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Processo n.º 8/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
O Tribunal Judicial da Comarca de São João da Madeira, mediante decisão proferida em 26 de Junho de 2008, pronunciou, para julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, entre outros, os arguidos A. e B., pela prática, em co-autoria, de um crime de burla qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 217.º, 218.º, n.º 2, alínea a), de um crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e de um crime de simulação de crime, previsto e punido pelo artigo 366.º, n.º 1, todos do Código Penal.
No decurso da audiência de julgamento, foi proferido em 4 de Setembro de 2009, um despacho com o seguinte teor:
“Compulsada a materialidade vertida na pronúncia, verifica-se que aos arguidos é imputada a prática de um crime de falsificação, p.p. pelo art.º 256º, nº 1, al. a) do C.P.. Pondera, porém, o Tribunal que da enunciada factualidade possa eventualmente resultar, também, a prática de um crime de falsificação de documento, p.p. pelo art.º 256º, nº 1, al. b) do C.P., com a redacção vigente à prática dos factos e presentemente pelo art.º 256º, nº 1, al. d) do C.P., com a redacção emergente da Lei nº 59/2007.
Assim sendo, comunica-se nos termos e para os efeitos do art.º 358º, nº 1 e 3 do C.P.P., tal eventual alteração da qualificação jurídica dos factos vertidos na pronúncia.”
Por sentença proferida em 08 de Fevereiro de 2010, foi o arguido A. condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de um ano e seis meses de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período, subordinada ao dever de pagar ao Estado a quantia de €4.750,00 (quatro mil setecentos e cinquenta euros), no prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da sentença e de cem dias de multa, à taxa diária de €8,00 (oito euros), perfazendo o quantitativo de €800 (oitocentos euros), pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punído pelo artigo 256°, n.º 1, alínea a) do Código Penal, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256°, n.º 1, alínea b) do Código Penal, vigente ao tempo da prática dos factos, correspondente presentemente ao artigo 256.º, n.º 1, alínea d) do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 59/2007, de 04/09, e de um crime de simulação de crime, previsto e punido pelo artigo 366.º, n.º 1, do Código Penal, e o arguido B., na pena de oito meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo período de um ano, subordinada ao dever de pagar ao Estado a quantia de €1.000,00 (mil euros), no prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da sentença.
Inconformados, os arguidos recorreram desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por Acórdão datado de 20 de Outubro de 2010, negou provimento ao recurso.
Os arguidos apresentaram então requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), com o seguinte conteúdo:
«A., e B., Arguidos e Recorrentes nos autos à margem epigrafados, notificados do Acórdão neles proferido, por via do qual foi negado provimento ao recurso interposto por estes, com o que não se conformam, vêm dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos e com os seguintes fundamentos:
O presente recurso é interposto nos termos e ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 85/89, de 7 de Setembro e Lei 13-A198, de 26 de Fevereiro;
Pretendem os Recorrentes ver apreciada a inconstitucionalidade da norma que infra identificam e que foi aplicada não obstante a atempada invocação da sua inconstitucionalidade.
Assim, em audiência, o Mmo. Juiz de primeira instância procedeu a uma alteração substancial dos factos, imputando aos arguidos um novo crime, porém, sem que tal decorresse de novos factos conhecidos em audiência ou o agravamento do tipo legal pelos quais vinham acusados, ou uma nova qualificação dos mesmos factos, mas sim a autonomização criminal de factos que já constavam dos despachos de acusação e de pronúncia.
Tal possibilidade não tem, salvo melhor opinião, sustentação na alínea f) do n.º 1 do Código do Processo Penal, correspondendo a interpretação do Mmo. Juiz de primeira instância a um desvirtuamento daquela norma, e uma violação das garantias de defesa do arguido em processo penal, consagradas no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, mesmo que tenha sido comunicada aquela intenção e conferida a possibilidade de defesa em audiência.
