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Processo n.º 703/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), da sentença do Tribunal de Família e Menores de Braga, proferida em processo de regulação de responsabilidades parentais em que são recorridos A. e B., na parte em que «recusou a aplicação do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2009 (publicado no D.R. 1.ª Série, n.º 150, de 05 de Agosto de 2009), por inconstitucionalidade material (por violação dos artigos 8.º, 24.º, 69.º, 13.º, n.º 2, 63.º, n.º 3, 67.º, n.º 2, alínea c) e 81.º, alínea a) da Constituição da República Portuguesa), nos termos do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 3, 75.º-A, n.º 1, 78.º, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional.»
2. Na sentença recorrida, na parte que agora releva, conclui-se que:
“Recusa-se, nos termos do art. 204 C.R.P., a aplicação da norma constante do art. 4.º 5 do D.L. 164/99, de 13/5, por se considerar que a sua literal, e prospectiva, estatuição a torna inconstitucional, por violar o disposto nos artigos 1.º, 7.º, n.º 5 e 6, 8.º, 13.º, 63.º, n.º 3, 67.º, n.º 2, c) e g), 69.º e 81.º a) e b) da Constituição da República Portuguesa e, ainda que desnecessário, dado o art. 8.º C.R.P., os artigos 20.º, 21.º, n.º 1, 24.º, n.ºs 1 e 2, 51.º, n.º 1, 52.º, n.º 7, e 53.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, nos precisos termos em que se acima se expôs.”
O segmento decisório da sentença recorrida tem o seguinte teor:
“Condena-se o FGADM a pagar mensalmente a A. a pensão de alimentos relativa à filha C., nascida a ../12/1999, no montante mensal de 154,35 euros, a que o devedor B. está legalmente obrigado. (…)
Nos termos conjugados do disposto nos arts. 202.º, n.ºs 1 e 2 e 203 C.R.P., bem como artigos 8.º, n.ºs 1 e 3, 9.º, 10.º, n.ºs 1 e 2 e 2006 C.C. (por referência ao art. 3.º, n.º 1 L. 75/98, de 19/11, art. 148.º O.T.M. e arts. 1.º, 7,º, n.ºs 5 e 6, 8, 13.º, 63.º, n.º3, 67.º, n.º 2 c) e g) e 81.º, a) e b) C.R.P. e, ainda que desnecessário, dado o art. 8.º C.R.P., os artigos 20.º, 21.º, n.º 1, 24.º, n.º 1 e 2, 51.º, n.º 1, 52.º, n.º 7, e 53.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia), por analogia, fixa-se o momento a partir do qual são devidas as prestações a cumprir pelo I.G.F.S.S., F.G.A.D.M., como sendo a partir da petição, requerimento, de intervenção do F.G.A.D.M., em Janeiro de 2010, mês ao qual, e a partir do qual, os pagamentos do I.G.F.S.S. terão de se reportar.
O C.D.S.S. deverá, nos termos do art. 519 C.P.C. (pois recusa-se a aplicação do art. 4.º, n.º 5 D.L. 164/9, de 13/5, na sua literal e prospectiva disposição), comprovar aos autos, em 30 dias, ter iniciado o pagamento das prestações de alimentos mensais, devidas desde o requerimento de intervenção do F.G.A.D.M..
Notifique-se o Ministério Público, o representante legal ou a pessoa que detenha a guarda, o I.G.F.S.S. e, havendo, os respectivos advogados das partes, art. 4.º, n.º 3 do referido D.L.
Em Janeiro de cada ano a pensão será actualizada em 5%.”
3. Notificado para alegar, o Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal, concluiu do seguinte modo:
“52º
Por todo o exposto ao longo das presentes alegações, julga-se, assim, que este Tribunal deverá:
a) julgar inconstitucional, por violação dos arts. 1º, 8º, 13º, 63º, 67º, 69º e 81º da Constituição da República Portuguesa, a norma do art. 4º, nº 5 do Decreto-Lei 164/99, de 13 de Maio, quando interpretada no sentido literal de que a obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, em substituição do devedor, só nasce com a decisão que julgue o incidente do incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo, porém, quaisquer prestações anteriores;
b) confirmar, em consequência, a decisão recorrida.”
