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Processo n.º 873/10
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 271 foi proferida a Decisão Sumária n.º 11/2011, do seguinte teor:
Nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, decide-se:
1. A., recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), a impugnar o acórdão lavrado em 4 de Novembro de 2010 no Supremo Tribunal de Justiça. Invoca o seguinte:
«[...] C) A norma cuja aplicação foi recusada implicitamente por inconstitucionalidade.
Nos termos do disposto no artº. 351º. do Código de Processo Civil, se a penhora ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
Em face daquela norma, o Supremo Tribunal de Justiça interpretou-a e fez aplicação do artº. 354.º do mesmo Código no sentido de que a questão a resolver não é a da efectiva existência do direito, mas tão só o da sua probabilidade séria, a apreciar de acordo com a prova informatória produzida. Sendo, contudo, que aquele juízo de probabilidade foi feito não por referência aos factos alegados pela embargante, nem à prova produzida por esta, mas pela consideração “oficiosa” de que o contrato de arrendamento se tratou de um subterfúgio, que ninguém alegou, mas o Tribunal presumiu.
O Supremo Tribunal de Justiça, e antes o Tribunal da Relação de Lisboa, recusaram a aplicação dos artº. 351º. e 354.º do Código de Processo Civil, num dos seus sentidos possíveis – o de os embargos só poderem ser recebidos ou rejeitados à luz da prova produzida – por motivo de inconstitucionalidade, sendo aquela recusa implícita na fundamentação da decisão recorrida, na medida em que nesta se invoca a insindicabilidade da formação de convicções por meio de presunções, o que convoca os limites do poder jurisdicional constitucionalmente consagrado no artº. 202º. da Constituição da República Portuguesa.
São, assim, as normas conjugadas dos artºs. 351º. e 354º. do Código de Processo Civil, na interpretação que autoriza o Juiz a recusar a aplicação da primeira daquelas por recurso a presunções judiciais e sem a produção de qualquer prova, constituída ou constituenda, que milite no sentido de os embargos serem recusados, por ser inconstitucional à luz dos limites do poder jurisdicional constitucionalmente consagrado no artº. 202º. da Constituição da República Portuguesa.[...]»
2. Certo é que, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade. Impõe-se, no entanto, que a desaplicação da norma ocorra por força de um julgamento (expresso ou implícito) de desconformidade constitucional da norma que, em princípio, seria aplicável ao caso, não fora o vício de que padece.
Ora, na decisão sob recurso, o Supremo Tribunal de Justiça não procedeu a nenhuma operação de desaplicação dos artigos 351º e 354º do Código de Processo Civil por serem desconformes com a Constituição.
Por esta razão, não é possível dar por verificado que no acórdão recorrido o referido tribunal haja desaplicado, com fundamento em inconstitucionalidade, as aludidas normas do Código de Processo Civil.
Não ocorrendo tal requisito, essencial ao recurso previsto na aludida alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, não poderá conhecer-se do objecto do recurso.
3. Decide-se, por isso, não conhecer do recurso. Custas pela recorrente, [...]
2. Inconformada, A. reclama para a conferência nos seguintes termos:
[...]
I - A decisão recorrida
Interpôs a Recorrente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do art.º 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que decidiu manter a decisão de rejeição liminar dos embargos de terceiro apresentados pela Recorrente contra o despacho proferido nos autos de providência cautelar pendentes no 4.º Juízo Cível de Lisboa, sob o n.º 1562/02-A, que ordenou a entrega ao Recorrido de um imóvel situado na Calçada das Laranjeiras, no Porto, integrante da herança aberta por óbito de Jaime Amador e Pinho, imóvel esse de que a Recorrente é arrendatária.
II- Da recusa implícita de aplicação das normas contidas nos art.ºs 351.º e 354.º, do Código de Processo Civil, por motivo de inconstitucionalidade, quando interpretadas conjugadamente no sentido dos embargos só poderem ser recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante à luz da prova produzida.
1. Dispõe o artº 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, ao abrigo do qual interpôs o presente recurso, que:
[...]
2. Antes de mais, cumpre salientar que é entendimento pacífico na jurisprudência que o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade pode ter por objecto interpretações normativas e não apenas normas.
3. Disso mesmo dá nota Carlos Lopes do Rego quando refere que:
[...]
4. No que concerne à possibilidade da recusa de aplicação de uma norma, a que se refere o artigo 70.º, n.º 1, alínea a), ser implícita, a mesma é também admitida pela doutrina e jurisprudência.
5. Assim, como assinala o douto Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 90/05, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que aqui se reitera:
[...]
