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Processo n.º 286/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Por acórdão da 9.ª Vara Criminal de Lisboa, proferido nestes autos em 30 de Março de 2007, foi o arguido, ora recorrente, A. condenado na pena de cinco anos de prisão, pela prática de um crime continuado de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 30.º, n.º 2, 217.º e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal.
Após vicissitudes processuais várias, que não cabe aqui relatar, e que implicaram a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, foi o processo reenviado à 1ª instância, para que, face às alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei nº 49/2007, fosse reaberta a audiência (artigo 371.º do Código de Processo Penal).
Distribuídos os autos à 4ª Vara Criminal de Lisboa, foi aí proferido acórdão, a 25 de Maio de 2009.
Nesse acórdão, e para além de decidir que não havia lugar à suspensão da execução da pena de prisão que, nos presentes autos, havia sido imposta ao arguido (cinco anos), procedeu a 1ª instância à realização do cúmulo jurídico dessa pena com as penas parcelares que, em outros processos, ao mesmo arguido tinham sido impostas, condenando-o na pena única de onze anos e seis meses de prisão.
2. Desta decisão recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, dizendo nas alegações de recurso, e para o que agora interessa:
“A decisão recorrida enferma de erro de Direito quando interpreta e aplica os artigos 77.º, nºs 1 e 2 e 78.º do Código Penal em termos de, para efeito de efectuar um cúmulo jurídico de várias penas parcelares, desconsiderar uma pena alcançada previamente em sede de cúmulo jurídico, desagregando tal pena única e já extinta pelo cumprimento decretado por decisão com trânsito em julgado, e incorporando todas e cada uma das penas acumuladas, consideradas agora atomisticamente, na soma aritmética que se efectua para alcançar o limite máximo da pena aplicável no cúmulo jurídico em causa.
(…)
Os artigos 77.º, 78.º, e 81.º do Código Penal, quando prevêem que, em sede de cúmulo jurídico superveniente, seja desconsiderada uma pena única já cumprida e extinta, alcançada em cúmulo jurídico prévio, e nomeadamente por repristinação jurídica das penas parcelares que integram essa pena única, são materialmente inconstitucionais por violação dos artigos 27.º, nº 1, 29.º, nº 4 e nº 5, 32.º, nº 1 da Constituição.”
Em acórdão proferido a 11 de Março de 2010 concordou o Supremo Tribunal de Justiça com a forma como tinha sido efectuado o cúmulo jurídico, considerando, nessa parte, improcedente o recurso. Por outro lado, e quanto à questão de constitucionalidade que fora colocada, decidiu-se que a mesma carecia de fundamento.
3. É deste acórdão proferido pelo Supremo que se interpõe, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82: LTC), o presente recurso de constitucionalidade. Nele se pretende que o Tribunal aprecie a constitucionalidade das normas constantes dos artigos 77.º, 78.º e 81.º do Código Penal, na interpretação, atrás já transcrita, que fora já identificada nas alegações do recurso para o Supremo.
4. Admitido o recurso no Tribunal Constitucional, veio o recorrente apresentar as suas alegações, que concluiu do seguinte modo:
1°
Com o presente recurso, pretende o recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade dos artigos 77°, 78°, e 81º do Código penal, quando os mesmos permitem que, em sede de cúmulo jurídico superveniente, seja desconsiderada uma pena única já cumprida e extinta, alcançada em cúmulo jurídico prévio.
2°
Ou seja actualmente quando se interpreta e aplica os artigos 77°, n° 1 e 2 e 78° do CP em termos de se efectuar um cúmulo jurídico de várias penas parcelares vai desconsiderar uma pena alcançada anteriormente em sede de cúmulo jurídico de outras penas parcelares, desagregando essa pena única e que já foi extinta pelo cumprimento, e vai incorporar todas e cada uma dessas penas cumuladas, consideradas agora atomisticamente, na soma aritmética que se efectua para alcançar o limite máximo da pena aplicável no cúmulo jurídico em causa.
3º
No enunciado literal da lei também nada permite que se destrua essa pena, retirando-lhe valor legal, e vir posteriormente em sede cúmulo jurídico trazer agora cada uma das penas judicialmente unificadas, desconsiderando a pena única cumprida pelo condenado e cuja extinção foi decretada judicialmente.
4º
Desta forma existe um duplo desrespeito por autos judiciais: o que unificou as penas e o que decretou a extinção da pena única.
5º
No caso do recorrente eleva-se para 23 anos o máximo da pena de prisão, quando se não tivesse operado a desagregação do cúmulo já formado o máximo tinham-se salvo 3 anos e 2 meses.
6º
Os artigos 77°, 78° e 81° do Código Penal quando prevêem que, em sede de cúmulo jurídico superveniente, seja desconsiderada uma pena única já cumprida e extinta alcançada em cúmulo já que integraram essa pena única são materialmente inconstitucionais por violação dos artigos 27°, n° 1, 29°, n° 4 e n° 5, 32°, n° 1 da Constituição.
7º
Na realidade o arguido não só é condenado duas vezes pelo mesmo crime, como se aplica uma medida punitiva não prevista à data da prática dos factos, como se vem ainda trazer ao arguido o ressurgir de uma pena que para ele já estava terminada e posta de parte, que estava transitada em julgado, e trânsito esse cuja garantia é violada.
Contra-alegaram os recorridos, B. e C., pugnando pelo juízo de não inconstitucionalidade.
Após cuidadosa contextualização fáctica da questão de constitucionalidade, que em parte aqui se assume, pronunciou-se no mesmo sentido o Exmo. Representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. A questão de constitucionalidade que, por intermédio deste recurso, é colocada ao Tribunal carece, para ser bem compreendida, de uma acertada contextualização. Em causa está essencialmente, e como acabou de ver-se, uma certa interpretação dada pelo tribunal de 1ª instância (interpretação essa que o Supremo Tribunal corroborou) às normas constantes dos artigos 77.º e 78.º do Código Penal, que, em Secção dedicada à “[p]unição do concurso de crimes e do crime continuado”, dispõem sobre as regras da punição do concurso (artigo 77.º) e sobre o conhecimento superveniente do concurso (artigo 78º) .
Assim sendo, deve começar por recordar-se como é que, em decisão tomada pelas instâncias, se efectuou o cúmulo jurídico das diversas penas aplicadas ao arguido. O método seguido teve em conta o seguinte: (i) que, nos presentes autos, o arguido fora condenado na pena de 5 anos de prisão; (ii) que, noutro processo (processo nº 14/04.1TOLSB da 5ª vara criminal de Lisboa), por decisão já transitada em julgado, o arguido fora condenado em penas parcelares de 3 e 6 anos de prisão (por crime de falsificação de documentos e por crime de burla qualificada), e, em cúmulo, na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão; (iii), que, ainda noutros processos, fora condenado, pela prática de um crime de peculato, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão e, pela prática de três crimes de falsificação de documentos, nas penas de 1 ano e 6 meses por cada um deles, tendo-lhe sido aplicado, em cúmulo, a pena única de 6 anos de prisão.
Face a estes dados, entendeu a decisão recorrida, de acordo com o disposto no nº 2 do artigo 77.º do Código Penal, que o mínimo da pena a considerar seria o correspondente à pena parcelar mais grave (6 anos de prisão) e que o máximo da pena seria o correspondente à soma de todas as penas parcelares aplicáveis, ou seja, a 23 anos de prisão. Para achar quer este limite mínimo quer este limite máximo, “desfizeram-se” os cúmulos jurídicos anteriormente efectuados, e tiveram-se em conta, somente, as penas parcelares. Foi neste contexto que se achou, em novo cúmulo, a pena única de 11 anos e 6 meses de prisão.
Como constava, também, do acórdão de 1ª instância que, por decisão do Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, certa das penas anteriores achadas em cúmulo já fora julgada cumprida e extinta, manteve o Supremo a condenação do arguido na pena única obtida através do método atrás referido, mas mandando nela descontar a pena já cumprida. Para tanto, teve em conta a nova redacção do nº 1 do artigo 78.º do Código Penal, introduzida pela Lei nº 59/2007, que determina:
“Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes”.
Entende o recorrente que é inconstitucional a interpretação que foi seguida pelo tribunal a quo, na medida em que permite que, em cúmulo jurídico superveniente, seja desconsiderada uma pena única já cumprida e já extinta, alcançada em cúmulo jurídico prévio, e nomeadamente por repristinação jurídica das penas parcelares que integram essa pena única, por violação dos artigos 27.º. nº 1, 29º, nº 4 e nº 5, 2 32º, nº 1 da Constituição.
Vejamos então.
6. Deve começar por dizer-se que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar se a decisão recorrida interpretou correctamente o direito infra-constitucional. Na verdade, não lhe cabe censurar a correcção do juízo hermenêutico desenvolvido pelo tribunal a quo e, nomeadamente, se, como defende o recorrente, decorre do disposto nos artigos 77.º, 78.º e 81.º do Código Penal que se não pode deixar de considerar, para o efeito de determinação do limite máximo da moldura penal da pena única a aplicar em sede de cúmulo jurídico, o cúmulo anteriormente efectuado, somando-se a pena única já cumprida e as penas parcelares aplicadas aos demais crimes.
Sob apreciação está, única e exclusivamente, a conformidade com a Constituição da interpretação dada aos artigos 77.º, 78.º e 81.º do Código Penal, no sentido de, em sede de cúmulo jurídico superveniente, se dever considerar no cômputo da pena única as penas parcelares, desconsiderando-se uma pena única já julgada cumprida e extinta, resultante da realização de cúmulo jurídico anterior.
Como é bem de ver, desta “norma”, assim delimitada – e que foi efectivamente aquela que a decisão recorrida aplicou – decorrem dois problemas distintos, mas ligados entre si por uma razão de precedência lógica: em primeiro lugar, está em causa a questão de saber se, em sede de cúmulo jurídico superveniente, se pode ou não integrar no cômputo da pena única as penas parcelares, desconsiderando anteriores cúmulos jurídicos que, previamente, em relação a elas tenham sido realizados; em segundo lugar, está em causa a questão de saber se, tendo já sido cumpridas e extintas certas dessas penas únicas anteriores, achadas em cúmulo prévio, ainda assim poderão elas ser, desagregadamente, computadas no cálculo do cúmulo superveniente.
Dada a necessária relação lógica entre estes dois problemas (ou entre as duas dimensões do mesmo problema), a tese do recorrente, que sustenta a inconstitucionalidade da “norma” por violação dos artigos 27.º, n.º 1, 29.º, n.º 4 e n.º 5 e 32.º, n.º 1 da Constituição, nem sempre os distingue.
Com efeito, e basicamente, alega-se o seguinte: a partir do momento em que uma pena única, alcançada em cúmulo jurídico, é julgada cumprida e extinta, a mesma deve considerar-se esgotada para todos os efeitos, o que implica deverem considerar-se esgotadas todas as penas parcelares que lhe deram origem, pelo que jamais poderão as mesmas relevar, autonomamente, para efeitos de cúmulo jurídico superveniente.
A esta tese acresce uma segunda ordem de ideias.
Em primeiro lugar, entende ainda o recorrente que a revisão de 2007 do Código Penal, operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, ao eliminar do texto do artigo 78.º, n.º 1 o segmento “[…] antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta”, vem confirmar a interpretação por ele feita do regime legal em matéria de cúmulo jurídico.
Além disso, refere o mesmo recorrente que o próprio enunciado literal da lei não admite a interpretação segundo a qual, para efeitos de cúmulo jurídico superveniente, deve ser desconsiderada a pena única já julgada cumprida e extinta.
Relativamente a esta segunda ordem de considerações, importa, no entanto, esclarecer que a mesma se reconduz a uma pretensão de demonstrar – através do recurso aos elementos literal e histórico da teoria da interpretação da lei – a bondade da tese do recorrente, no que respeita à determinação do sentido mais correcto do regime legal. Ora, situando-se tal matéria no plano do direito infra-constitucional, não pode a apreciação da mesma ter lugar nesta sede, porquanto, como ficou já dito, o juízo do Tribunal Constitucional recairá apenas sobre a conformidade com a Constituição da norma efectivamente aplicada na decisão recorrida, independentemente do entendimento que se tenha sobre a correcção dessa solução interpretativa.
7. Assim, importa, desde logo, observar que o simples facto de a interpretação normativa cuja sindicância se pretende conduzir, no caso dos autos, à construção de uma moldura da pena única cujo limite máximo é superior àquele que se obteria em virtude de uma interpretação alternativa do regime legal, designadamente daquela que é proposta pelo recorrente (pelo facto de – como, aliás, em regra se verifica, inexistindo qualquer especificidade do caso concreto – a pena única obtida em sede de cúmulo jurídico anterior ser inferior à soma das penas parcelares que lhe deram origem), só por si, não consubstancia qualquer violação da Constituição.
Com efeito, não obstante a existência de limites constitucionais em matéria de definição de penas (v. Acórdão n.º 336/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), a Constituição concede, neste domínio, uma ampla liberdade de conformação ao legislador ordinário.
Ora, independentemente da questão de saber se a adopção de um sistema de cúmulo jurídico, em detrimento de um sistema de acumulação material, é constitucionalmente imposta – tema sobre o qual o Tribunal Constitucional não tem aqui que tomar posição – é manifesto que a operacionalização prática da determinação da pena do concurso é matéria da competência do legislador ordinário.
Se, através da interpretação acolhida pelo tribunal a quo, se obtém, em certas situações de cúmulo jurídico superveniente, como limite máximo da moldura da pena única, um valor superior àquele que se obteria face a uma interpretação alternativa do regime legal (designadamente, aquela que propõe o recorrente), é questão relativamente à qual, em si mesma considerada, a Constituição é indiferente.
Note-se que da aplicação do regime legal, na interpretação que dele faz o tribunal a quo, resultará, seguramente, em muitas situações, que, embora o limite máximo da moldura seja superior àquele que se obteria face a uma interpretação alternativa (designadamente, aquela que propõe o recorrente), o limite mínimo da moldura, por sua vez, é inferior, quando comparado com o que se obteria através da interpretação do regime legal proposta pelo recorrente (embora tal se não verifique no caso dos autos, tal sucederá sempre que a pena única obtida em sede de cúmulo jurídico anterior seja a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes em concurso).
Tal significa que qualquer solução interpretativa do regime legal – nomeadamente, a que dele faz o recorrente – tem consequências sistémicas que vão muito além da que se relaciona com a obtenção do limite máximo da moldura do concurso, vindo também afectar, pelo menos em certas situações, o limite mínimo da mesma.
Saber se, em sede de cúmulo jurídico superveniente, se deve optar por um regime que potencie uma inflação do limite máximo da moldura da pena única, aplicável ao concurso de crimes, ou antes por um regime que potencie um limite mínimo da mesma, é matéria que cabe primacialmente ao legislador, devendo este proceder a avaliações sobre factos (desde logo, estatísticos), a ponderações entre bens na óptica da política criminal (é preferível acautelar limites mínimos reduzidos ou antes limites máximos baixos-) e a juízos de prognose, que o Tribunal Constitucional não pode senão aceitar.
Numa palavra, a Constituição não exige que, em sede de cúmulo jurídico superveniente, o legislador opte por aquele regime de que resulte a consagração de um limite máximo inferior (quando confrontado com o que decorreria de regimes legais alternativos, quaisquer que eles fossem).
Tal não significa, obviamente, que a Constituição seja, neste domínio, totalmente “insensível” e que ao legislador tudo seja consentido.
Simplesmente, os limites constitucionais à liberdade de conformação do legislador em matéria de definição das penas (v. Acórdão n.º 336/2008, já citado) não vão ao ponto de dele exigir que acautele que o arguido beneficie, em cada caso, de uma moldura abstracta cujo limite máximo seja mínimo.
Assente que está que o simples facto de da aplicação da dimensão normativa sub judicio, se obter, no caso dos autos, uma moldura do concurso cujo limite máximo é superior àquele que se obteria em virtude de uma interpretação alternativa do regime legal, não comporta, só por si, qualquer violação da Constituição, vejamos então se, ainda assim, tal dimensão normativa não violará algum dos parâmetros constitucionais indicados pelo recorrente.
8. Entende o recorrente que a dimensão normativa dos artigos 77.º, 78.º e 81.º do Código Penal sub judicio viola o disposto no n.º 1 do artigo 27.º da CRP.
O preceito constitucional indicado pelo recorrente dispõe que “[t]odos têm direito à liberdade e à segurança”.
Atendendo ao disposto no n.º 2 do artigo 27.º da CRP – que admite a privação total da liberdade em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão – deve interpretar-se a invocação do artigo 27.º, n.º 1 como centrada na violação do princípio constitucional da culpa, princípio esse que, tal como decorre da jurisprudência do Tribunal Constitucional, se retira parcialmente desse preceito constitucional (nesse sentido, v. Acórdão n.º 336/2008, já referido).
Apesar de tal não ser articulado nesses exactos termos nas alegações apresentadas pelo recorrente, resulta do teor das mesmas, lidas no seu conjunto, que o que é questionado é a compatibilidade com a Constituição de uma norma de que decorreria, no entender do recorrente, a aplicação de uma pena que excede a culpa do agente, assim se violando uma das dimensões do princípio da culpa.
Entende o recorrente que, a partir do momento em que uma pena única, alcançada em cúmulo jurídico, é julgada cumprida e extinta, a mesma deve considerar-se esgotada para todos os efeitos, o que implica deverem considerar-se esgotadas todas as penas parcelares que lhe deram origem, pelo que jamais poderão as mesmas relevar, autonomamente, para efeitos de cúmulo jurídico superveniente, pelo que seria inadmissível, à luz do princípio constitucional da culpa, desconsiderar-se uma pena única já julgada cumprida e extinta, resultante da realização de cúmulo jurídico anterior.
Mas sem razão o faz.
Desde logo, porque, nos termos do disposto no inciso final do n.º 1 do artigo 78.º do Código Penal (inciso que, face ao disposto no n.º 1 do artigo 81.º, seria, em rigor, dispensável), em caso de conhecimento superveniente do concurso, a pena que já tiver sido cumprida é descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes. Assim sendo, é manifesto que a circunstância de, para efeitos de determinação da medida da pena única, se considerar a pena de prisão efectiva já cumprida, em nada prejudica o arguido.
Em segundo lugar, porque, justamente face ao princípio da culpa, seria dificilmente compreensível qualquer norma que impusesse que, em sede de cúmulo superveniente, fosse necessariamente considerada a pena única que resultasse de cúmulo jurídico anterior. Com efeito, proceder-se a um “cúmulo de cúmulo”, na acepção que o recorrente adopta, comportaria dois juízos globais de culpa que parcialmente se sobreporiam.
Assim, deve concluir-se que a interpretação dada aos artigos 77.º, 78.º e 81.º do Código Penal, no sentido de, em sede de cúmulo jurídico superveniente, se dever considerar no cômputo da pena única as penas parcelares, desconsiderando-se uma pena única já julgada cumprida e extinta, resultante da realização de cúmulo jurídico anterior, não viola o disposto no n.º 1 do artigo 27.º da CRP.
9. Entende ainda o recorrente que a norma sub judicio viola o disposto no n.º 4 do artigo 29.º da CRP.
O preceito constitucional indicado pelo recorrente dispõe que “[n]inguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”.
Não obstante a invocação desse preceito constitucional, em lugar algum das suas alegações o recorrente questiona, de modo articulado, a validade da dimensão normativa dos artigos 77.º, 78.º e 81.º do Código Penal no plano da sucessão no tempo da lei penal, pelo que, desde logo, fica sem se perceber quais seriam, no entender do recorrente, as duas normas potencialmente aplicáveis cujo conflito haveria de resolver-se por recurso ao preceito constitucional indicado.
Tal não é contrariado pela referência, feita na motivação das alegações apresentadas, à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, pois com tanto o recorrente apenas afirma que a alteração legislativa operada por esse diploma vem confirmar o entendimento que o recorrente tem do regime legal em matéria de cúmulo jurídico, situando a sua argumentação no plano do direito infra-constitucional.
Além disso, e esse é o ponto decisivo, sendo certo que, tendo entrado em vigor, na pendência do processo, a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, se poderia colocar a questão da aplicação da lei penal no tempo, tal questão seria já uma outra questão de constitucionalidade, bem diversa daquela que integra o objecto do presente recurso e que competia ao recorrente, caso sobre ela pretendesse obter uma apreciação por parte do Tribunal Constitucional, indicar, autonomamente, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
Ora, em tal requerimento apenas vem indicada, como objecto do recurso, uma única questão de constitucionalidade, aí não sendo feita sequer qualquer referência à alteração introduzida ao artigo 78.º, n.º 1 do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
No que à norma sub judicio diz respeito é manifesto que o disposto no n.º 4 do artigo 29.º da CRP lhe não serve sequer de parâmetro adequado de controlo, pelo que a sua invocação pelo recorrente não tem qualquer sentido.
10. Alega também o recorrente que a norma sub judicio viola o disposto no n.º 5 do artigo 29.º da CRP, preceito que vem consagrar o princípio ne bis in idem.
Mas, mais uma vez, não se vê como possa a sua tese ser recebida.
Desde logo, não decorre da desconsideração de uma pena única já julgada cumprida e extinta, resultante da realização de cúmulo jurídico anterior, para efeitos de determinação da pena única em sede de cúmulo jurídico superveniente, que o mesmo facto seja valorado duas vezes, isto é que uma mesma conduta ilícita seja apreciada, com vista à aplicação da correspondente sanção, por mais do que uma vez.
Do mesmo modo, não decorre da dimensão normativa questionada que, em sede de cúmulo jurídico superveniente, se valore novamente alguma circunstância já considerada para efeitos da determinação da pena única por ocasião da realização de cúmulo jurídico anterior.
Justamente na medida em que é desconsiderada a pena única anteriormente aplicada, fica sem efeito a valoração que lhe serviu de base, pelo que, ao proceder-se à valoração global dos factos e da personalidade do agente, em sede de cúmulo jurídico superveniente, a pretensão punitiva do Estado apenas se exerce uma vez.
Com efeito, a decisão que, nos termos do nº 1 do artigo 78.º do Código Penal, procede à determinação da pena única, aceita integralmente a condenação e as penas que haviam sido, anteriormente, aplicadas ao arguido. E aceita-as justamente com o intuito exclusivo de as colocar ao lado de outra ou outras penas, para assim ser possível uma correcta avaliação do comportamento global do agente, valendo aqui igualmente as considerações que se fez a propósito do princípio da culpa (supra, ponto 7).
Conclui-se, assim, pela inexistência de qualquer violação do artigo 29.º, n.º 5 da Constituição.
11. Sustenta finalmente o recorrente que a norma sub judicio viola o disposto no n.º 1 do artigo 32.º da CRP, preceito que estabelece que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa do arguido, incluindo o recurso.
Sendo certo que em lugar algum das suas alegações o recorrente concretiza quais as limitações às garantias de defesa do arguido que decorreriam da interpretação dada aos artigos 77.º, 78.º e 81.º do Código Penal, é manifesto que a dimensão normativa questionada não limita quaisquer garantias de defesa do arguido ou condiciona o seu exercício.
Com efeito, a desconsideração de uma pena única já julgada cumprida e extinta, resultante da realização de cúmulo jurídico anterior, para efeitos de determinação da pena única em sede de cúmulo jurídico superveniente em nada afecta as garantias de defesa do arguido. Demonstra-o o facto de, no caso dos autos, justamente sobre a correcta interpretação a dar à dimensão normativa sub judicio, o recorrente nunca ter deixado de dispor de oportunidade processual para tomar posição sobre a mesma, tendo esgotado os recursos ordinários e chegando mesmo a suscitar a questão da sua conformidade com a Constituição no âmbito do presente recurso.
Assim, inexiste qualquer violação do artigo 32.º, n.º 1 da Constituição.
III – Decisão
Nestes termos, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma contida nos artigos 77.º, 78.º e 81.º do Código Penal, quando interpretada no sentido de, em sede de cúmulo jurídico superveniente, se dever considerar no cômputo da pena única as penas parcelares, desconsiderando-se uma pena única já julgada cumprida e extinta, resultante da realização de cúmulo jurídico anterior;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso;
c) Condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte) UCs.
Lisboa, 2 de Março de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.