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Processo n.º 99/2011
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. e B. foram condenados, por tribunal colectivo da 6ª vara criminal de Lisboa, em penas de prisão, pela prática de crimes em co-autoria material.
Inconformados, recorreram os arguidos para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Através de Decisão Sumária datada de 29 de Outubro de 2010 foram nesse tribunal os recursos rejeitados, por não terem dado cumprimento ao disposto nos nºs 2 a 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, e por serem manifestamente improcedentes.
Desta decisão reclamaram os arguidos para a conferência, que, em Acórdão datado de 29 de Novembro, indeferiu a reclamação apresentada.
Interpuseram então os arguidos recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto alínea g) do nº 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC), invocando que a interpretação dada pela decisão recorrida aos nºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal já fora anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
2. O recurso não foi admitido, por despacho com o seguinte teor:
Os arguidos A. B. vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido por este tribunal no passado dia 29 de Novembro de 2010.
Disseram que interpunham o recurso ao abrigo da alínea g) do n.° 1 do artigo 70.° da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, por este tribunal ter aplicado os n.°s 3 e 4 do artigo 412.° do Código de Processo Penal numa dimensão considerada inconstitucional nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.°s 288/2000 e 320/2002.
Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que tal recurso não pode ser admitido pelas seguintes razões:
— Antes de mais, porque o acórdão n.° 288/2000 julgou inconstitucional e o acórdão n.° 320/2002 declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma determinada interpretação do n.° 2 do artigo 312.° do Código de Processo Penal e não de qualquer interpretação dos n.°s 3 e 4 desse mesmo preceito legal;
— Para além disso, porque este tribunal, referindo-se à susceptibilidade de ser formulado um convite ao aperfeiçoamento das conclusões, disse que ele não podia ter lugar porque a deficiência não se limitava às conclusões, estendendo-se também ao corpo da motivação, não sendo possível extrair conclusões de algo que aí não constava (veja-se, no sentido de esta dimensão normativa não padecer de inconstitucionalidade, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 259/2002, de 18 de Junho de 2002, DR II Série de 13 de Dezembro de 2002);
— Acrescente-se ainda que o Tribunal da Relação considerou que o recurso interposto pelos arguidos era também, na parte em que tinha por objecto a impugnação da decisão de facto, que é aquela a que se referem os n.°s 3 e 4 do artigo 412.° do Código de Processo Penal, manifestamente improcedente, razão pela qual não tinha qualquer sentido formular um convite ao aperfeiçoamento das conclusões, sendo certo que o corpo da motivação não poderia ser alterado.
Assim, e pelos fundamentos apontados, não admito o recurso interposto pelos arguidos A. e B. para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea g) do n.° 1 do artigo 70° e n.° 3 do artigo 75.°-A da respectiva lei.
3. Deste despacho reclamaram os arguidos para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no nº 77 da LTC. Na sua reclamação, e depois de contextualizada a questão de direito infra-constitucional, vieram os reclamantes essencialmente reiterar que a decisão que de que pretendiam interpor recurso interpretara as normas contidas nos nºs 2 a 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal em sentido já julgado inconstitucional pelo Tribunal, nos seus Acórdãos nºs 288/2000, 320/2002, 529/2003 e 322/2004.
Notificado da reclamação, veio o representante do Ministério Público no Tribunal pugnar pelo seu indeferimento, por se não perfazer, no caso, o pressuposto de admissibilidade dos recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea g) do nº 1 do artigo 70.º da LTC.
Cumpre apreciar e decidir
II – Fundamentos
4. Determina a alínea g) do nº 1 do artigo 70.º da LTC que caiba recurso para o Tribunal Constitucional de decisões dos tribunais que apliquem norma que já tenha sido por aquele julgada inconstitucional ou ilegal.
Ao assim dispor, a LTC dá desde logo cumprimento ao nº 5 do artigo 280.º da CRP, que impõe a obrigatoriedade, para o Ministério Público, de interposição do recurso de constitucionalidade sempre que qualquer tribunal “aplique norma já julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional”.
Corresponde antes do mais a um imperativo de segurança a razão pela qual, tanto a Constituição quanto a lei, prevêem este tipo de recursos para o Tribunal Constitucional. Sendo, em processo de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas, os efeitos do juízo do Tribunal restritos ao caso em julgamento, pode suceder que norma em certo caso julgada inconstitucional venha a ser aplicada, noutro processo, por outro tribunal. Nessas circunstâncias, e dado ainda o previsto no nº 3 do artigo 281.º da CRP, imperativos de segurança (e de integridade da ordem jurídica) exigem que, independentemente de quaisquer outros requisitos, se abra logo a via de recurso para o Tribunal Constitucional, para que se garanta a possível e desejável uniformidade dos seus juízos de inconstitucionalidade. (Como pode suceder que, tendo sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de certa norma, venha ela por qualquer motivo ainda a ser aplicada a um caso concreto, situação em que é imperiosa a necessidade de reforma da decisão que a aplicou). Ponto é – pois que, pela natureza das coisas, é esse o único pressuposto de admissibilidade deste tipo de recursos – que esteja em causa em todos os juízos, comuns ou constitucionais, a mesma norma. Ou dizendo por outras palavras: ponto é que o tribunal comum tenha efectivamente aplicado norma já julgada inconstitucional pelo Tribunal.
É manifesto que tal não aconteceu no presente caso.
Por um lado, nos Acórdãos nºs 529/2003 e 322/2004, o Tribunal julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, nº 1, da CRP, a norma constante do artigo 412, nº 3 do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a falta indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b), ou c) tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso do arguido nessa parte, sem que ao mesmo seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência.
Por outro lado, no Acórdãos nº 320/2002, o Tribunal declarou, com força obrigatória geral, por violação do nº 1 do artigo 32.º da CRP, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 412.º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência. Foi aliás esta mesma norma que o Acórdão nº 288/2000 julgara, num caso concreto, inconstitucional.
Na decisão de que pretendeu recorrer, o tribunal a quo aplicou norma diversa, conforme é sublinhado tanto pelo representante do Ministério Público quanto pelo despacho reclamado. Na verdade, a decisão em causa rejeitou o recurso não por ele ser deficiente quanto à formulação das conclusões da motivação, deficiência essa suprível, mas por nele se não terem cumprido as exigências constantes dos nºs 2 a 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, quer nas conclusões, quer no texto da motivação. Além do mais, foi este apenas um dos motivos que determinou a rejeição do recurso, sendo o outro o da sua manifesta improcedência.
Tanto basta para que se conclua pela não perfeição, no caso, do pressuposto de admissibilidade do recurso.
III – Decisão
Pelo exposto, o Tribunal decide indeferir a reclamação apresentada e confirmar o despacho reclamado.
Custas pelos recorrentes, fixadas em 20 unidades de conta da taxa de justiça.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.