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Processo n.º 34/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 67/2011, que ora se transcreve:
“I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão proferido, pela 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 09 de Dezembro de 2010 (fls. 3728 a 3747), para que sejam apreciadas as seguintes interpretações normativas:
“inconstitucionalidade por violação do art. 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, da interpretação do art. 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual o despacho de pronúncia é irrecorrível, nos casos em que só há uma «dupla conforme formal» entre a acusação e a pronúncia, mas não há uma «dupla conforme substancial», porquanto, apesar de incidirem sobre os mesmos factos, a decisão de pronunciar o arguido foi tomada à luz de lei nova diferente da que vigorava quando foi proferida a decisão de o acusar” (fls. 1752);
“inconstitucionalidade da interpretação da alteração introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31.12.2008, que aprovou o Orçamento Geral do Estado, no sentido de que o limite de € 7.500,00 prevista no art. 105º, n.º 1, do RGIT não se aplica aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, por violação do art. 29º, n.º 3, da CRP que proíbe as interpretações restritivas de normas penais descriminalizadoras, bem como do art. 29º, n.º 4, da Constituição, que impõe a aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido” (fls. 1752 e 1753).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 3755), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum ou alguns não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Comecemos pela questão da interpretação normativa do n.º 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal (CPP), que o recorrente reputa de inconstitucional.
Antes de mais, deve notar-se que o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da constitucionalidade de normas que tenham sido efectivamente aplicadas, enquanto razão determinante das decisões recorridas (artigo 79º-C da LTC). Ora, no caso dos autos, com o objectivo de evitar a aplicação da jurisprudência constitucional pré-existente relativa à não inconstitucionalidade de interpretações normativas que impedem o recurso de despachos de pronúncia que confirmem a acusação pública, o recorrente invoca uma interpretação normativa do n.º 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal (CPP) que nunca foi alvo de apreciação por este Tribunal. A saber, uma interpretação daquele preceito legal “segundo a qual o despacho de pronúncia é irrecorrível, nos casos em que só há uma «dupla conforme formal» entre a acusação e a pronúncia, mas não há uma «dupla conforme substancial», porquanto, apesar de incidirem sobre os mesmos factos, a decisão de pronunciar o arguido foi tomada à luz de lei nova diferente da que vigorava quando foi proferida a decisão de o acusar”.
Sucede, porém, que a decisão recorrida não aplicou essa interpretação normativa, afirmando até precisamente o contrário. Senão, veja-se:
“Ora, no caso sub judice, os factos quer na acusação, quer no despacho de pronúncia, são os mesmos, ou seja, os factos por que foi o arguido pronunciado, constam todos da acusação. E outros que também constavam da acusação, não constam do despacho de pronúncia visto que, por força de uma alteração legislativa despenalizante relativamente a esses mesmos factos, o recorrente não foi pronunciado.
(…)
Ora, na decisão instrutória que pronunciou o arguido, os factos são os mesmos que, na acusação, integravam o crime ou crimes pelos quais o recorrente foi pronunciado, remetendo, aliás, a própria decisão instrutória de pronúncia integralmente para o disposto na acusação pública, no que respeita aos fundamentos de facto e de Direito.
Daqui se retira que não há entre a acusação e o despacho de pronúncia qualquer contradição ou alteração de factos.
Alega, ainda o recorrente, que os factos comuns a ambos os despachos não foram objecto de duas decisões coincidentes, desde logo porque a lei aplicável (Lei 64-A/2008 de 31 de Dezembro) que esteve na base de uma decisão não foi a mesma que esteve na base da outra decisão — a decisão de submeter o arguido a julgamento pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social, por ao caso ser inaplicável a nova redacção do art. 105° do RGIT, é uma primeira decisão sobre esta matéria, pelo que não pode ser entendida como uma decisão concordante do Ministério Público na acusação, pois, sobre tal questão, o Ministério Público nada disse, uma vez que a lei nova é posterior à data da acusação) — não se verificando, no caso dos autos, “dupla conforme’, pelo que não há fundamento material para a irrecorribilidade do despacho de pronúncia.
É certo que após a dedução da acusação, ocorreu uma alteração introduzida pela Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro ao artigo 105°, nº 1 do RGIT.
Porém, tal alteração não consubstancia uma alteração substancial no que respeita aos elementos objectivos do tipo de crime de abuso de confiança fiscal, mas tão só a introdução de um valor abaixo do qual não há crime, pese embora persista a obrigação de entregar a quantia devida.
