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Processo n.º 601/2009
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
(Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso de constitucionalidade, do acórdão daquele Tribunal de 26.5.2009, nos seguintes termos:
«(…)
a) A recorrente arguiu a inconstitucionalidade do entendimento normativo dado pela 1.ª instância ao artigo 88.º n.º 2-b) do C.P.P. no sentido de que este proíbe, sem limite de tempo, que a comunicação social transmita, sem autorização, a gravação do som da audiência de julgamento, contido no suporte magnético do próprio tribunal, por violação do artigo 38.º, n.º 1 da CRP, devidamente conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da mesma CRP;
b) O acórdão recorrido rejeitou tal arguição por entender que tal entendimento normativo é compatível com a Constituição, atendendo ao direito à palavra e à necessidade de precaver a serenidade da Administração da Justiça, tudo nos demais termos que constam de págs. 29 e 30 da peça recorrida;
c) Por discordar dessa posição, a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da alínea b), n.º 2, artigo 88.º do Código do Processo Penal, na interpretação normativa que dela é feita pelo acórdão recorrido (artigo 75.º-A, n.º 2);
d) As normas legais que se consideram violadas, são as constantes dos artigos 38.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2, da Constituição da Republica Portuguesa. (artigo 75.º-A, n.º 2);
e) A peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade foi a alegação de motivação do Recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, nomeadamente nos seus n.ºs. 24 e 25 e n.ºs 8 e 9 das Conclusões – fls. 650 e seguintes. (artigo 75.º-A, n.º 2).
Por estar em tempo e ter legitimidade requer a V EX a sua admissão, seguindo-se os ulteriores termos.»
2. O presente recurso emerge de processo criminal, que correu termos com o n.º 1985/05.6TAOER no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, no qual a arguida A. foi condenada, por sentença proferida na 1,ª instância, pela prática de um crime de desobediência simples, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, com referência ao artigo 88.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, e punível nos termos do artigo 65.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 32/2003, de 22 de Agosto, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 25 euros, num total de 1.500 euros.
Inconformada, a arguida recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 26.5.2009, julgou totalmente improcedente o recurso.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso.
3. A recorrente apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1. Vem o presente recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea b), n.°1, artigo 70.º, da Lei n.° 28/82 — Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional — e da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou a sentença que, no âmbito do processo criminal n.º 1985/.6TAOER, pendente no 1° juízo Criminal, condenou a arguida A. pela prática, em autoria material, dum crime de “desobediência simples”, p. e p. pelo artigo 348.º, n.° 1 alínea a) do Código Penal, com referência ao artigo 88.°, n.°2 alínea b), do CP e punível nos termos do artigo 65.° n.°s 1 e 2 da Lei n.° 32/2003, de 22 de Agosto, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 25.00 €, o que perfaz 1.500,00 €.
2. A recorrente, no seu requerimento de interposição de recurso, balizou-o nos termos que se reproduzem:
a) A recorrente arguiu a inconstitucionalidade do entendimento normativo dado pela 1.ª instância ao art.º 88.°, n.º 2 alínea b), do C.P.P. no sentido de que este proíbe, sem limite de tempo, que a comunicação social transmita, sem autorização, a gravação do som da audiência de julgamento, contido no suporte magnético do próprio tribunal, por violação do art. 38.° n.° 1 da CRP, devidamente conjugado com o art.º 18.°, n.º 2, da mesma CRP;
b) O acórdão recorrido rejeitou tal arguição por entender que tal entendimento normativo é compatível com a Constituição, atendendo ao direito à palavra e à necessidade de precaver a serenidade da Administração da Justiça, tudo nos demais termos que constam de págs. 29 e 30 da peça recorrida;
c) Por discordar dessa posição, a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da alínea b), n.º 2, do artigo 88.° do Código do Processo Penal, na interpretação normativa que dela é feita pelo acórdão recorrido (art.° 75.° - A, n.°1);
d) As normas legais que se consideram violadas, são as constantes dos artigos 38.°, n.°1 e 18.°, n.°2, da Constituição da Republica Portuguesa. (art.° 75.º-A, n.°2);
e) A peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade foi a alegação de motivação do Recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, nomeadamente nos seus n.°s 24 e 25 e nos n.°s 8 e 9 das Conclusões - fls. 650 e seguintes.
3. A situação fáctica com que o tribunal recorrido se deparou e veio a enquadrar e resolver na interpretação normativa que fez da al. b), do n.°2, do artigo 88.º, do C.P.P. — que neste recurso se põe em crise - define-se e conhece o seguinte essencial enquadramento:
a) A arguida, A., exercia, à data da prática dos factos, ou seja, em 12 de Novembro de 2005, a profissão de jornalista no canal televisivo “B. S.A.;
b) Nesse dia, no programa “Jornal …” da referida estação de televisão, passou um programa, no âmbito da programação informativa, sob o formato e denominação “Reportagem B.”;
c) Esse programa abordou um julgamento que ocorreu no processo no 1044/04.9PCSNT, da 2ª Vara Mista de Sintra em que foi julgado e condenado um indivíduo chamado C., julgamento esse onde, de acordo com a tal reportagem, teria ocorrido um erro judiciário;
d) O julgamento foi gravado em suporte magnético, com vista a eventual recurso da matéria de facto e no cumprimento dum dispositivo processual penal;
e) No referido dia 12 de Novembro de 2005, cerca das. 20.00 horas, no canal televisivo “B.”, foi exibida a referida “Reportagem B.”, tendo-se desenvolvido a reportagem com a audição das perguntas feitas pelos Meritíssimos Juízes, pelo Exmo. Procurador da República em funções na Procuradoria daquele tribunal e que interveio neste julgamento, o depoimento de diversas testemunhas, designadamente dum dos ofendidos e da testemunha D., através da qual foi divulgado ao público, de forma clara e perceptível, uma vez que as intervenções e respectivos depoimentos se encontravam legendados, das referidas tomadas de som da audiência de julgamento.
f) A arguida, autora daquela peça, entendeu passar o som para melhor fundamentar a tese defendida na reportagem, ao fazer passar partes da gravação efectuada na audiência pelos serviços do tribunal que, de acordo com o C. P. Penal, se destina a ser utilizada caso haja lugar a recurso da matéria de facto;
g) A arguida não pediu autorização, nem qualquer elemento da estação televisiva requereu ao Exmo. Presidente do Colectivo, Sr. E., para a tomada de imagens ou som, não tendo, por outro lado, sido dada qualquer autorização nesse sentido;
h) A arguida teve acesso a essas gravações de molde não apurado.
4. Em termos gerais, discute-se neste recurso a publicidade externa do processo penal, ou seja, a liberdade dos meios da comunicação social noticiarem a actividade da justiça e a legitimação material do direito penal, tendo como pano de fundo os limites do direito da crónica judiciária.
5. A concretização desse direito, está globalmente positivada nos vários números no artigo 88.° do C.P.P., sendo objecto específico deste recurso o conflito entre a liberdade de imprensa versus o bem pessoal do direito à palavra e serenidade da administração da justiça, conflito que emerge da discordância do acerto material da solução consagrada pela lei processual penal portuguesa, tal como a perspectivou a interpretação normativa feita pelo tribunal recorrido da al. b), do n.°2, do art.º 88.°, do C.P.P.