4. Notificado o Exmo. Magistrado do Ministério Público da eventualidade do Tribunal não vir a conhecer do objecto do recurso, pronunciou-se no sentido de, em sua perspectiva, dele conhecer.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Sobre a concreta questão de constitucionalidade que se perfila nos autos, já foram apreciados, no Tribunal Constitucional, diversos recursos provenientes do Tribunal de Família e Menores de Braga, nos quais se apresentava questão em tudo idêntica à que agora se nos depara.
Foram proferidas, entre outras, as Decisões Sumárias n.ºs 121/10, 167/10, 182/10, 183/10, 184/10, 185/10, 186/10, 187/10, 188/10, 190/10, 191/10, 216/10, 221/10, 222/10, 224/10, 232/10, 500/10 e 501/10, bem como os Acórdãos n.º 370/2010 e 426/2010, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt., em que se entendeu não conhecer do objecto do recurso (contrariamente a esta posição foi proferido, apenas, o Acórdão n.º 54/2011, também disponível no mesmo site).
Numa das mais recentes decisões, Decisão Sumária n.º 500/10, ficou dito o seguinte:
“ (…) A fundamentação da citada Decisão Sumária n.º 121/10 (depois transposta para as demais Decisões Sumárias acima referidas) é a seguinte:
‘3. A norma do n.º 5 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 164/99 estabelece o seguinte: «O centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal».
Resulta do teor da sentença recorrida, especialmente da parte final do seu segmento decisório, que o tribunal não efectuou uma recusa de aplicação da norma do artigo 4.°, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, com fundamento em inconstitucionalidade.
Pelo contrário, essa norma foi aplicada como ratio decidendi do caso, tendo sido ao abrigo da mesma que o tribunal recorrido determinou que o CDSS iniciasse o pagamento das prestações de alimentos em causa.
Simplesmente, a decisão recorrida não aplicou tal norma, na parte respeitante ao momento em que se devem iniciar os pagamentos, com a interpretação que foi fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2009 aí citado, mas sim com a interpretação que o tribunal recorrido entendeu ser a correcta. Entendimento, esse, fundado, em boa medida, em razões, desenvolvidamente expostas, situadas no plano do direito infraconstitucional.
Resulta, na verdade, da fundamentação da sentença recorrida que esta não acolhe a interpretação constante do Acórdão n.º 12/09 apenas por entender que a mesma é inconstitucional. Não o faz, antes disso, porque entende que a interpretação que está de acordo com as regras aplicáveis não é essa, mas sim a que, a final, entendeu seguir. De facto, quando na sentença se elencam quatro motivos de discordância da interpretação seguida no acórdão de uniformização, as primeiras razões invocadas prendem-se com a interpretação da norma no plano do direito ordinário (que não cabe a este Tribunal Constitucional sindicar); e só por último se acrescenta um motivo de inconstitucionalidade.
Ora, a escolha, entre duas interpretações, de uma delas, com o concomitante afastamento da outra interpretação, não é uma verdadeira recusa de aplicação de norma. E não o é mesmo quando a interpretação afastada o foi (também) por invocadas razões de inconstitucionalidade.
O facto de a interpretação que foi afastada pelo tribunal recorrido ser aquela que foi fixada em acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não altera os dados da questão. Só assim seria se tal interpretação se impusesse como obrigatória para o tribunal recorrido. Só então é que o mesmo estaria habilitado a exercitar o poder-dever que o artigo 204.º da Constituição lhe confere, como último recurso para evitar a eficácia, no que diz respeito ao caso em juízo, dessa interpretação reputada inconstitucional.
Mas não tem essa eficácia a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça, apesar do valor ‘reforçado’, que implica que a decisão judicial que a contrarie é sempre susceptível de recurso - cfr. actual artigo 678.º, n.º 2, alínea c), do CPC (cfr. neste sentido, entre outros, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 2003, Coimbra, 12-13, embora a propósito do regime anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto).