6. A possibilidade de recusa implícita da aplicação da uma norma foi já reconhecida por diversos Acórdãos do Tribunal Constitucional e, designadamente, pelo douto Acórdão do TC 425/89, onde se decidiu que:
[...]
7. No mesmo sentido, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, p. 946
[...]
8. Assim, e tal como se deixou expresso no requerimento de interposição de recurso para este Venerando Tribunal, se o Tribunal, por motivos de constitucionalidade, aplicar uma norma com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência na lei em detrimento de um outro sentido normativo presente nesta, estar-se-á perante um caso de recusa de aplicação da norma existente.
9. E, se a recusa não for expressa será implícita, sendo igualmente relevante para efeitos de admissibilidade de recurso.
10. Feitas estas considerações, é forçoso concluir pela verificação dos pressupostos previstos no art.º 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC.
Com efeito, reportando-nos ao caso concreto,
11. Conforme salientou a Recorrente no requerimento de interposição de recurso, o Supremo Tribunal de Justiça convocou as normas contidas nos art.ºs 351.º e 354.º, do Código de Processo Civil, interpretando-as, inicialmente, no sentido de que a questão a resolver na fase introdutória dos embargos é a da probabilidade séria da existência do direito do embargante, “a apreciar de acordo com a prova informatória produzida”.
12. Contudo, veio a recusar o recebimento dos embargos com fundamento não na prova efectivamente produzida, mas antes na consideração “oficiosa” de que o contrato de arrendamento se tratou de um subterfúgio, que ninguém alegou, mas o Tribunal presumiu.
13.E, ao fazê-lo, desaplicou as referidas normas num dos seus sentidos possíveis, aqui sufragado pela Recorrente e inicialmente enunciado pelo Tribunal – e, diga-se, o mais conforme com a letra da lei –, de que a probabilidade da existência do direito, pressuposto da admissão dos embargos, deverá ser aferida unicamente em função da prova produzida,
14. Aplicando-as, inversamente, com o sentido de que esta pode resultar da livre convicção do juiz formada com base em meras presunções judiciais, o qual não encontra expressão na lei.
15. Da afirmação do Tribunal a quo de que o campo das probabilidades é o campo da formação da convicção por meio das presunções judiciais, não sendo estas sindicáveis, resulta a convocação dos princípios da função jurisdicional constitucionalmente consagrados no art.º 202.º da Constituição da República Portuguesa,
16. E, consequentemente, um juízo de inconstitucionalidade das normas em análise quando interpretadas conjugadamente no sentido de a probabilidade de existência do direito ter que ser aferida unicamente à luz da prova produzida, não se reconhecendo liberdade ao Juiz de formar a convicção com base em presunções judiciais.
17. Por força e na sequência deste julgamento, recusou o Tribunal a aplicação das normas assim interpretadas.
18. Note-se que muito embora a formulação do juízo de constitucionalidade, no presente caso, não seja expressa, não precisa necessariamente de o ser, bastando que esse juízo resulte, atendendo à argumentação expendida pelo Tribunal, como pressuposto da solução jurídica alcançada.
19. Cite-se, a este propósito, Carlos Lopes do Rego, quando refere:
[...]
20. Ora, a aplicação da norma, interpretada no sentido que lhe foi atribuído pelo Tribunal a quo, pressupõe um juízo prévio de inconstitucionalidade da norma interpretada no sentido de não reconhecer liberdade ao julgador para aferir da probabilidade séria de existência do direito do embargante com base em meras presunções judiciais, tendo como subjacente o art.º 202º, da Constituição da Republica Portuguesa.
Temos em que, requer a V. Ex.as que o Tribunal Constitucional conheça do recurso de constitucionalidade, nos termos do artº 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, relativamente às normas a que se reporta o requerimento de interposição de recurso. [...]
3. Não houve resposta. Cumpre decidir.
Sem embargo das doutas considerações produzidas sobre a natureza do objecto do recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade, o certo é que constitui requisito essencial do recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro), como é o presente, a desaplicação de uma norma, pelo tribunal recorrido, por força de um julgamento (expresso ou implícito) de desconformidade constitucional. Acontece que, conforme se afirmou na decisão sumária reclamada, o Supremo Tribunal de Justiça não procedeu a nenhuma operação de desaplicação dos artigos 351º e 354º do Código de Processo Civil por serem desconformes com a Constituição. Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça não enunciou, sequer, essa questão. Tal conclusão, que se impõe a todas as luzes, determina inexoravelmente que o insucesso da pretensão da reclamante.
Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação, mantendo a decisão sumária que decidiu não conhecer do recurso. Custas pela reclamante, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 1 de Fevereiro de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão.