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Processo n.º 691/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
1. A. foi condenado, por sentença do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal (CP). Interpôs recurso sustentando, além do mais, que a sentença não podia dar como provado o seu consentimento para a recolha da amostra de sangue para determinação do estado de influenciado pelo álcool com base no documento de fls. 24, documento esse que não foi indicado na acusação, nem apresentado ou discutido em audiência de julgamento. Por acórdão de 1 de Julho de 2010, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso.
O recorrente interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1, do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), com vista à apreciação de constitucionalidade dos n.º 1 do artigo 355.º, n.º 2 do artigo 327.º e n.º 2 do artigo 340.º, todos do Código de Processo Penal (CPP), segundo a qual o tribunal pode suportar uma decisão condenatória num documento que, embora integre os autos desde o inquérito, não foi indicado na acusação, nem tão pouco apresentado e discutido na audiência de julgamento.
2. Tendo o recurso sido admitido e prosseguido, o recorrente alegou e concluiu nos termos seguintes:
“1ª O tribunal recorrido considerou não existir qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade na valoração feita pela 1.ª Instância do teor do documento de fls. 24, designadamente a violação do princípio do contraditório ou utilização de métodos proibidos de prova;
2ª Em sede de Fundamentação da Decisão de Facto, o Tribunal de 1.ª Instância, para dar como provado o consentimento pelo mesmo [arguido] prestado para a realização da colheita de sangue, teve-se em conta o teor do documento de fls. 24;
3ª Conforme a acta da audiência de julgamento de fls. 98 e seguintes e, bem assim, da gravação digital da audiência, resulta que o documento de fls. 24 jamais foi discutido ou, sequer, apresentado, fosse pela Acusação ou pelo próprio Tribunal;
4ª Os n.ºs 1, 2 e 5 do art. 32º da Constituição Portuguesa proíbem, designadamente, que alguém seja base em prova que não lhe foi apresentada e sobre a qual não teve oportunidade para se defender;
5ª Com efeito, é inconstitucional, por violação do disposto nos n.ºs 1, 2 e 5 do art. 32.º da Const. da República Portuguesa, a interpretação conjugada dos n.º 1 do art. 355º, n.º 2 do art. 327º e n.º 2 do art. 340°, todos do Cód. de Processo Penal, segundo a qual o tribunal pode suportar uma decisão condenatória em prova documental que, embora integre os autos desde o inquérito, não foi indicada na acusação, nem tão pouco apresentada e discutida na audiência de julgamento.”
O Ministério Público contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:
“1º
O documento em causa, auto de colheita de sangue para análise, enquadra-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 356.º do CPP, pelo que, não é de leitura obrigatória em audiência, a fim de ser valorado como prova (art.º 355.º, n.º 2, do CPP).
2º
Por outro lado, tal documento foi assinado pelo próprio arguido e consta nos autos desde a fase inicial do inquérito. Desse modo, o arguido teve plena oportunidade processual de questionar tal prova, impugnando, se o desejasse, quer a sua admissão, quer o seu valor probatório.
3º
Pelo que, não representa qualquer violação dos princípios do contraditório e das garantias de defesa, que a decisão condenatória proferida se tenha fundado também nesse documento, independentemente do facto de não ter sido indicado como prova na acusação e de ter sido, ou não, lido e/ou examinado, expressamente, no decurso da audiência de julgamento.
4º
Pelo que, a nosso ver, o recurso não merece provimento.”
II – Fundamentação
3. Apesar de o tribunal fundar a convicção, quanto ao facto a que interessou o documento de fls. 24 (o consentimento para a recolha de amostra de sangue com vista à realização de exame para determinação do estado de influenciado pelo álcool), também em declarações do arguido e no depoimento de uma testemunha, o Tribunal entende que o presente recurso tem utilidade, uma vez que não há na fundamentação da decisão elementos que permitam afirmar que, na ausência de consideração de tal documento, a decisão sempre seria a mesma.
4. Os preceitos do CPP de cuja aplicação conjugada emerge a norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada dispõem do modo seguinte (transcreve-se todo o preceito e não apenas o inciso indicado como suporte da norma sujeita a apreciação, com vista a facilitar a integral compreensão de sentido do regime legal em análise):
“Artigo 327.º
(Contraditoriedade)
1 - As questões incidentais sobrevindas no decurso da audiência são decididas pelo tribunal, ouvidos os sujeitos processuais que nelas forem interessados
2 – Os meios de prova apresentadas no decurso da audiência são submetidos ao princípio do contraditório, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal.”
“Artigo 340.º
(Princípios gerais)
1 – O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção da todos os meios de prova cuja conhecimento se lhe afigure necessário à descoberto da verdade e à boa decisão da causa.