6. Cumpre ensaiar nestas alegações, uma aproximação à compreensão (densidade axiológica/material e teleológico/funcional) e extensão dos bens jurídicos em causa e referenciar as suas superfícies mais expostas à intempérie da controvérsia interpretativa, quer em si, quer às que assumem à luz da al. b), do n.° 2, do art.88.º, do C.P.P. e daí extrair, em sede de teoria constitucional, as adequadas conclusões.
7. A hipótese que no recurso se colocava à interpretação da alínea b), do n.°2, do artigo 88.º, para além de problemas sérios de subsunção — que nesta sede constitucional estão prejudicados por constituírem questões infraconstitucionais — era saber se, no caso de não se verificar tomada de som pelos órgãos de comunicação social e tendo havido a sua gravação em suporte magnético do próprio tribunal, os referidos órgãos dela podiam tornar conhecimento e, nomeadamente, transmitir o som gravado, a partir da prolação da sentença, ou se, pelo contrário, esse suporte ficaria eternamente sepultado, nas prateleiras de um qualquer arquivo morto, como proibição absoluta e sem a relevância de se assumir com a possibilidade de constituir um arquivo histórico de consulta, estudo e informação pela comunicação social.
8. A recorrente defendeu junto do tribunal de recurso, a perspectiva segundo a qual o que a identificada al. b), do n.° 2, do art. 88.° do C.P.P. proíbe, é a tomada de som e transmissão durante a audiência de julgamento e até à prolação da sentença da primeira instância.
9. Esta interpretação vai ao encontro da tutela do interesse público de precaver a serenidade da administração da justiça, para evitar alarido, especulações e conjecturas sobre decisões a proferir, e à tutela, em termos adequados e proporcionais do direito à palavra.
10. A partir daí, cessa a razão de ser da sua tutela temporal, que se esgota no termo da própria audiência de julgamento, não se reconhecendo razões válidas para que a comunicação social e, no caso em apreço a televisão, não possa transmitir o som assim gravado em eventual reportagem ou investigação jornalística que entenda dever fazer, até porque os suportes magnéticos, com a gravação da audiência de julgamento, são peças processuais para o efeito da al. a), do n.° 2, do art.° 88.° do C.P.P.
11. Ao colocar assim a questão ao tribunal recorrido, a recorrente tinha a consciência que não é isenta de dificuldades a tarefa de levantamento dos traços fundamentais do regime normativo e da estrutura dogmática da figura das gravações ilícitas e das dificuldades que iria encontrar, sendo certo que as dissonâncias e as distensões de interpretação surgiam logo à partida como inevitáveis, tendo em conta o irredutível coeficiente de equivocidade estrutural que resulta do facto da al. b), do n.°2, do artigo 88.°, do C.P.P., não assinalar o momento até quando releva ou vigora a proibição para a hipótese nela prevista.
12. Sempre na perspectiva da recorrente, qualquer interpretação do normativo em causa que não colocasse um limite temporal à possibilidade de livre acesso ao som dos registos magnéticos realizados pelo tribunal e os declarasse eternamente inacessíveis, sem autorização do tribunal e consentimento dos intervenientes, violaria os artigos 38.°, n.º 1 e 18.º, n.º 2, da Constituição das República Portuguesa, sem prejuízo do supra entendimento dos suportes magnéticos como peça processual enquadrada no disposto na al. a), do n.°2, do art. 88.° do C.P.P.
13. O Tribunal da Relação de Lisboa fez outra interpretação e rejeitou este entendimento da recorrente e afastou qualquer inconstitucionalidade no conteúdo material da al. b), do n.° 2, do art.º 88.º, do C.P.P., face ao que prescrevem aqueles artigos.
14. Essencialmente argumentou com o direito à reserva e à transitoriedade da palavra falada que deve ser lido em simultâneo com a identidade pessoal, bem assim com o interesse público da serena administração da justiça, sem qualquer pressão da publicidade.
15. A liberdade de imprensa emerge, ela própria, como um direito fundamental e como uma instituição moral e política basilar e irrenunciável da sociedade democrática e do Estado de Direito, ou seja, um elemento essencial e constitutivo de um estado assente na liberdade. Não é, aliás, outro o sentido a adscrever à liberdade de imprensa reconhecida e protegida elos artigos 37.° e 38.° da Constituição da República Portuguesa, como manifestação paradigmática das liberdades de expressão e informação.
16. A liberdade de imprensa configura um dos mais proeminentes fundamentais reconhecidos e protegidos pela Constituição, afirmação que se conforta, desde logo, no artigo 18.°, que consagra a garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, logo também da liberdade de imprensa, o que à partida e em caso de conflito empresta a esta uma natural posição de preferência.
17. A liberdade de imprensa é, assim, fundamental para o sistema constitucional democrático, pois é ela que suporta a confiança de que as decisões do poder e dos próprios tribunais estão expostas ao escrutínio da crítica e a esperança de que no futuro será sempre possível ultrapassar as injustiças por procedimentos democráticos.
18. É por isso que o Estado está obrigado, no desenho da ordem jurídica e sempre que a área de vigência de uma norma contenda com a imprensa, a levar em linha de conta o postulado da sua liberdade, o que não pode deixar de se reflectir na al. b, do n.°2, do art.° 88.°, do C.P.P.
19. O estatuto do direito fundamental da liberdade de imprensa impõe limites aos limites a impor à liberdade de imprensa, embora com o reconhecimento axiomático de que esta não configura um direito ou valor absoluto a impor-se ou sobrepor-se a todos os direitos ou valores. Não está assim em causa um irrestrito direito constitucional de informação que advoga o silenciamento praticamente total do direito à palavra.
20. A al. b, do n.° 2, do art.° 88.°, do C.P.P. no que toca à sua eficácia limitadora do direito fundamental de liberdade de imprensa de crónica judiciária tem que ser interpretado de modo a que fique sempre salvaguardado o conteúdo axiológico próprio deste direito e a interpretação não redunde numa como que proibição da profissão de jornalista.
21. Ele deve ser interpretado a partir do conhecimento do significado valorativo do direito fundamental da liberdade de imprensa e, por via disso, ser esse normativo limitado na sua eficácia limitadora do direito fundamental da liberdade de imprensa, presente naquela norma.
22. A ponderação que se torna necessário fazer dos interesses subjacentes aos direitos fundamentais em colisão deve tomar necessariamente em conta o significado institucional de uns e de outros numa relação flexível, em que o ponto de partida da interpretação deve ser dado pela posição fundamental que a liberdade de expressão ocupa no sistema do estado democrático de direito.
23. Não é pacífico o diagnóstico do regime normativo e da estrutura do crime de desobediência nas gravações ilícitas da tomada de som das audiências de julgamento e nomeadamente não pode considerar-se isento de dúvidas o exacto valor axiológico do bem jurídico protegido do direito à palavra, contido na al. b), do n.° 2, do art.° 88, do C.P.P.
