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Processo n.º 821/2010
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Pela decisão sumária n.º 821/10, proferida nos presentes autos, não se tomou conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade interposto pelos recorrentes A. e B. com fundamento na inobservância do ónus de suscitação, durante o processo e perante o Tribunal recorrido, de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada ao núcleo normativo que integra o objecto do recurso, cuja delimitação então se considerou, por difusa, insuficiente, mas não determinante, por inútil, da possibilidade de aperfeiçoamento legalmente prevista.
Os recorrentes, inconformados, dela reclamam para a conferência, esclarecendo que pretendem ver apreciada a inconstitucionalidade da interpretação normativa sufragada pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 8/2010, de 23 de Setembro de 2010, que foi acolhida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de que ora recorrem, sendo que, «desde o primeiro requerimento de interposição de recurso para [este Tribunal] vêm reclamando a inconstitucionalidade pela não aplicação, nos mesmos termos, ao regime da administração fiscal e da segurança social, do disposto no artigo 105.º, nº 1 e 7 do RGIT (…) na redacção que lhe foi dada pela Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro, como melhor consta das alegações apresentadas junto do Tribunal da Relação de Coimbra», doutrina que, de forma imprevisível, veio a ser posteriormente fixada no referido acórdão de uniformização de jurisprudência ao considerar «inaplicável, quanto à segurança social, a descriminalização quando a prestação tributária, em causa, seja de valor igual ou inferior a €7 500 (…)», prevista no n.º 1 do artigo 105º do RGIT para o crime de abuso de confiança fiscal, introduzindo, assim, «a desconformidade de aplicação entre o regime da segurança social e o regime da administração fiscal» cuja inconstitucionalidade, por violação dos artigos 13.º, 20.º, 27.º e 32.º da Constituição da República, oportunamente invocaram, de forma precisa e concreta, perante o Tribunal recorrido.
Mais sustentam que deveriam ter sido, antes, convidados a aperfeiçoar o seu requerimento de interposição do recurso.
O Ministério Público, em resposta, pugna pela manutenção do julgado, pelos fundamentos em que assentou, que, considera, não resultam infirmados pelo alegado em sede de reclamação.
2. Cumpre apreciar e decidir se a questão de inconstitucionalidade que os reclamantes suscitaram perante o Tribunal recorrido reveste os mesmos contornos normativos daquela que pretendem sujeitar agora à apreciação do Tribunal Constitucional, à luz do princípio de que o recurso de constitucionalidade apenas tem por objecto o fundamento normativo da decisão e não a própria decisão e, por isso, apenas se considera observado o ónus de suscitação legalmente imposto como condição de legitimidade do recorrente (artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC) quando se tenha invocado, no momento processual oportuno, perante o Tribunal recorrido, a inconstitucionalidade de dado preceito legal ou interpretação, de alcance geral e abstracto, que o tenha por fonte.
Estando apenas em causa, na presente reclamação, o conteúdo (normativo ou não) da questão de inconstitucionalidade que os reclamantes suscitaram nas alegações de recurso que apresentaram junto do Tribunal recorrido, e não o momento, que se afigura oportuno, em que o fizeram, cumpre, pois, analisar, em tal perspectiva, o que, de relevante, nelas se invocou.
Defenderam os ora reclamantes, nas respectivas alegações de recurso, a aplicabilidade, por força da remissão do artigo 107.º do RGIT, da norma tipificadora do crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, quanto ao elemento objectivo atinente ao montante de cada uma das prestações devidas não entregues (superior a €7 500,00), ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo primeiro dos citados normativos legais, por cuja prática foram os ora reclamantes condenados, com a consequente extinção, por descriminalização, do procedimento criminal contra si instaurado, atento o valor (inferior àquele montante) de cada uma das contribuições concretamente não entregues à Segurança Social.
