cumprir em 36 (trinta e seis) períodos de prisão por dias livres, em fins-de-semana seguidos, com a duração de 48 (quarenta e oito) horas cada período, acrescida de pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 12 (doze) meses e considerando o facto do mesmo exercer a actividade de vendedor ambulante, essencialmente ao fins-de-semana, quando há um maior número de pessoas a adquirir bens de consumo, ainda porque o recorrente é o único meio de subsistência do seu agregado familiar, constituído pela sua mulher e três filhos menores, deixa-o desprovido dos mais elementares meios de sobrevivência, sendo desproporcional tal pena, pois poderá e deverá ser de aplicar medidas menos lesivas do direito recorrido, violando a eventual aplicação das penas sobreditas o disposto nos artigos 17.º e 18.º, n.º 2, ambos da CRP.
Reitera-se, pois, que a restrição legítima de “direitos, liberdades e garantias”, só se justifica para a salvaguarda de um outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, o que significa fundamentalmente que o sacrifício, ainda que parcial, de um direito fundamental, não pode ser arbitrário, gratuito ou desmotivado, pois que as leis restritivas estão efectivamente vinculadas à salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, ficando vedado qualquer justificação de restrições de quaisquer direitos, liberdades ou garantias. Torna-se pois exigível que o interesse cuja salvaguarda se invoca para restringir, mormente uma liberdade, tenha no texto constitucional suficiente e adequada expressão.
Ora, a interpretação assente na decisão do tribunal a quo, escudada nas normas constitucionais supra-referenciadas, invalida a manutenção de todos os direitos que estão ao alcance do ora reclamante e descritos supra.”
3. O Ministério Público pronunciou-se no sentido da confirmação da decisão reclamada, pelas razões nela invocadas, salientando o seguinte:
«(…)
8º
Aliás, o requerimento de reclamação para a conferência, do interessado, é bem elucidativo das razões que determinaram a interposição do presente recurso de constitucionalidade.
Com efeito, aquilo com que o recorrente, no fundo, discorda é, essencialmente, a escolha e dosimetria da pena, designadamente o facto de o tribunal a quo não ter aplicado, ao arguido, uma pena não privativa de liberdade.
Tal matéria está, porém, vedada à intervenção do Tribunal Constitucional, constituindo, sim, a esfera de intervenção das instâncias de julgamento.
9º
De qualquer modo, quer o tribunal de 1ª instância, quer o Tribunal da Relação de Lisboa, indicaram, com precisão, as razões da escolha da pena privativa de liberdade aplicada: fundamentalmente, o anterior comportamento do arguido e as suas condenações, por motivos semelhantes, em anos anteriores.
10º
Por outro lado, no seu requerimento de reclamação para a conferência, o ora reclamante continua a manifestar o seu desconforto com o conteúdo da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, dando conta de que a interpretação, que o mesmo Tribunal faz – mas não especifica de que normas está a falar, nem qual será o conteúdo da interpretação a que pretende aludir –, colide com preceitos constitucionais.”
Apenas indica, que a interpretação do tribunal a quo colide com o direito fundamental à obtenção de meios de subsistência – realmente colocado em crise, mas por expressa culpa do arguido -, e, nessa medida, refere a inaplicabilidade de uma sanção, que não salvaguarde a actividade profissional deste.
11º
Ora, esta argumentação não tem qualquer relevância para a apreciação do presente recurso de constitucionalidade, inscrevendo-se, antes, na esfera de intervenção das instâncias de julgamento, mas não deste Tribunal Constitucional, como já se disse.
12º
Por todo o exposto, julga-se que a reclamação para a conferência, em apreciação, não merece provimento.»
A reclamação não abala os fundamentos da decisão sumária.
Não pode, desde logo, ultrapassar-se a falta de indicação da norma de direito ordinário que se pretende ver apreciada. A lei impõe ao recorrente esse ónus de definição “normativa” do objecto do recurso logo no requerimento de interposição e não foi aproveitada a oportunidade concedida pelo convite a completar esse requerimento (artigo 75.º-A da LTC).
Além disso, a própria reclamação (acima transcrita) torna evidente que aquilo que o recorrente pretende do Tribunal Constitucional é a verificação da conformidade das decisões judiciais aos princípios constitucionais que indica. Em seu entender, aplicando-lhe uma pena privativa da liberdade que afecta o período semanal em que poderia exercer mais proveitosamente a sua profissão e inibindo-o de conduzir veículos automóveis, tais decisões implicam um sacrifício desproporcionado pelos efeitos que tem na sua situação económica e familiar. O que o recorrente se queixa é de que a pena aplicada o deixará “desprovido dos mais elementares meios de sobrevivência, sendo desproporcional tal pena, pois poderá e deverá ser de aplicar medidas menos lesivas do direito recorrido, violando a eventual aplicação das penas sobreditas o disposto nos artigos 17.º e 18.º, n.º 2, ambos da CRP”. No seu entender, cabe ao Tribunal apreciar e fazer corrigir o que considera consistir numa violação dos seus “direitos fundamentais” pela sanção que lhe foi aplicada. Porém, não é este o modelo de justiça constitucional que o nosso sistema jurídico (artigo 280.º da CRP e artigo 70.º da LTC) consagra, como na decisão reclamada suficientemente se demonstra.
Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas custas, com vinte unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 3 de Março de 2011.- Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.