Não obstante a diversidade de matérias, a questão aqui em juízo apresenta uma estrutura problemática análoga à presente no Acórdão n.º 652/09 (…). Explicitou-se, neste Acórdão, uma orientação que aqui se reitera:
«[U]m tribunal de instância pode provocar a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, e mediante o recurso obrigatório do Ministério Público, de uma interpretação que ele próprio faça – interpretação que seria a inevitável ratio decidendi da questão em juízo, não fora a decisão de inconstitucionalidade que sobre ela recai. O que não pode é, através de uma artificiosa recusa de aplicação, que consta da decisão, mas não é apoiada pela fundamentação, pôr o Tribunal Constitucional a decidir a constitucionalidade de uma interpretação que não é a sua, mas a de um outro tribunal.»’
No caso presente, a sentença em recurso decidiu – aparentemente, se verá – recusar a aplicação da norma constante do artigo 4º, n.º 5, do Decreto-Lei nº 164/99, no seu ‘sentido literal e prospectivo’. Sucede, porém, não só que a decisão final obtida através da conjugação de várias outras normas [‘artigos 202º, n.º 1 e 2, 203º C.R.P., bem como dos artigos 8º, n.º 1 e 3, 9º, 10º, n.º 1 e n.º 2 e 2006º C.C. (por referência ao art. 3º, n.º 1 L. 75/98, de 19/11, art. 148º O.T.M. e arts. 1º, 7º, n.°s 5 e 6, 8º, 13º, 53º, n.º 3, 67º, n.º 2 c) e g) e 81º a) e b) C.R.P. e, ainda que desnecessário, dado o art. 8º C.R.P., os artigos 20º, 21º, n.º 1, 24º, n.º 1 e 2, 51º, n.º 1, 52º, n.º 7 e 53º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia), por analogia’] corresponde exactamente àquela a que o tribunal a quo - através de uma interpretação do artigo 4º, n.º 5, do Decreto-Lei nº 164/99 diversa da efectuada pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) em acórdão uniformizador de jurisprudência - sempre havia chegado nas sentenças que motivaram as Decisões Sumárias atrás apontadas, mas também que, quanto ao momento a partir do qual os pagamentos são efectuados pela Segurança Social, por conta do Fundo – mês seguinte ao da notificação - (não quanto ao momento a partir do qual são devidas as prestações), a solução recorrida resulta do artigo alegadamente desaplicado.
Ou seja, a decisão final, com argumentação modificada, é exactamente a mesma que o tribunal a quo retirava do artigo 4º, n.º 5 do Decreto-Lei nº 164/99, numa das suas interpretações possíveis. Em suma, a decisão recorrida apenas formalmente afasta a referida norma pois que, materialmente, aquilo que o tribunal recorrido faz consiste, essencialmente, em, para um determinado segmento da norma em causa – o respeitante ao momento a partir do qual as prestações são devidas (que não quanto ao momento a partir do qual as prestações começam a ser pagas), propor uma interpretação distinta daquela que retira da ‘literal e prospectiva disposição’ - que recusa - do preceito em causa. Trata-se ainda e sempre, porém, de uma interpretação do referido trecho legal. Ora, como é jurisprudência constante deste Tribunal, não é sua função definir ou optar sobre qual a melhor ou mais adequada interpretação de que as normas de direito ordinário são susceptíveis. Ou seja, estamos mais uma vez no domínio da discussão interpretativa infraconstitucional, vedada ao conhecimento deste Tribunal.
4. Nestes termos, a ‘argumentação modificada’ que a decisão recorrida introduz não altera, substancialmente, a inutilidade da apreciação da questão de inconstitucionalidade por este Tribunal, tal como fundada nas inúmeras decisões sumárias entretanto já proferidas. Sendo, obviamente evidente que, como supra se deixou dito, um tribunal de instância não pode através de uma “artificiosa recusa de aplicação”, levar este Tribunal a decidir sobre a constitucionalidade de uma interpretação que não é a sua, mas, no caso, a do Supremo Tribunal de Justiça. Ficando obviamente abertas as via de solução de divergências ao nível da interpretação do direito infraconstitucional.”
É esta a jurisprudência que cumpre agora reiterar, para ela se remetendo inteiramente.
III – Decisão
6. Pelo exposto, acordam em não conhecer do objecto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 1 de Março de 2011.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Rui Manuel Moura Ramos. Vencido. Conheceria do recurso pelas razões aduzidas no acórdão n.º 54/2011.