24. De um modo geral, a lei garante ao autor da palavra o controlo das pessoas a quem ela há-de puder chegar. Daí que formulações como “ a inocência das expressões orais e a confiança na volatilidade da palavra não pronunciada em público”, “a inocência e a protecção face à perpetuação da palavra dita com a intenção, de ser fugaz”, “ o poder soberano de domínio acústico sobre a própria palavra falada,” e outras do mesmo teor, estejam muito presentes na doutrina e jurisprudência.
25. Se em regra este é o sentido axiológico e normativo conferido ao direito de étimo pessoal que é o bem jurídico da palavra, deve-se levar em linha de conta que nem sempre será assim e há que atender às especificidades contidas nos casos singulares que se apresentem.
26. É o que acontece na hipótese da palavra inscrita na “tomada de som relativa à prática de qualquer acto processual, inclusive a audiência.”, da al. b), n.° 2, do art.° 88.º do CPP, já que nesta hipótese, em nosso juízo, e de acordo com algumas orientações jurisprudenciais e doutrinais, faz todo o sentido atribuir à palavra uma dignidade, hierarquia e regime variáveis em função das várias situações que podem ocorrer.
27. Nessas formulações, brevitatis causa, se a palavra corresponde à área nuclear inviolável, goza de uma tutela geral absoluta, sendo intolerável o seu sacrifício e estando subtraída à ponderação de quaisquer outros valores ou interesses. Será outro o tratamento reservado à palavra pertinente à esfera da vida privada, já aberta à ponderação com outros bens ou valores, e nessa medida, susceptível de ser sacrificada em nome de interesses considerados superiores, e nos termos consentidos pelo princípio de proporcionalidade. Nestes casos, é o conteúdo objectivo da comunicação que aparece em primeiro plano, de tal forma que a personalidade do interlocutor desaparece quase por completo, perdendo, por isso, a palavra o seu carácter privado.
28. Assim pensamos dever acontecer com a palavra inscrita no registo de som magnético, realizado em audiência por iniciativa do tribunal, a partir da prolação da sentença.
29. No caso do normativo que aqui se discute, tem todo o sentido distinguir: por um lado, as gravações feitas por quem não estava autorizado a fazê-las; por outro, as feitas por quem as podia fazer e tinha essa competência - o tribunal - em registo magnético próprio. As primeiras são ilícitas e não consentidas, as segundas são, obviamente, lícitas e consentidas.
30. Para efeitos do normativo que se discute no presente recurso, esta distinção é um meio operativo adequado a obter a superação do conflito emergente da interpretação normativa do acórdão em crise, constituindo um correcto exercício heurístico e hermenêutico da situação.
31. A tutela do direito à palavra de uma gravação ilícita, não pode nem deve ter o mesmo tratamento do direito à palavra de uma gravação lícita. Nesta última hipótese, não estão presentes, pelo menos de forma tão impressiva, as preocupações do atropelo da “intencionalidade e a confiança da palavra na sua transitoriedade e historicidade,” que poderiam conduzir à” falsificação da imagem da personalidade”, bastando-se esta com um razoável período de tempo de privacidade, no caso, até ao termo da audiência.
32. O discurso argumentativo conclusivo precedente, chama à colação duas perspectivas teóricas consubstanciadas pelo que a doutrina conhece por “teoria dualista” e “teoria monista” sobre gravações.
33. A primeira, defende a proibição à utilização não consentida tanto de gravações ilicitamente produzidas como de gravações licitamente produzidas.
34. A segunda, perfilha o entendimento de só ser punível a audição não consentida das gravações ilicitamente produzidas, tese que, embora defendida pela recorrente em sede de área de tutela típica, ou seja, a exacta determinação da extensão da matéria proibida pela controversa alínea b), não teve acolhimento no acórdão recorrido o que a acontecer levaria à sua absolvição.
35. Com as adaptações necessárias, esta doutrina deve migrar e ser acolhida como critério para o correcta interpretação da al. b, do n.° 2, do art., 88.º do C.P.P., no sentido da superação do conflito entre o bem jurídico da liberdade de imprensa e o bem pessoal do direito à palavra e o de uma justiça tranquila e serena sem pressões de publicidade, à luz da ponderação de interesses e do princípio da proporcionalidade.
36. Compreende-se e justifica-se que razões de interesse público da boa administração da justiça proíbam, sem autorização ou consentimento dos intervenientes processuais, a transmissão do som que está a ser gravado no decurso da audiência em suporte magnético pelo próprio tribunal.
37. Mas, se esse som, após a prolação da sentença, chega ao conhecimento e disponibilidade dos órgãos de comunicação social, maxime, da televisão, cessa, por um lado, a, razão de ser da protecção daquele bem jurídico e, por outro, não se pode autonomizar como bem absoluto a palavra nele contido, em conflito aberto e frontal com o direito de comunicação e liberdade de imprensa na sua transmissão.
38. Se nesse momento, o som assim gravado chega ao conhecimento dos órgãos de comunicação social, que o reproduzem ou transmitem em trabalho de investigação ou reportagem, o eventual conflito entre o direito de étimo pessoal da palavra, bem assim o da administração da justiça sem publicidade, versus e o da liberdade de comunicação e imprensa, tem que resolver-se a favor deste último. Só um intenso abuso de direito imporia solução contrária.
39. A palavra do interveniente processual, na hipótese recenseada, dilui-se, perdendo, por isso, o seu carácter privado e fugaz, tendo todo o sentido afirmar-se que, in casu, a al. b, do n.° 2, do art.° 88.º, do C.P.P., no que toca à sua eficácia limitadora do direito fundamental de liberdade de imprensa de crónica judiciária, tem que ser interpretado de modo a que fique sempre salvaguardado o conteúdo axiológico próprio deste direito e a interpretação não redunde numa como que proibição da profissão de jornalista.
40. Ele deve ser interpretado a partir do conhecimento do significado valorativo do direito fundamental da liberdade de imprensa e, por via disso, ser esse normativo limitado na sua eficácia limitadora do direito fundamental da liberdade de imprensa, presente naquela norma.
41. A ponderação que se torna necessário fazer dos interesses subjacentes aos direitos fundamentais em colisão, deve tomar necessariamente em conta o significado institucional de uns e de outros numa relação flexível, em que o ponto de partida da interpretação deve ser dado pela posição fundamental que a liberdade de expressão ocupa no sistema do estado democrático de direito.
42. Neste plano, o direito fundamental correspondente à liberdade de imprensa só comporta as restrições consentidas por lei e preordenadas à salvaguarda de outros valores ou interesses constitucionalmente tutelados e contidos nas exigências da necessidade, idoneidade e adequação. E, ainda, o da proporcionalidade, este aflorado no art.°18.°, n.° 2, da Constituição, e todos decorrentes, iniludivelmente, da ideia de Estado Democrático de Direito, consagrado no art.° 2.° da Lei Fundamental.
43. Numa aproximação rigorosa ao regime jurídico do direito penal de comunicação, não será arriscado serem pacíficas as exigências destes princípios e, salvo melhor opinião, só as cumpre e realiza a interpretação que vimos construindo e perfilhando. Com ela, os traços da discórdia interpretativa perderão claramente relevo e peso em relação aos momentos de comunicabilidade e consenso - o que se pretende e deseja.