A aplicação da alínea f) do n.º 1 do Código do Processo Penal deverá ser restringida a factos que venham a ser conhecidos na decorrência da produção da prova em audiência de discussão e julgamento, e não à “correcção” da acusação ou pronúncia em desfavor do arguido…”.
Foi proferida em 25 de Janeiro de 2010 decisão sumária de não conhecimento do recurso, com a seguinte fundamentação:
“No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Os Recorrentes pretendem ver sindicada a constitucionalidade da norma constante da alínea f), do artigo 1.º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que a situação prevista nesta alínea abrange uma operação de autonomização criminal de factos que já constavam dos despachos de acusação e de pronúncia, por violação do artigo 32.º da Constituição.
Ora, da leitura da decisão recorrida resulta que não foi essa a interpretação que sustentou a improcedência do recurso quanto a essa questão.
Lê-se na respectiva fundamentação o seguinte:
“…Facilmente se constata que o tribunal a quo, na sua interpretação, não procedeu a uma alteração substancial dos factos mas, tão-somente, a uma alteração da qualificação jurídica, observando correspondentemente o disposto no art. 358º nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal.
Do teor das motivações de recurso dos Recorrentes resulta que os Recorrentes consideram essa alteração da qualificação jurídica, com base nos factos já constantes da pronúncia como uma alteração substancial dos factos a dever ser apreciada com base no disposto no art. 1º al. f) e 359º do Código de Processo Penal.
Manifestamente sem razão.
…
Aliás, a expressão crime diverso contida na al. f) do art. 1º do Código de Processo Penal não corresponde à de diferente tipo legal de crime, no sentido substantivo mas antes de crime para efeitos processuais, no sentido de facto diverso dos que integram os limites pré-existentes do objecto do processo, ultrapassando estes, como aliás, resulta cristalinamente do nº 4 do art. 339º do Código de Processo Penal, aditado pela Lei 59/98 de 25.8.
No se verifica, por isso, qualquer violação ao disposto nos art.s 1º al. f) e 359º do Código de Processo Penal e 32º da Constituição da República Portuguesa.”
Como resulta com evidente clareza do excerto transcrito, o Tribunal da Relação do Porto recusou precisamente a integração da alteração efectuada pelo tribunal da 1.ª instância no conceito jurídico-processual de alteração substancial dos factos, constante da alínea f), do artigo 1.º, do Código de Processo Penal, pelo que não perfilhou o entendimento cuja constitucionalidade os Recorrentes pretendem ver fiscalizada pelo Tribunal Constitucional.
Dado o carácter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efectiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada.
É necessário que a interpretação acusada de inconstitucionalidade tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
Verificada a falta de aplicação pela decisão recorrida da interpretação normativa indicada pelos Recorrentes, importa concluir que não está preenchido este requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, devendo, assim, ser proferida decisão sumária de não conhecimento, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.”
Os Recorrentes reclamaram desta decisão nos seguintes termos:
“A., e B., Arguidos e Recorrentes nos autos à margem epigrafados, notificados da decisão sumária n.º 51/2011 proferida pelo Exmo. Senhor Juiz Relator, vêm, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC
RECLAMAR da mesma para a Conferencia atenta a sua insuficiência de fundamentação, requerendo, por conseguinte, seja preferido Acórdão sobre as questões suscitadas no Recurso.
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
Fundamentação
A decisão reclamada fundamentou o não conhecimento do recurso no facto da interpretação normativa cuja constitucionalidade os Recorrentes pretendiam ver apreciada não integrar a ratio decidendi da decisão recorrida.
Na reclamação apresentada os Recorrentes limitam-se a invocar a insuficiência da fundamentação da decisão reclamada.
Sem razão, uma vez que esta mostra-se dotada de fundamentação bastante para a compreensão do sentido do decidido, revelando-se acertada a posição de não conhecer do mérito do recurso, uma vez que a questão colocada ao Tribunal Constitucional não sustentou a decisão recorrida.
Assim, a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade impede o seu conhecimento, pelo que deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. e B., da decisão sumária proferida nestes autos em 25 de Janeiro de 2010.
Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 3 de Março de 2011.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.