Ou seja, em virtude daquela alteração, foi fixado um limite monetário - €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) - até ao qual, aquele tipo de conduta deixou de ser conduta criminalmente punível, isto é, verificou-se uma despenalização de determinadas condutas quando os montantes em causa não excedam o limite estabelecido -€ 7.500,00-, cuja implicação é apenas e tão-só a extinção da responsabilidade penal quanto às mesmas, nos termos do disposto no artigo 2.°, n.º 2 do Código Penal.
Daqui, pretende o recorrente fazer crer que o facto de a decisão instrutória tomar posição quanto à não aplicação do limite monetário de sete mil e quinhentos euros, constante da nova redacção do artigo 105. °, n.º 1 do RGTT, às situações de abuso de confiança contra a Segurança Social, consubstancia uma alteração ao constante da acusação, justificando assim, também por esta via, a recorribilidade do despacho de pronúncia.
Uma vez mais, improcede a argumentação do recorrente.
Na verdade, relativamente ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, nenhuma alteração se verificou por via da entrada em vigor da Lei 64- A/2008, de 31 de Dezembro.
Como bem refere o Mmo. Juiz a quo, o dispositivo legal aplicado em sede de decisão instrutória é exactamente o mesmo que serviu de fundamento à acusação, no caso o artigo 107°, nº 1 do RGIT, o qual não sofreu qualquer alteração de redacção por força do disposto na Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro.
E, se dúvida houvesse quanto a esta matéria, a mesma estaria dissipada face ao acórdão de fixação de Jurisprudência de 14/07/2010; Relator: Souto de Moura, publicado no DR 1 Série, 186, 23-09-2010, p. 4219 e sgts, ao fixar jurisprudência, no sentido de que, a exigência do montante mínimo de 7500 euros, de que o nº 1 do art. 105° do Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT (aprovado pela Lei nº 15/200 1, de 5 de Junho, e alterado, além do mais, pelo art. 113° da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no art. 107° nº 1 do mesmo diploma.
Verifica-se, assim, que a lei aplicada na decisão instrutória de pronúncia é, no essencial, a mesma que fundamentou a acusação, ou seja, o núcleo da tipicidade dos preceitos legais permanece inalterado, pelo que a decisão instrutória de pronúncia é irrecorrível, nos termos do disposto no artigo 310. °, n.º 1 do Código de Processo Penal.”
Daqui decorre, claramente, que a decisão recorrida considerou haver “dupla conforme”, quer formal, quer substancial, na medida em que entendeu que a lei aplicável era mesma, fosse no momento da acusação, fosse no momento da prolação do despacho de pronúncia. Consequentemente, a decisão recorrida não aplicou a interpretação normativa reputada de inconstitucional pelo recorrente, pelo que mais não resta do que recusar o conhecimento do objecto do presente recurso, por força do artigo 79º-C da LTC.
4. Em segundo lugar, importa apreciar a questão relativa à alegada inconstitucionalidade “da interpretação da alteração introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31.12.2008, que aprovou o Orçamento Geral do Estado, no sentido de que o limite de € 7.500,00 prevista no art. 105º, n.º 1, do RGIT não se aplica aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social”.
Mais uma vez, este Tribunal apenas pode conhecer da constitucionalidade de interpretações normativas que tenham constituído a “ratio decidendi” da decisão alvo de recurso. Ora, o presente recurso vem interposto, precisamente, do “douto Acórdão proferido em 9.12.2010” (fls. 1752), que apenas conheceu da questão da (ir)recorribilidade do despacho de pronúncia proferido nos autos. Da sua leitura, não resulta que o mesmo tenha aplicado efectivamente a segunda interpretação normativa reputada de inconstitucional.
Aliás, o recorrente apenas suscitou a referida questão de inconstitucionalidade, como o próprio admite, no requerimento de interposição de recurso (fls. 1754), em sede recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa. Sucede que tal recurso foi alvo de despacho de não admissão (fls. 3560 a 3566), razão pela qual este último foi alvo de reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa. Assim sendo, o tribunal recorrido nem sequer chegou a pronunciar-se quanto à questão substantiva que antecede à alegada inconstitucionalidade normativa ora em apreço, ou seja, saber se o limite quantitativo de 7.500,00 €, previsto no n.º 1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), após a redacção da Lei n.º 64-A/2008, é aplicável ao crime previsto no artigo 107º do mesmo diploma legal.
Assim, por não ter sido aplicada enquanto razão determinante da decisão recorrida, não se conhece igualmente do objecto do recurso, quanto à segunda questão de inconstitucionalidade normativa, nos termos do artigo 79º-C da LTC.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, pelos fundamentos supra expostos, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.”