44. Num Estado de direito material, de raiz social democrática, o direito penal só pode e deve intervir com uma disciplina que impeça lesões insuportáveis das condições essenciais de livre desenvolvimento e realização de personalidade de cada homem, ou seja, de acordo com critérios que além de justos, levem consigo o selo de água dos princípios enunciados.
45. O acórdão recorrido arvora o direito pessoal à palavra de forma absoluta e irrestrita e infringe, por um lado, o mandamento da salvaguarda do núcleo essencial do direito sacrificado da liberdade de imprensa, e por outro lado, a proibição de um sacrifício desmesurado ou desproporcionado, paradigma a que hão-de, em qualquer caso, conformar-se as instâncias formais, maxime, o legislador e os tribunais, no recorte da disciplina normativa dos conflitos de direitos fundamentais. Critérios interpretativos que emergem também como imperativos de protecção, o reverso necessário e indeclinável das proibições de agressão.
46. Salvo o devido respeito por opinião contrária, o acórdão em crise ao não cumprir os requisitos e critérios acima expostos, e olvidar, outrossim, o princípio segundo o qual os conflitos entre direitos fundamentais não deverão superar-se por via de sacrifício total de um deles e, em vez disso, há-de procurar-se a ambos a mais extensa e consistente protecção em concreto praticável, reivindica-se de uma interpretação desproporcionada e inadequada, que extrapola mecanicamente, para o normativo controvertido neste recurso, a disciplina nua e crua de outros regimes e contextos jurídicos diferentes, sem as figurações normativas — axiológicas e reduções teleológicas que o caso impõe.
É, pois, inconstitucional a interpretação da al. b), do n.° 2, do art. 88.°, do C.P.P., na interpretação normativa que dele fez o acórdão recorrido — acima devidamente identificado na conclusão n.° 2 — que, assim, violou o art. 38.º, n.° 1, conjugado com o art.º 18.º, n.° 2, da CRP.»
4. O Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:
«1) As infracções relativas à liberdade de expressão e informação, em que a liberdade de imprensa se integra, “ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei” (cfr. art. 37.°, n.° 3, da Constituição);
2) Por outro lado, nos termos do art. 18.°, n.° 2, igualmente do texto constitucional, “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”;
3) No caso do presente recurso, as restrições à liberdade de expressão, encontram-se previstas na lei, designadamente no art. 88.°, n.° 2, alínea b), do Código de Processo Penal;
4) Por outro lado, as restrições previstas, nesta disposição, destinam-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, designadamente o direito a uma correcta e serena administração da justiça e os direitos de personalidade daqueles que tenham necessidade de participar em processos criminais;
5) Acresce que a solução legislativa encontrada, no âmbito do Código de Processo Penal, respeita o princípio da proporcionalidade, ou seja, os meios legais restritivos situam-se numa justa medida e não são desproporcionados ou excessivos em relação aos fins que se pretendem obter;
6) Assim, o legislador nacional agiu no âmbito da sua margem de discricionariedade, ao prever a reacção penal consagrada no art. 88.°, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal;
7) Este Tribunal Constitucional deverá, pois, negar provimento ao recurso em apreciação.»
5. Ocorreu mudança de relator, por o primitivo relator ter cessado funções neste Tribunal. Teve lugar, posteriormente, nova mudança de relator, por vencimento. Cumpre apreciar e decidir.
II – Delimitação do objecto do recurso
6. A recorrente vem pedir a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 88.º, n.º 2, alínea b), do CPP, quando interpretada no sentido de que proíbe, sem limite de tempo, que a comunicação social transmita, sem autorização, a gravação do som da audiência de julgamento, contido no suporte magnético do próprio tribunal, por violação do artigo 38.°, n.° 1, conjugado com o artigo 18.°, n.º 2, ambos da Constituição.
O artigo 88.º, n.º 2, alínea b), do CPP, estabelece o seguinte:
«Artigo 88.º
Meios de comunicação social
1 - É permitida aos órgãos de comunicação social, dentro dos limites da lei, a narração circunstanciada do teor de actos processuais que se não encontrem cobertos por segredo de justiça ou a cujo decurso for permitida a assistência do público em geral.
2 - Não é, porém, autorizada, sob pena de desobediência simples:
a) A reprodução de peças processuais ou de documentos incorporados no processo, até à sentença de 1.ª instância, salvo se tiverem sido obtidos mediante certidão solicitada com menção do fim a que se destina, ou se para tal tiver havido autorização expressa da autoridade judiciária que presidir à fase do processo no momento da publicação;
b) A transmissão ou registo de imagens ou de tomadas de som relativas à prática de qualquer acto processual, nomeadamente da audiência, salvo se a autoridade judiciária referida na alínea anterior, por despacho, a autorizar; não pode, porém, ser autorizada a transmissão ou registo de imagens ou tomada de som relativas a pessoa que a tal se opuser;
c) A publicação, por qualquer meio, da identidade de vítimas de crimes de tráfico de pessoas, contra a liberdade e autodeterminação sexual, a honra ou a reserva da vida privada, excepto se a vítima consentir expressamente na revelação da sua identidade ou se o crime for praticado através de órgão de comunicação social.
3 - Até à decisão sobre a publicidade da audiência não é ainda autorizada, sob pena de desobediência simples, a narração de actos processuais anteriores àquela quando o juiz, oficiosamente ou a requerimento, a tiver proibido com fundamento nos factos ou circunstâncias referidos no n.º 2 do artigo anterior.
4 - Não é permitida, sob pena de desobediência simples, a publicação, por qualquer meio, de conversações ou comunicações interceptadas no âmbito de um processo, salvo se não estiverem sujeitas a segredo de justiça e os intervenientes expressamente consentirem na publicação.»
A recorrente, nas alegações apresentadas neste Tribunal Constitucional, parece, a dado passo da argumentação, restringir a interpretação normativa que pretende ver sindicada, fazendo depender a autorização judicial da verificação da inexistência de oposição dos participantes processuais que tenham prestado depoimento:
«12. Sempre na perspectiva da recorrente, qualquer interpretação do normativo em causa que não colocasse um limite temporal à possibilidade de livre acesso ao som dos registos magnéticos realizados pelo tribunal e os declarasse eternamente inacessíveis, sem autorização do tribunal e consentimento dos intervenientes, violaria os artigos 38.°, n.º 1 e 18.º, n.º 2, da Constituição das República Portuguesa, sem prejuízo do supra entendimento dos suportes magnéticos como peça processual enquadrada no disposto na al. a), do n.°2, do art. 88.° do C.P.P.»;
(…)
«36. Compreende-se e justifica-se que razões de interesse público da boa administração da justiça proíbam, sem autorização ou consentimento dos intervenientes processuais, a transmissão do som que está a ser gravado no decurso da audiência em suporte magnético pelo próprio tribunal. »
Contudo, acaba sempre por pedir a fiscalização da constitucionalidade da norma quando interpretada no sentido de que proíbe, sem limite de tempo, que a comunicação social transmita, sem autorização, a gravação do som da audiência de julgamento, contido no suporte magnético do próprio tribunal.
