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Processo n.º 707/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Em processo de alteração de regulação do poder paternal, por sentença proferida em 29 de Maio de 2006, A. foi condenado a pagar mensalmente, a título de alimentos, a quantia de € 75, actualizável anualmente de acordo com a taxa de inflação, a cada um dos seus filhos menores, B. e C..
Posteriormente, D., mãe daqueles menores, veio requerer em 21 de Abril de 2010 que as pensões de alimentos acima referidas fossem suportadas pelo F.G.A.D.M (Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM), do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social) por se encontrarem verificados os requisitos exigidos pelo artigo 3.º, Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, que veio regulamentar a Lei n.º 75/98, de 19/11.
Após instrução do pedido e emissão de parecer favorável do Ministério Público, foi proferida sentença em 6 de Setembro de 2010 que condenou o FGADM a pagar mensalmente a D. as pensões de alimentos, relativas aos filhos B. e C., no montante mensal de €95,57, por cada um, desde Abril de 2010, após recusar a aplicação do disposto no artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-lei n.º 164/99, de 13 de Maio, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, na parte em que recusou a aplicação do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, nos termos conjugados dos artigos 202º, nº 1 e 2, 203º e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa, por inconstitucionalidade material (por violação do disposto nos artigos 1º, 7º, nº 5 e 6, 13º, 63º, nº 3, 67º, nº 2, als. c) e g), 69º e 81º als. a) e b) da Constituição da República Portuguesa), nos termos do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 3, 75.º-A, n.º 1, 78.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
“…este Tribunal, se entender estarem reunidos os pressupostos para conhecer do recurso interposto nos presentes autos, deverá:
a) julgar inconstitucional, por violação dos arts. 1º, 8º, 13º, 63º, 67º, 69º e 81º da Constituição da República Portuguesa, a norma do art. 4º, nº 5 do Decreto-Lei 164/99, de 13 de Maio, quando interpretada no sentido literal de que a obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, em substituição do devedor, só nasce com a decisão que julgue o incidente do incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo, porém, quaisquer prestações anteriores;
b) confirmar, em consequência, a decisão recorrida.”
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Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Na sentença recorrida declarou recusar-se a aplicação do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Dispõe este preceito:
“O Centro Regional de Segurança Social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal”.
O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, pedindo a fiscalização da constitucionalidade do n.º 5, do artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio.
Nas alegações de recurso, restringiu o objecto do pedido de fiscalização a uma determinada interpretação deste dispositivo.
Da leitura da fundamentação da decisão recorrida consta-se que esta interpretou o transcrito preceito com o sentido de que a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegurar as pensões de alimentos a menor judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constitui com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão.
E foi este critério normativo, extraído da interpretação do referido artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, que a decisão recorrida considerou que violava a Constituição, como caminho necessário para, no caso concreto, poder determinar o pagamento pelo FGADM das pensões de alimentos devidas a dois menores desde Abril de 2010 (data do pedido), apesar dela só ter sido proferida em Setembro de 2010.
Assim sendo, constata-se que a norma recusada foi precisamente essa leitura normativa do n.º 5, do artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, pelo que deve ser ela a integrar o objecto do presente recurso de constitucionalidade
2. Do mérito do recurso
Reflectindo uma sociedade assente no princípio da solidariedade familiar, o dever de prover ao sustento das crianças incumbe numa primeira linha aos pais (artigo 36.º, n.º 5, da Constituição), fundando-se esta obrigação de alimentos na relação de filiação e fazendo parte integrante do conteúdo do poder paternal (vide um relato da atribuição do dever jurídico de prestar alimentos aos filhos desde o Direito Romano e acompanhando a sua evolução no direito português, J. P. Remédio Marques, em “Algumas notas sobre alimentos (devidos a menores) “versus” o dever de assistência dos pais para com os filhos (em especial filhos menores)”, nota 39, da ed. de 2000, da Coimbra Editora).
Contudo, a natural necessidade de protecção das crianças, não podia deixar um Estado que visa a realização da democracia económica e social (artigo 2.º, da Constituição) à margem da tarefa de assegurar o seu crescimento saudável, reconhecendo-se expressamente que “as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono” (artigo 69.º, n.º 1, da Constituição), assim como os pais e as mães devem gozar de protecção “na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos” (artigo 68.º, n.º 1, da Constituição).
Em apoio de uma solidariedade familiar impôs-se uma responsabilidade estadual, com obrigatoriedade de convivência.
A necessidade desta intervenção estadual foi também reconhecida no âmbito das organizações internacionais que emitiram normas vinculativas de direito internacional elaboradas no seu seio, designadamente as Recomendações do Conselho da Europa R(82)2, de 4 de Fevereiro de 1982, relativa à antecipação pelo Estado de prestações de alimentos devidos a menores, e R(89)l, de 18 de Janeiro de 1989, relativa às obrigações do Estado, designadamente em matéria de prestações de alimentos a menores em caso de divórcio dos pais, bem como o estabelecido na Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela ONU em 1989 e assinada em 26 de Janeiro de 1990, em que se atribui especial relevância à consecução da prestação de alimentos a crianças e jovens até aos 18 anos de idade.
É neste espírito que em 19 de Novembro de 1998 é publicada a Lei n.º 75/98, tendo por objectivo criar um sistema público de garantia de satisfação dos alimentos devidos a menores.
Este diploma teve origem num projecto apresentado pelo Partido Comunista Português (Projecto de Lei n.º 340/VII), em 7 de Maio de 1997, no seguimento de anteriores propostas do mesmo partido (Projectos de Lei n.º 473/IV e 160/V).
Na introdução a esta proposta, expunham-se os seus motivos:
“A Constituição reconhece às famílias o direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.
Aos pais e às mães é garantido o direito a protecção especial na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos.
As crianças têm direitos que o Estado deve assegurar e fazer respeitar, com vista ao seu desenvolvimento integral. Aos jovens é constitucionalmente assegurada protecção adequada para efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais ...
É sabido quão longe nos encontramos de uma efectiva realização de todos estes direitos e como se fazem sentir aqui agudamente as desigualdades que caracterizam a sociedade portuguesa.
Como ignorar então que tudo isto se reflecte no incumprimento das obrigações alimentares, sem que a lei ordinária assegure um eficaz sistema de protecção dos menores que dela mais carecem-
É certo que a reforma do Código Civil empreendida em 1977 alterou o instituto das obrigações alimentares, dando um importante passo para o adequar ás novas realidades.
Hoje a Lei reflecte as novas realidades e aponta para a transformação social.
Mas, apesar de tudo, mantém-se as distorções e há normas a rever como de uma maneira geral se reconhece.
A inadequação da Lei torna-se ainda mais patente quando se tem em conta o grande número de crianças que hoje vivem e são educadas na companhia só da mãe ou só do pai, quer por terem nascido fora do casamento, quer por força da separação ou divórcio dos pais.
Não se pode ignorar, finalmente, que existe ainda um enorme desconhecimento dos próprios direitos consagrados na Lei por parte de quem mais carência tem de os conhecer e exercer...
Sobre as formas de alteração da situação que ficou descrita vem sendo travado desde há anos um útil debate de dimensão internacional, cujas conclusões apontam para a necessidade de intervenção do Estado.
Segundo documentos aprovados pelo Conselho da Europa, os países membros devem garantir aos menores o adiantamento das pensões alimentares fixadas judicialmente, quando a pessoa obrigada ao seu pagamento não cumpra os seus deveres. O Estado ficará então subrogado nos direitos dos menores, devendo exigir ao devedor as pensões não pagas.
Trata-se de soluções cuja concretização no direito português se afigura urgente face às carências existentes e aos imperativos constitucionais.
A Organização Tutelar de Menores tal como se encontra, continua a não dar cumprimento a essas directrizes e tão pouco se adequa aos princípios que enformaram a reforma do Código Civil no que toca à família e ao instituto dos Alimentos.
Se a pessoa obrigada à prestação de alimentos está ausente em parte incerta, se está ausente no estrangeiro ainda que se lhe conheça o paradeiro, se trabalhar por conta própria, se não trabalhando por conta própria estiver com recibo verde, se mudar constantemente de emprego, se não cumprir a sua obrigação - que pode fazer a pessoa a quem foi confiada a guarda do menor-
No primeiro caso - ausência em parte incerta - nada há a fazer. Apenas emoldurar a sentença do Tribunal como recordação da inoperância da legislação, do demissionismo do Estado.
No segundo caso - ausência no estrangeiro - verifica-se a extrema dificuldade em fazer funcionar a Convenção sobre o reconhecimento e execução das decisões relativas às obrigações alimentares, ratificada por Portugal, bem como os instrumentos internacionais celebrados com vários Estados.
Uma que outra vez atinge a finalidade. Mas quantos anos após a decisão judicial- Depois de labirintos e barreiras burocráticas-
No terceiro caso - o do trabalhador por conta própria que não cumpre, ou o trabalhador falsamente classificado como prestador de serviços - normalmente 'não tem bens e não tem rendimentos'. Daí a total impossibilidade de fazer funcionar o artigo 1118º do Código do Processo Civil. Mas ainda que haja bens e rendimentos, o alimentado terá de aguardar pacientemente o decorrer dos largos meses ou até anos, defrontando-se com repetidas certidões negativas de notificação do executado.
No último caso - o do trabalhador que frequentemente muda de emprego - haverá que renovar periodicamente perante o Juiz a solicitação de proceder a inquérito para determinar qual a nova entidade do faltoso.
Mas no meio de tudo isto, ainda há a situação trágica que hoje é frequente realidade, daqueles que empregados, não recebem salários há vários meses, que querem cumprir e não podem e aos quais nada se pode descontar no (inexistente) vencimento ...”.
Visando colmatar as deficiências apontadas ao regime de direito ordinário então vigente, apoiado apenas na solidariedade familiar (artigo 1878.º, do Código Civil), a Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, determinou que o Estado, através do FGADM, assegure a satisfação dos alimentos a menores residentes em território nacional quando a pessoa judicialmente obrigada a prestá-los não satisfaça as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º, da O.T.M., e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre (artigo 1.º e 6.º).
As prestações a pagar pelo Fundo são fixadas pelo tribunal, sem poder exceder o montante de 4 UC, devendo atender-se à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor (artigo 2.º), ficando o Fundo sub-rogado em todos os direitos dos menores a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso (artigo 6.º, n.º 4).
A intervenção estadual em matéria de alimentos a menores consagrada na Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, reveste, pois, natureza subsidiária, uma vez que tem como pressuposto legitimador a não realização coactiva da prestação alimentícia a cargo dos progenitores, judicialmente fixada, através dos meios executivos previstos na lei. Apercebendo-se que, em caso de frustração do cumprimento da obrigação de alimentos no quadro da solidariedade familiar, os menores podiam incorrer numa situação grave de falta ou diminuição de meios de subsistência, entendeu-se que, nestes casos, o Estado não podia deixar de intervir, a título subsidiário, de modo a evitar esse cenário de risco.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/2005, “(…) a insatisfação do direito a alimentos atinge directamente as condições de vida do alimentando e, ao menos no caso das crianças, comporta o risco de pôr em causa, sem que o titular possa autonomamente procurar remédio, se não o próprio direito à vida, pelo menos o direito a uma vida digna” (em ATC, 62.º vol., pág. 649).
A definição de um regime de intervenção do Estado nestas situações de insucesso da solidariedade familiar, mesmo após a tentativa frustrada da sua imposição coactiva, limitou-se a satisfazer claras exigências constitucionais. Na verdade, incumbe ao Estado de Direito Social organizar um sistema de segurança social que assegure inter alia a protecção efectiva desses menores em particular, para, assim, garantir o respectivo direito fundamental a uma sobrevivência minimamente condigna, uma vez que estes se encontram em situação de falta de meios de subsistência e de capacidade para o trabalho (artigo 63.º, n.os 1 e 3, da Constituição, em cujo conteúdo essencial já se mostra suficiente e autonomamente projectado o princípio da dignidade da pessoa humana).
Essa mesma intervenção protectiva do Estado é aliás, especificamente, exigida pelo artigo 69.º, n.º 1, da Constituição.
Da imposição constitucional de, nas situações descritas, o Estado dar uma resposta eficaz a estes ditames se apercebeu o próprio legislador ordinário que no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, que veio regulamentar a Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, escreveu:
“A Constituição da República Portuguesa consagra expressamente o direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (artigo 69.º). Ainda que assumindo uma dimensão programática, este direito impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção. Desta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (artigo 24.º). Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna.
…
A evolução das condições sócio-económicas, as mudanças de índole cultural e a alteração dos padrões de comportamento têm determinado mutações profundas a nível das estruturas familiares e um enfraquecimento no cumprimento dos deveres inerentes ao poder paternal, nomeadamente no que se refere à prestação de alimentos, circunstância que tem determinado um aumento significativo de acções tendo por objecto a regulação do exercício do poder paternal, a fixação de prestação de alimentos e situações de incumprimento das decisões judiciais, com riscos significativos para os menores.
De entre os factores que relevam para o não cumprimento da obrigação de alimentos assumem frequência significativa a ausência do devedor e a sua situação sócio-económica, seja por motivo de desemprego ou de situação laboral menos estável, doença ou incapacidade, decorrentes, em muitos casos, da toxicodependência, e o crescimento de situações de maternidade ou paternidade na adolescência que inviabilizam, por vezes, a assunção das respectivas responsabilidades parentais.
Estas situações justificam que o Estado crie mecanismos que assegurem, na falta de cumprimento daquela obrigação, a satisfação do direito a alimentos.
Ao regulamentar a Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, que consagrou a garantia de alimentos devidos a menores, cria-se uma nova prestação social, que traduz um avanço qualitativo inovador na política social desenvolvida pelo Estado, ao mesmo tempo que se dá cumprimento ao objectivo de reforço da protecção social devida a menores.”
Este diploma, instituiu o FGADM, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a quem cabe efectuar o pagamento das prestações sociais acima referidas, através dos centros regionais de segurança social da área de residência do alimentado, após ordem do tribunal competente e subsequente comunicação da entidade gestora (artigo 2.º), tendo estabelecido no artigo 4.º o procedimento de determinação pelo tribunal da obrigação do FGADM efectuar o pagamento daquelas prestações sociais e de fixação do seu montante:
Artigo 4.º
“Atribuição das prestações de alimentos
1 - A decisão de fixação das prestações a pagar pelo Fundo é precedida da realização das diligências de prova que o tribunal considere indispensáveis e de inquérito sobre as necessidades do menor, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, o tribunal pode solicitar a colaboração dos centros regionais de segurança social e informações de outros serviços e de entidades públicas ou privadas que conheçam as necessidades e a situação sócio-económica do alimentado e da sua família.
3 - A decisão a que se refere o n.º 1 é notificada ao Ministério Público, ao representante legal do menor ou à pessoa a cuja guarda se encontre e respectivos advogados e ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
4 - O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social deve de imediato, após a notificação, comunicar a decisão do tribunal competente ao centro regional de segurança social da área de residência do alimentado.
5 - O centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal.”
Na jurisprudência dividiram-se as opiniões sobre o momento a partir do qual se constituía a obrigação do FGADM satisfazer as prestações alimentares, pronunciando-se alguns arestos de que esse momento era o da entrada em juízo do requerimento, solicitando a intervenção do Fundo, enquanto outros decidiram que essa obrigação só decorria da decisão do tribunal que condenasse o Fundo a pagar essas prestações.
O Supremo Tribunal de Justiça proferiu em 7 de Julho de 2009 Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 5 de Agosto de 2009) que decidiu que “a obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo FGADM, em substituição do devedor, nos termos previstos nos artigos 1.º, da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, e 2º e 4º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo quaisquer prestações anteriores”.
O sentido desta interpretação normativa coincide com aquela que foi recusada pela decisão recorrida, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Não compete aqui ajuizar da correcção infra-constitucional deste critério, mas apenas verificar se o mesmo satisfaz as exigências constitucionais neste domínio.
Independentemente do quantum da prestação estatal de alimentos que vier concretamente a ser fixada pelo tribunal – matéria que extravasa o objecto do presente recurso de constitucionalidade –, coloca-se a questão da necessidade de assegurar um mínimo de eficácia jurídica na garantia de satisfação desta obrigação de alimentos, sob pena de violação do direito fundamental à segurança social (Vide, neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 509/2002, em ATC, 54.º vol., pág. 19).
Para assegurar a satisfação deste direito fundamental nestas situações não basta criar um qualquer mecanismo de apoio aos menores em relação aos quais o dever parental de prover à sua subsistência é incumprido, é também necessário que esse mecanismo esteja construído de modo a poder dar uma resposta eficaz a essas situações.
Estando nós perante a atribuição de prestações pecuniárias regulares, destinadas a custear as despesas dos menores, a questão temporal da satisfação dessas prestações é essencial. O sistema de segurança social deve garantir uma adequação temporal da resposta, concedendo oportunamente as prestações legalmente previstas para uma satisfatória promoção das condições dignas de vida das crianças (vide, enunciando este princípio da segurança social, João Carlos Loureiro, em “Proteger é preciso, viver também: a jurisprudência constitucional portuguesa e o Direito da Segurança Social”, in XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, pág. 383, da ed. de 2009, da Coimbra Editora). E este objectivo só se mostra alcançado, por um lado, se as prestações sociais atribuídas aos menores cobrirem, o mais aproximadamente possível, todo o período em que se verifica o incumprimento por parte dos pais do dever de proverem à subsistência dos seus filhos, e por outro lado, se existir um mecanismo que permita acorrer, num curtíssimo espaço de tempo, aos casos de necessidade urgente.
É necessário ter presente que, sendo os beneficiários desta prestação social menores privados de meios de subsistência, estamos num universo em relação ao qual os imperativos de protecção social constitucionalmente previstos se verificam na sua máxima expressão.
Ora, a solução normativa recusada pela decisão recorrida acaba por comprometer a eficácia jurídica da satisfação das necessidades básicas do menor alimentando, na medida em que a mesma se traduz na aceitação de um novo período, de duração incerta, de carência continuada de recebimento de qualquer prestação social de alimentos, a cumular a um anterior período – mais ou menos longo – em que já se revelou a frustração total da solidariedade familiar.
Efectivamente, de acordo com a interpretação normativa sob análise, a situação continuada de carência de prestação alimentos ao menor alimentando que precede a apresentação do requerimento de intervenção do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores não só não é eficazmente estancada, ainda que retroactivamente, com este pedido de auxílio estatal, como ainda subsiste para além deste momento, durante um período de duração incerta, sujeito às inevitáveis demoras para recolha da prova da capacidade económica do agregado familiar e das necessidades específicas do menor, e às contingências dos múltiplos atrasos do sistema judiciário, até ser proferida decisão judicial em primeira instância, a qual, deste modo, não acautela a satisfação dos alimentos que ter-se-iam vencido até então.
Este juízo não é afastado pela possibilidade de decretamento de uma decisão judicial provisória de alimentos a cargo do Estado – prevista no artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro –, uma vez que esta decisão provisória, não só não abrange todas as situações em que o menor não tem assegurada a sua subsistência pelos obrigados principais, apenas podendo ser utilizada nos casos de excepcional urgência, como também o momento da exigibilidade das prestações sociais assim decretadas não deixa de se revelar incerto e sempre tardio, uma vez que essa decisão provisória também só é decretada já no decurso do processo de apuramento da necessidade da intervenção subsidiária do Estado, podendo igualmente ser precedida de diligências de prova de execução temporal incerta.
Em virtude do exposto, importa concluir que a interpretação normativa sob análise padece de inconstitucionalidade material, na medida em que consubstancia uma violação do direito fundamental das crianças à protecção do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral (artigo 69.º, n.º 1, da Constituição) e do direito à segurança social (artigo 63.º, n.º 1 e 3, da Constituição), pelo que o recurso interposto deve ser julgado improcedente.
Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 69.º, n.º 1, e 63.º, n.º 1 e 3, da Constituição, a norma constante do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação de que a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegurar as pensões de alimentos a menor judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constitui com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão.
b) E, em consequência, julgar improcedente o recurso.
Sem custas.
Lisboa, 1 de Fevereiro de 2011.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro (apesar de dissentir do conhecimento por entender que não estamos perante uma verdadeira recusa de aplicação, acompanhei a decisão quanto ao seu mérito) – Catarina Sarmento e Castro (Muito embora tendo ficado vencida quanto à questão do conhecimento, por considerar não se tratar de uma verdadeira recusa, votei a decisão de mérito por entender estar em causa, não uma qualquer prestação social, mas um apoio à criança em casos em que esta se encontra em situação de grave desprotecção) – Rui Manuel Moura Ramos.