Nesse contexto, alegaram, com relevo constitucional, o seguinte:
Ao não se aplicar a redacção dada ao artigo 107º e 105º do RGIT, pelo artigo 113º da Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro, o Tribunal a quo fez uma interpretação errónea violando os princípios legais plasmados quer nesse diploma legal, quer ainda na LGT, pois aquilo que o legislador não distinguiu, não compete ao interprete distinguir.
Como resulta dos factos provados (…), nenhuma das declarações em causa ultrapassa o montante de 7500,00 mensais, sendo bem pelo contrário, valores substancialmente inferiores a este (…), pelo que deve ser extinto o procedimento criminal, nos termos do artigo 2º, nº 2, do Código Penal.
Caso assim não se entenda então está em causa o princípio da igualdade e da proporcionalidade, por violação do disposto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. Assim, como os artigos 20º, 27º e 32º também da Constituição da República Portuguesa, por não aplicação do disposto no artigo 105º, nº 1 do RGIT, violando-se assim o artigo 6º e 7º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
E, adiante, nas conclusões do recurso:
8- Ao não considerar a descriminalização da conduta dos arguidos o douto Acórdão a quo violou os artigos 13º, 20º, 27º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
9- Ao não considerar a descriminalização da conduta dos arguidos o douto Acórdão a quo violou o artigo 7º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
«(…)
Pelo exposto o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 13º, 20º, 27º e 32º da Constituição da República Portuguesa, e, ainda, o artigo 7º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão cuja interpretação normativa foi acolhida no acórdão recorrido e ora se sindica, fixou jurisprudência no sentido de que «a exigência do montante mínimo de 7500 euros, de que o nº 1 do art. 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias – RGIT (aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, e alterado, além do mais, pelo art. 113.º da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no art. 107.º nº 1 do mesmo diploma».
Ora, se é certo que tal jurisprudência só se fixou após a interposição, pelos ora reclamantes, do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, não lhes sendo, pois, exigível que suscitassem então perante o Tribunal recorrido questão de inconstitucionalidade assente em tal interpretação, nos precisos termos verbais acima enunciados, a verdade é que, como os próprios reconhecem, o tema já suscitava então divergência jurisprudencial, consubstanciando a doutrina fixada no acórdão uniformizador uma das correntes interpretativas sufragadas por alguns arestos, aliás referenciados nas próprias alegações de recurso, pelo que poderiam os recorrentes ter aí claramente invocado a inconstitucionalidade de interpretação normativa que, no essencial, correspondesse àquela que pretendem ver apreciada no presente recurso de constitucionalidade.
No entanto, como ajuizado na decisão sumária reclamada, não o fizeram.
Com efeito, os recorrentes, nas suas alegações de recurso, em nenhum momento reportaram o juízo de inconstitucionalidade sequer à dualidade de critérios interpretativos adoptados na determinação do sentido e alcance dos tipos objectivos criminais consagrados nas normas em debate, como ora pretendem fazer crer, e, muito menos, à interpretação, de alcance geral e abstracto, cuja apreciação de mérito reclamam.
Na verdade, e como resulta dos únicos excertos, acima transcritos, em que invocaram a violação da Lei Fundamental, reportaram-na à própria decisão recorrida, na parte em que não julgou extinto o procedimento criminal, por descriminizalização, dirigindo directamente contra o Tribunal e a decisão dele emanada, por não o ter considerado, um tal juízo de inconstitucionalidade.
E não tendo os reclamantes, como demonstrado, oportunamente sindicado perante o Tribunal recorrido a inconstitucionalidade de qualquer interpretação normativa, delimitando, com clareza e rigor, o juízo de inconstitucionalidade então formulado por referência a dada norma legal ou interpretação, de alcance geral e abstracta, que dela tenha sido feita, não se justificava, com efeito, por inútil, o aperfeiçoamento do seu requerimento de interposição de recurso, como sumariamente decidido.
Deve, por isso, ser indeferida a presente reclamação.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação deduzida, nos presentes autos, pelos recorrentes A. e B. confirmando-se, em consequência, a decisão sumária dela objecto.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça, para cada um deles, em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Março de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.