Por outro lado, como resulta da matéria dada como provada pelas instâncias, no caso dos autos a ora recorrente foi condenada pelo crime de desobediência simples, nos termos acima referidos, com fundamento, além do mais, no facto de ter incluído numa reportagem por si efectuada num determinado canal televisivo – e que versava sobre o julgamento de certa pessoa, visando demonstrar que tinha ocorrido erro judiciário – parte das gravações efectuadas na audiência desse julgamento pelos serviços do tribunal em causa, às quais teve acesso de modo não apurado. Foram reproduzidos, nomeadamente, a audição das perguntas feitas pelos Juízes e pelo Procurador da República, bem como o depoimento de diversas testemunhas, não havendo sido pedida autorização, ao Juiz Presidente do Colectivo desse tribunal, para a transmissão de qualquer som obtido na audiência.
Apesar de a 1.ª instância ter valorado a circunstância de, além da autorização do juiz, não ter também tido lugar a autorização das pessoas que prestaram depoimento, da qual aquela autorização judicial dependeria (fls. 675), o Tribunal da Relação, que proferiu a decisão recorrida, fundou a sua decisão na mera ausência de autorização da autoridade judiciária.
Razão pela qual se conhecerá da constitucionalidade da norma do art. 88.º, n.º 1, alínea b), do CPP, quando interpretada no sentido de que proíbe, sem limite de tempo, que a comunicação social transmita a gravação do som da audiência de julgamento, contido no suporte magnético do próprio tribunal, sem que tenha havido autorização da autoridade judiciária que preside à fase do processo no momento da divulgação.
III. Fundamentação
7. O parâmetro constitucional invocado é a garantia de liberdade de imprensa (artigo 38.º, n.º 1, da CRP).
Antes, mesmo, de qualquer ponderação com outros bens ou valores constitucionais em colisão, a invocação suscita a questão prévia de saber se, in casu, atentas a autoria (os serviços do próprio tribunal) e a específica finalidade processual da gravação do som, a sua posterior divulgação, para fins mediáticos, não estará, prima facie, fora do âmbito de protecção daquela liberdade. Isso porque a obtenção desse elemento informativo por um órgão da comunicação social poderá estar ferida de ilegalidade, o que, em certo entendimento, excluiria esta situação do programa constitucional de protecção da liberdade de imprensa. A ser assim, não estaríamos perante qualquer problema de colisão de direitos fundamentais, pois então este bem não teria de ser considerado.
A questão prende-se com o reconhecimento de limites imanentes implícitos aos direitos fundamentais. Estes existirão, na óptica de VIEIRA DE ANDRADE, «sempre que (e apenas quando) se possa afirmar, com segurança e em termos absolutos, que não é pensável em caso algum que a Constituição, ao proteger especificamente um certo bem através da concessão e garantia de um direito, possa estar a dar cobertura a determinadas situações ou formas de exercício; sempre que, pelo contrário, deva concluir-se que a Constituição as exclui sem condições nem reservas» (Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª ed., Coimbra, p. 276-277).
Para JÓNATAS MACHADO (Liberdade de expressão – dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, Coimbra, 2002, p. 578), «a publicação de conteúdos informativos recolhidos ilegalmente deva[e] ser prima facie protegida, a menos que se prove que a empresa jornalística, ou o jornalista responsável, de alguma forma participaram, como autores morais, na recolha ilegal de informações».
Ora, no caso sub judicio, a gravação, em si, efectuada pelos serviços do tribunal, foi lícita, e não se apurou em que circunstâncias concretas esta chegou à posse da jornalista autora da reportagem em que o som foi inserido.
Por outro lado, cremos que, para este efeito, se justifica uma separação entre a obtenção da informação e a sua divulgação - em conformidade, até, com a sua previsão em distintas alíneas do n.º 2 do artigo 38.º da CRP. Ainda que coenglobadas na estrutura complexa da liberdade de imprensa, de que representam manifestações concretizadoras, o facto de certas formas de obtenção não gozarem de tutela jurídico-constitucional não acarreta automaticamente igual tratamento da difusão, uma vez obtido o elemento a transmitir. Nesse sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional alemão, em sentença referida, com concordância, por COSTA ANDRADE (Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal. Uma perspectiva jurídico-criminal, Coimbra, 1996, p. 313-314). Há que ponderar, designadamente, a censurabilidade da conduta do profissional, a sua participação causal na lesão do bem afectado, a gravidade desta e o relevo dos interesses atingidos.
No caso dos autos, a gravação foi licitamente efectuada, e o acesso a ela, em si mesmo (para fins, por exemplo, de reprodução, por escrito, do seu conteúdo), não mereceria reparos. Por outro lado, como vimos, não resulta dos autos prova no sentido de ter existido, por parte da jornalista, ilegalidade na obtenção da gravação. E, como se extrai do que atrás se escreveu, apenas no caso de ser censurável a conduta daquela, poderíamos ter de concluir que tal conduziria liminarmente à exclusão da utilização do som e imagens assim obtidos da protecção constitucional propiciada pela liberdade de imprensa.
Assim não tendo sido provado, a questão nasce porque à jornalista foi propiciada a possibilidade de transmitir as próprias palavras pronunciadas na audiência de julgamento, possibilidade que ela aproveitou ao exercer a sua liberdade de comunicação televisiva. É na sua divulgação que se deve concentrar a valoração, em termos jurídico-constitucionais, da actuação jornalística. Está em causa ajuizar se esta concreta forma de exercício da liberdade de expressão e criação (alínea a) do n.º 2 do artigo 38.º), com utilização de palavras proferidas, no acto de julgamento, por intervenientes processuais, está constitucionalmente caucionada pela liberdade de imprensa, mesmo tendo em conta a afectação, por essa forma, de bens também protegidos pela Constituição.
Essa já é, todavia, uma questão de ponderação entre a liberdade de imprensa e outros direitos com ela em colisão ou outros valores com ela conflituantes.
8. Sendo assim, o passo seguinte será o de apurar o impacto restritivo ou condicionante que a solução consagrada na norma questionada tem sobre a liberdade de imprensa. Dessa caracterização precisa vai depender a determinação da zona e do grau de afectação do bem constitucionalmente protegido – um dado de sumo relevo na avaliação da conformidade constitucional da solução.
No âmbito dessa tarefa, importa sublinhar, antes de mais, que não estamos perante um impedimento ao exercício da liberdade de imprensa, no respeitante ao relato do que se passou na audiência de julgamento do processo em causa. Essa narração é inteiramente livre, nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do CPP.
O disposto no n.º 2, alínea b), deste mesmo artigo contende apenas com certa forma de exercício da liberdade de imprensa, i.e., com a transmissão da gravação do som de uma audiência. E não se trata da proibição tout court de comunicar o teor desse acto processual por esse meio, mas antes o de sujeitar a tomada – que não está aqui em causa - e reprodução de imagens e som relativas ao decurso da audiência a uma reserva de autorização judicial. A licitude dessa forma de exercício da liberdade de imprensa fica dependente de ter sido previamente pedida e concedida autorização do juiz que presidir à fase de julgamento.