2. Inconformado, o recorrente apresentou a seguinte reclamação, que ora se resume:
“(…)
Na douta decisão sumária de que ora se reclama, decidiu-se pela inadmissibilidade do recurso interposto, por se entender que o Tribunal recorrido não aplicou a interpretação normativa reputada inconstitucional pelo ora reclamante.
Ora, salvo o devido respeito, o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu douto acórdão de 9.12.2010, aplicou efectivamente a interpretação normativa cuja constitucionalidade o ora reclamante pretende ver apreciada, sendo essa interpretação, aliás, a ratio decidendi de tal Acórdão.
Com efeito, quando o Tribunal recorrido decidiu no sentido de julgar o despacho de pronúncia irrecorrível, fê-lo por considerar que os factos vertidos no despacho de pronúncia são os mesmos dos vertidos no despacho de acusação, independentemente da entrada em vigor da Lei 64- A/2008, de 31 de Dezembro e da ponderação feita pelo Tribunal de Instrução Criminal sobre a aplicabilidade de tal lei ao caso concreto.
Ou seja, o Tribunal recorrido decidiu que o despacho de pronúncia era irrecorrível, ainda que entre o despacho de acusação e aquele tenha entrado em vigor a Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro e que o Tribunal de Instrução Criminal tenha ponderado e decidido a sua aplicação ao caso concreto, e que, por via dessa ponderação, tenha decidido não pronunciar o arguido por parte dos factos pelos quais vinha acusado e pronunciá-lo pelos demais.
Ao proferir esta decisão, o Tribunal recorrido interpretou o art. 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no sentido de que, apesar de a decisão de pronunciar o arguido ter sido tomada à luz de lei nova diferente da que vigorava quando foi proferida a decisão de o acusar, o despacho de pronúncia é irrecorrível se vier a incidir sobre os mesmos factos vertidos na acusação.
Interpretação normativa que o ora reclamante submeteu à apreciação do Tribunal Constitucional.
Pelo exposto deve, em conferência, ser decidida a admissão do recurso interposto, notificando-se a ora Reclamante para apresentar as suas alegações de recurso.” (fls. 3768 a 3770)
3. Devidamente notificado, o Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação ora em apreço, nos seguintes termos:
“1º
Pela Decisão Sumária n.º 67/2011, não se conheceu do objecto do recurso em relação às duas questões de constitucionalidade que o arguido pretendia ver apreciadas: a primeira de uma determinada interpretação do artigo 310.º, n.º 1, do CPP; a segunda respeitante à Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro de 2008, na conjugação com o artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT).
2º
Na reclamação da Decisão Sumária, o recorrente apenas impugnou a Decisão quanto ao não conhecimento da primeira das questões, nada dizendo quanto à segunda.
3.º
Assim, quanto a esta última, deve manter-se integralmente a Decisão Sumária.
4.º
Quanto à primeira questão, parece-nos claro que a interpretação do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, que o recorrente pretende ver apreciada, não foi aplicada na decisão recorrida.
5.º
Efectivamente, o arguido foi pronunciado pelos factos constantes da acusação pública - como aquele aceita e reconhece -, mas também pelo mesmo crime que constava da acusação, ao contrário, pois, do que afirma.
6.º
Na verdade, após ter sido deduzida a acusação, a Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, veio introduzir alterações no artigo 105.º do RGIT (crime de abuso de confiança fiscal), mantendo intacto o artigo 107.º (crime de abuso de confiança contra a segurança social).
7.º
Essas alterações, no entanto, atendendo ao seu conteúdo e aos factos constante da acusação, não tiveram qualquer influência na incriminação em causa: os arguidos estavam acusados e foram pronunciados, exactamente nos mesmos termos, pela prática daqueles dois crimes.
8.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Tendo em conta que o reclamante se limita a impugnar a Decisão Sumária quanto ao não conhecimento da primeira questão, será apenas quanto a esta que o presente Acórdão decidirá.
Assim, importa notar que, conforme resulta da decisão reclamada supra transcrita, o tribunal recorrido nunca aplicou, efectivamente, a interpretação normativa reputada de inconstitucional pelo ora reclamante. Pelo contrário, frisou bem que existia dupla conforme substancial entre o despacho de acusação e o despacho de pronúncia, na medida em que todos os elementos típicos do crime em causa – v.g. abuso de confiança contra a segurança social (artigo 107º do RGIT) se mantiveram inalterados, apesar da entrada em vigor da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro.
Não subsistem, portanto, quaisquer fundamentos que justifiquem a alteração da decisão reclamada.
III – Decisão
Nestes termos, pelos fundamentos supra expostos e ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 77º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 10 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 03 de Março de 2011.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.