Não podemos, pois, concordar com a arguição de que o disposto na norma impugnada representa “o sacrifício total” dessa liberdade constitucionalmente garantida. Estamos apenas perante a consagração de uma condição limitativa, que pode, é certo, redundar em sacrifício para o bem protegido (em caso de recusa de autorização), o qual, todavia, nunca será total, pois deixa incólumes as restantes formas de exercício da liberdade de imprensa.
Saber se esse condicionamento respeita os limites às restrições aos direitos, liberdades e garantias, designadamente os resultantes do princípio da proporcionalidade, é o objecto da questão de constitucionalidade sub judicio.
Para a formulação da resposta a esta questão, há que identificar as razões que podem, em geral, ser avançadas para justificar resguardos e entraves limitativos à informação, por órgãos da comunicação social, da prática de actos judiciários submetidos a um regime de publicidade.
9. Algumas dessas razões vêm impressivamente descritas no Acórdão n.º 605/2007, desta 2.ª Secção, ainda que a propósito da incriminação estabelecida pela alínea a) do n.º 2 do artigo 88.º do CPP:
«Esta incriminação não visa apenas proteger o exercício da administração da justiça, de forma a evitar especulações, conjecturas extraprocessuais e movimentos de pressão da opinião pública sobre os caos em apreciação pelos tribunais, que possam perturbar a serenidade, a isenção e a independência que deve presidir à tomada das decisões judiciais. Não deixando de ter presente a fase processual em que neste processo se verificou a conduta tipificada, podemos dizer que a sua criminalização é plurisignficativa no plano axiológico, sendo múltiplos os bens jurídicos tutelados: além do referido interesse público na realização de uma justiça isenta e independente, poupada a intromissões de terceiros, a especulações sensacionalistas ou a influências que perturbem a serenidade dos julgadores; o interesse do arguido em não ver publicamente revelados factos que podem vir a não ser considerados provados sem que com isso se evitem graves prejuízos para a sua reputação e dignidade; e o interesse de outras partes ou intervenientes no processo, designadamente os presumíveis ofendidos, na não revelação de certos factos prejudiciais à sua reputação e consideração social, ou que invadam a esfera da sua vida íntima».
Estas razões diversificadas podem ser agrupadas em duas grandes categorias de justificações para a consagração de limites à liberdade de imprensa, quando exercitada em relação à prática judiciária: preservar as condições de uma adequada administração da justiça e salvaguardar direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, em colisão potencial com aquela liberdade.
10. A essas razões gerais há a acrescentar razões específicas, atinentes à fase processual em causa – a audiência de julgamento – e aos meios utilizados para a recolha e difusão da informação. Cumpre salientar, na verdade, que o modo operativo dos meios técnicos necessários à tomada de som e ao registo de imagens é de molde a influenciar o próprio desenrolar daquele acto processual, pois alteram o “ambiente” em que ele é praticado e os comportamentos dos intervenientes processuais (cfr. JORGE BAPTISTA GONÇALVES, “ O processo penal e os media: algumas reflexões”, Revista do CEJ, 2005, n.º 3, 73 s., 90-91).
Não estão em causa, apenas, as particulares formas e extensão comunicativas que os meios audiovisuais proporcionam de um acontecimento, uma vez ele produzido, mas também o risco sério de interferência performativa no modo da sua produção. Para além da maior ressonância mediática e da mais ampla publicidade que estes meios propiciam, em si mesmos favoráveis a um desejável escrutínio, pelos cidadãos, da função de julgar, mas também propícios a uma montagem de julgamentos paralelos, na praça pública, a captação, em directo, de imagens e de som de um julgamento, com todo o aparato que tal envolve, pode condicionar a actuação, em juízo, de todos quantos são chamados a intervir.
É sobretudo esta razão que justifica, cremos, o tratamento diferenciado da recolha de informação, por escrito, e do seu registo fílmico ou fonográfico: enquanto que a primeira é, em princípio, livre, já o segundo depende de autorização.
E esta última solução está inteiramente em linha com o princípio 14 do Anexo à Recomendação n.º Rec(2003)13, do Comité de Ministros do Conselho da Europa (transcrita na Revista do Ministério Público, n.º 97 (2004), 167 s.), o qual dispõe o seguinte:
«As reportagens em directo ou as gravações efectuadas pelos meios de comunicação social nas salas de audiências não devem ser possíveis, salvo se e na medida em que a lei ou as autoridades judiciárias competentes o permitam expressamente. Tais reportagens só devem ser autorizadas se delas não resultar risco sério de influência indevida sobre as vítimas, as testemunhas, as partes nos processos penais, os jurados e os magistrados».
Como resulta do texto, e o comentário apenso à Recomendação melhor esclarece (designadamente quando refere que as testemunhas e as vítimas “podem sentir-se intimidadas pelas câmaras e meios de comunicação social ou ser conduzidas a posar perante elas”), no horizonte de valoração que determinou um tal regime esteve presente a necessidade de prevenir a possível perturbação para o desenrolar das audiências judiciais das reportagens em directo e gravações efectuadas no seu decurso.
11. Quando, como nos presentes autos, está em causa apenas a transmissão (e não a tomada) de som, efectuada após o decurso da audiência de julgamento e a prolação de sentença, parte das razões justificativas da limitação à divulgação da palavra, atinentes à salvaguarda das condições de uma boa administração da justiça, perdem o seu peso. Nestas circunstâncias, a utilização, numa reportagem televisiva, de som gravado de uma audiência de julgamento, já não pode ter impacto no seu desenrolar, nem produzir “ruído externo” perturbador do funcionamento do aparelho judiciário num clima de serenidade, favorável a um desempenho funcional adequado dos decisores judiciais. É incontroverso que a difusão desse som, qualquer que seja o efeito que, com ela, se pretenda obter, já não é susceptível de influenciar, de modo nefasto, o decurso e o resultado do julgamento nele reproduzido.
Quando muito, se à reportagem presidir uma intencionalidade crítica, a utilização do registo sonoro do julgamento (ou de parte deste) pode contribuir para criar ou reforçar, junto da opinião pública, uma imagem negativa do funcionamento do sistema judicial.
O conhecimento, com a decorrente possibilidade de controlo, da forma como o poder jurisdicional exerce as funções soberanas que lhe são cometidas, de “administrar a justiça em nome do povo” (artigo 202.º, n.º 1, da CRP), é da essência do Estado de direito democrático (artigo 2.º). Nas sociedades modernas, esse conhecimento não prescinde da publicidade mediata que só os órgãos de comunicação social podem assegurar (cfr. JORGE BAPTISTA GONÇALVES, ob.cit., 90). Operando como os “olhos e ouvidos do público em geral” (JÓNATAS MACHADO, ob. cit., 569), aos profissionais desses órgãos cabe o papel insubstituível de, transcendendo o apertado círculo do testemunho presencial, facultado pelo acesso dos interessados à sala de audiências, que o princípio da publicidade processual garante, trazer a actuação dos tribunais para a esfera pública, em toda a dimensão desta.
Por isso mesmo, pelo papel que detém, no plano objectivo e institucional, de condição de controlo de exercício dos poderes públicos, incluindo o de administração da Justiça, a liberdade de imprensa e meios de comunicação social goza de específica e qualificada consagração constitucional (artigo 38.º). Liberdade que é garantida na multiplicidade das suas implicações, aí abrangida a “liberdade de expressão e criação dos jornalistas” (n.º 2, alínea a), daquele preceito), naturalmente referível, tanto a conteúdos, como a formas e instrumentos de comunicação.
Contudo, se após o decurso da audiência de julgamento e da prolação de sentença parte das razões atinentes à salvaguarda das condições de uma boa administração da justiça perdem a sua razão de ser, sendo também de valorizar razões de controlo e publicidade do exercício do poder jurisdicional, haverá ainda outras razões que persistam para justificar a limitação imposta à divulgação do som gravado da audiência-
12. Na particular configuração da questão de constitucionalidade que nos é posta mantém-se presente um outro campo de valoração conflitual, aparentemente apenas centrado na protecção dos direitos fundamentais dos intervenientes no processo, mas que, como assinalaremos, se justifica, também, na relação com a boa administração da justiça.
Dado que a sentença recorrida penalizou a utilização televisiva de um registo magnético da audiência de julgamento, está em causa, desde logo, o direito à palavra. A palavra falada integra expressamente o amplo e denso universo de bens pessoais protegidos pelo artigo 26.º da CRP, pois também pela palavra se exprime e define a individualidade própria de cada pessoa. Ela constitui, nesse sentido, um autónomo bem da personalidade.
O conteúdo do direito à palavra abrange, em princípio, tanto a permissão de gravação, por outrem, da voz do titular, como a decisão quanto à utilização da voz gravada. Compete ao próprio definir não só o se da gravação, mas também o como e o quando da audição futura da voz, isto é, em que condições, perante quem e em que contexto situacional ela pode voltar a ser ouvida.
No caso dos autos, porém, a primeira dimensão garantística do direito à palavra está prejudicada, porque a gravação dos depoimentos de todos os sujeitos intervenientes na audiência de julgamento está prescrita na lei do processo, visando acautelar um eventual recurso da matéria de facto. Na prossecução de fins legítimos, inerentes à própria administração da justiça, de acordo com a tramitação processual fixada, a gravação impõe-se a esses sujeitos, não ficando na sua livre autodeterminação uma decisão a tal respeito.
Então, havendo razões legítimas que motivam esta restrição à livre autodeterminação quanto à gravação da palavra, justifica-se um especial amparo a quem a profere, i.e., uma especial protecção relativamente à utilização da palavra gravada, para além dos fins legalmente previstos. Sendo a palavra registada por razões de funcionamento da administração da justiça, e não podendo quem depõe eximir-se a tal gravação, tem-se por justificada a especial tutela traduzida na restrição imposta à comunicação social quanto à sua divulgação. Ou seja, uma vez que a gravação é legalmente determinada por razões processuais, é merecedor de especial protecção aquele que sujeita a sua palavra a registo, sem que a tal se possa recusar.
Uma vez que o registo sonoro é predeterminado a uma finalidade específica, só as audições que se justifiquem pela consecução desse fim, mantendo-se dentro da função programada, dispensam a autorização do dono da voz. Proferidas, no passado, em certas circunstâncias concretas de lugar e tempo, numa “atmosfera” muito marcada pela rígida e formalizada estrutura de um julgamento, as palavras não podem ser transpostas para contextos com uma muito diversa lógica e intencionalidade comunicacionais, sem que, em princípio, o titular seja chamado a consentir.
Mesmo nestes casos, em que a gravação é levada a cabo pelas instâncias judiciais, inserindo-se na actividade, que a estas compete, de julgamento, “ a lei garante – como a própria recorrente reconhece – ao autor da palavra o controlo das pessoas a quem ela há-de poder chegar” (COSTA ANDRADE, ob. cit., 126). Garante, pelo menos, que as palavras não podem ser reaproveitadas em utilizações que extravasam dos fins processuais da gravação, ao arrepio da vontade da pessoa que as proferiu.
Nem se diga, em contrário, que não está em causa a reserva da intimidade privada, dada a congénita publicidade a que os depoimentos em julgamento estão, em regra, sujeitos. É a palavra, aqui proferida na audiência que é protegida, e não os eventuais interesses de confidencialidade ou de privacidade do seu conteúdo.
13. Em face do que fica dito, torna-se claro que a faculdade de oposição do autor das declarações gravadas em audiência de julgamento à sua posterior transmissão por um órgão da comunicação social (2.ª parte da alínea b) do n.º 2 do artigo 88.º do CPP), não só não merece reparo constitucional, como é imposta pela tutela constitucional do direito à palavra (artigo 26.º, n.º 1, da RP). As razões que justificam a gravação, sobrepondo-se ao direito à “volatilidade da palavra”, não legitimam a sua livre difusão fora do círculo da actividade judicial a que ela está estritamente funcionalizada. Nem, por outro lado, a solução comporta o sacrifício total da liberdade de comunicação do que se passou na audiência de julgamento. É livre o relato circunstanciado desse facto, incluindo do conteúdo das declarações gravadas, apenas ficando vedado a utilização de som ou de imagem colhidas no momento em que elas eram prestadas – bens pessoais dos autores das declarações, de que eles não perderam a disponibilidade, para todos os fins que não sejam os que legitimaram a sua captação.
Tem, assim, pleno anteparo constitucional a solução legislativa de garantir ao titular do direito à palavra que o som das palavras ditas em audiência de julgamento não seja divulgado, sem sua autorização, pela comunicação social.
Acresce, que a funcionalização, às actividades processuais, da gravação das palavras proferidas na audiência, concorre para a realização do interesse público da boa administração da justiça. Pelo que, a justificação da especial tutela do direito à palavra nestes casos - que é o facto de ser obrigatória a sua submissão a gravação no âmbito do processo -, contribuindo para a realização do interesse público da boa administração da justiça, legitima, a nosso ver, a intervenção do juiz.
14 O núcleo problemático da questão de constitucionalidade que nos ocupa convoca a aferição, pelos parâmetros decorrentes do princípio da proporcionalidade, da constitucionalidade da exigência de autorização judicial. Foi essa (e não por ter sido contrariada uma recusa de autorização) a dimensão da norma que esteve presente na condenação da recorrente pelo crime de desobediência, tido por cometido pelo facto de o som ter sido divulgado sem prévio pedido de autorização ao juiz competente.
Todavia, o juízo a formular quanto a esta questão não pode desprender-se da natureza dos bens cuja necessidade de tutela pode constituir, nesta fase, uma razão constitucionalmente credenciada para uma solução com potencial alcance restritivo da liberdade de comunicação social.
Ora, como acima foi antes sublinhado, tendo já decorrido a audiência de julgamento e sido proferida a sentença, a iniciativa de divulgação do som naquela gravado já não pode ferir o interesse público de uma boa administração da justiça, no sentido de justiça que se está fazendo, pela simples razão de que esta já foi realizada. Neste momento (pelo menos, após a formação de caso julgado), a divulgação da palavra gravada não mais poderá influenciar o decurso e o resultado do julgamento.
Permanece a necessidade de tutela do direito à palavra que é protegido com a possibilidade de oposição dos autores das declarações à divulgação do seu registo sonoro, mesmo após a prolação da sentença, e com o reforço que a necessidade de autorização do juiz lhe acrescenta. A tutela constitucional traduz-se, aqui, na preservação da autodeterminação quanto ao destino das palavras que são suas, mas que foram proferidas num contexto funcionalizado à realização da justiça.
De modo que perguntar pela justificação da exigência de autorização judicial redunda, desde logo, em ajuizar se esta é o meio adequado e necessário de salvaguarda, após o termo do processo em que a audiência de julgamento decorreu, do direito à palavra proferida naquela fase processual.
Relembre-se, por outro lado, que a palavra foi, então, registada para prossecução de fins legítimos de realização de justiça, não sendo facultada à pessoa que as profere a liberdade de se opor ao seu registo.
As suas palavras, assim gravadas, são também palavras proferidas no processo, pelo qual é responsável o juiz competente, a quem cumpre ser garante dos termos da utilização da palavra proferida à sua guarda.
A tutela da palavra e da manutenção da confiança na sua utilização apenas no contexto dos fins processuais em que foi proferida legitimam que o juiz possa ser aquele que primeiro sofre a pressão da sua divulgação para fins alheios ao processo, sobre si recaindo o dever da sua protecção antecipada.
Pelo que fica dito há que concluir que, na fase a que se reporta a questão de constitucionalidade em juízo, a exigência de autorização, para difusão mediática do som gravado, tem sentido, quer para protecção do direito à palavra, quer para salvaguarda dos fins legítimos de realização da justiça, prosseguidos com a gravação das palavras. Nessa fase, satisfeitas as razões processuais que determinaram a gravação, os interesses atendíveis concentram-se, por um lado, e de modo particular, na esfera privada do autor das declarações, detendo ele o domínio das palavras proferidas e da sua utilização, mas, por outro, também no interesse da boa administração da justiça, que garante àquele que, por obrigação legal, viu serem gravadas as suas palavras no âmbito do processo, a possibilidade de confiar que o titular do mesmo tutelará a sua divulgação para fins diferentes dos previstos na lei. Também por isso se justifica impor uma intervenção judicial autorizante e a previsão do crime de desobediência.
Não é, então, excessivo que possa contar com uma protecção reforçada aquele a quem a lei determinou que falasse e que visse registada a sua palavra, sem que a tal se pudesse eximir, e que, por lhe ser legalmente determinado, confiou a sua palavra à guarda do tribunal durante a audiência de julgamento. Não se revela desproporcionada a possibilidade de aquele à guarda de quem foram confiadas as palavras proferidas em julgamento poder realizar o devido acompanhamento do material recolhido por imposição legal, verificando o destino que lhe é dado.
A exigência de autorização judicial para a transmissão do som gravado de declarações em audiência de julgamento, na interpretação de que ela não está sujeita a qualquer preclusão temporal, persistindo para além do término do processo em que essa audiência se integrou, não constitui uma solução desconforme e excessiva, sendo justificada, quer pela tutela do direito à palavra, quer por razões de boa administração de justiça, que legitimam a intervenção condicionante da liberdade de comunicação social.
A obrigatoriedade de autorização judicial, na vertente no caso analisada, não viola o princípio da proporcionalidade, por se limitar “ao necessário para salvaguardar” o direito à palavra e à boa administração da justiça.
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 88.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que proíbe, sem limite de tempo, que a comunicação social transmita a gravação do som da audiência de julgamento, contido no suporte magnético do próprio tribunal, sem que tenha havido autorização da autoridade judiciária que preside à fase do processo no momento da divulgação.
b) Consequentemente, não conceder provimento ao recurso.
Custas pela recorrente fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte cinco) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2011.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, de acordo com a declaração anexa) – Rui Manuel Moura Ramos.
Tem voto de conformidade do Conselheiro Benjamim da Silva Rodrigues que não assina o acórdão por, entretanto, ter deixado de fazer parte do Tribunal.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não pude subscrever a posição que fez vencimento, por entender que a exigência de autorização judicial para a transmissão, por um órgão da comunicação social, da gravação do som da audiência de julgamento, após a realização desta e da prolação da decisão final, lesa desproporcionadamente a liberdade de expressão e criação dos jornalistas consagrada na alínea a) do n.º 2 do artigo 38.º da CRP, como componente da garantia de liberdade de imprensa e meios de comunicação social, reconhecida no n.º 1 do mesmo preceito.
No decurso da referida audiência e, até, na pendência posterior da causa, concorrem decisivamente para a justificação do condicionamento fixado na norma do artigo 88.º, n.º 2, alínea b), do CPP, interesses conexionados com a boa administração da justiça, bem caracterizados no acórdão a que esta declaração se anexa. Mas é minha convicção de que, após o termo do processo em que a audiência teve lugar, as restrições ou condicionamentos à liberdade de transmissão da gravação do som nela efectuada se justificam exclusivamente pela tutela do direito à palavra.
Não me afasto da ideia expressa na fundamentação de que é aqui adequada uma “protecção reforçada” deste direito, atendendo ao contexto em que as palavras foram proferidas e aos fins processuais que exigiram a sua gravação.
Mas, dentro do pressuposto de que parto, o regime fixado na norma impugnada ultrapassa em muito o que seria legitimado por essa finalidade protectiva, na medida em que a autorização para a transmissão pode ser negada pelo juiz, mesmo quando os titulares da palavra a tal se não oponham. Na verdade, a norma confere ao juiz o poder discricionário de recusar a transmissão, independentemente da disposição de vontade dos sujeitos da palavra; o que não pode é autorizá-la, se esses sujeitos não consentirem na transmissão.
É bom de ver que, nestes termos, o juiz não intervém apenas como garante qualificado do respeito pelo direito pessoal em causa, no âmbito de um procedimento que fosse imposto apenas para salvaguarda da efectiva audição e prestação do consentimento prévio dos autores das declarações a transmitir. Fora assim e nada haveria a censurar, do ponto de vista constitucional, à dimensão normativa questionada. Mas é manifesto que a autorização judicial vem predisposta com um trâmite em que se exercita um poder autónomo de decisão, podendo ser negada sem ou contra a vontade dos titulares da palavra – o único bem que, nesta fase, há a tutelar (no pressuposto, evidentemente, de que a audiência foi pública).
Ora, a protecção da palavra é a protecção da disponibilidade, pelo próprio, da palavra emitida (no caso, o ser chamado a consentir, ou não, na difusão sonora, por um meio da comunicação social, de palavras gravadas). Fundamento da tutela, a autodeterminação do titular é também, neste campo, o seu limite, resultando plenamente satisfeita com a imposição do consentimento do autor das palavras, como condição necessária (mas também suficiente) da licitude da transmissão. Como se diz pertinentemente na fundamentação do acórdão, «compete ao próprio definir [… ] também o como e o quando da audição futura da voz, isto é, em que condições, perante quem e em que contexto situacional ela pode voltar a ser ouvida».
O regime em causa excede esse limite, atentando contra as exigências de adequação e necessidade contidas no princípio da proporcionalidade, pelo que o tive, nessa medida, por constitucionalmente desconforme - Joaquim de Sousa Ribeiro.