2 – Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta.
3 – Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis.
4 – Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
b) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
c) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.”
“Artigo 355.º
(Proibição de valoração de provas)
1 – Não valem em julgamento, nomeadamente parta o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
2 – Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes.”
Na decisão de 1ª instância, confirmada pelo acórdão recorrido, aplicaram-se estes preceitos no sentido de que o tribunal pode valorar documento que, embora integre os autos desde o inquérito, não vem elencado na indicação de prova constante da acusação do Ministério Público, nem foi apresentado e discutido em audiência, para dar como provados factos desfavoráveis ao arguido. O recorrente acomete esta norma por violação dos n.ºs 1, 2 e 5 do artigo 32.º da Constituição.
5. Deve, liminarmente, ser afastado o parâmetro do n.º 2 do artigo 32.º da Constituição (CR), porque nada há no discurso fundamentador da decisão recorrida que inculque ter presidido ao sentido com que a norma foi aplicada ao caso dos autos qualquer ideia contrária à presunção de inocência do arguido em processo penal.
Efectivamente, do lato conjunto de incidências possíveis deste princípio, só poderia ser convocado, com um mínimo de verosimilhança para uma situação do género daquela que agora é sujeita ao Tribunal, o sentido deste comando constitucional que consiste na proibição da inversão do ónus da prova em detrimento do arguido e o princípio in dubio pro reo que lhe anda associado. Ora, valorar um certo documento, assinado pelo arguido e relativo à realização de uma perícia (recolha de amostra de sangue para exame), em conjunto com outros elementos de prova, no sentido de que este deu o seu consentimento para a realização desse acto de perícia na fase de inquérito, é actuação que se mantém no plano da livre valoração da prova. Com isso, não se faz incidir sobre o arguido qualquer ónus probatório, nem tal procedimento revela que, nessa apreciação, o juiz tenha postergado o princípio que manda que se pronuncie de forma favorável ao arguido quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
Resta, pois, apreciar a alegada violação dos n.ºs 1 e 5 do artigo 32.º da CR.
6. A garantia constitucional de que o processo penal assegure todas as garantias de defesa (n.º 1 do artigo 32.º) é, de certo modo, reassuntiva, ou expressão condensada, dos princípios tuteladores da posição do arguido que se extraem dos diversos números do mesmo artigo 32.º da CR, pelo que a ideia de um processo penal orientado para a defesa tem de estar presente quando se analisam as normas de estruturação do processo penal que a Constituição seguidamente densifica, designadamente a consagração do princípio do acusatório e do princípio do contraditório.
A norma em apreciação contém duas vertentes ou dois aspectos problemáticos. O primeiro deles é aquele em que permite que prova documental constante do processo seja apreciada pelo juiz do julgamento, sem submissão a expresso exame em audiência. E o segundo consiste em ser permitido ao juiz valorar oficiosamente prova documental, incorporada nos autos desde a fase de inquérito mas não incluída expressamente na indicação de prova constante da acusação do Ministério Público. Vertentes que vão ser analisadas separadamente porque têm incidências problemáticas distintas.
7. Comecemos pela questão do exame dos documentos em audiência.
O artigo 355.º do CPP contém a regra geral da proibição de valoração de prova não produzida ou examinada em audiência. Na interpretação deste preceito, em conjugação com a alínea b) do n.º 1 do artigo 356.º, levantaram-se dúvidas na prática judiciária sobre se os documentos constantes do processo têm de ser expressamente examinados em audiência para poderem ser valorados na fixação da matéria de facto. O acórdão recorrido seguiu o entendimento jurisprudencialmente firmado a este propósito (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, II Vol., anot. ao artigo 355.º). Segundo este entendimento quase unânime, não se tratando de autos de inquérito ou de instrução cuja leitura seja proibida, como sucede com aqueles que contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas e na medida em que os contenham [alínea b) do n.º 1 do artigo 356.º do CPP], os documentos constantes do processo podem e devem ser valorados pelo tribunal, independentemente da sua leitura em audiência.
Ora, o Tribunal já apreciou esta vertente ou este aspecto geral da questão agora sujeita no Acórdão n.º 87/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
Como aí se disse, este entendimento não obsta a que as partes participem na produção da prova em audiência, contribuindo para iluminar todos os aspectos relevantes para descoberta da verdade. Tratando-se de documentos que foram juntos com a acusação, o arguido teve todas as possibilidades de os questionar, podendo ainda, na própria audiência, provocar a sua reapreciação individualizada para esclarecer qualquer ponto da sua defesa relativamente à qual entenda que isso seria necessário. Não é, porém, indispensável à satisfação da exigência de que processo assegure todas as garantias de defesa a leitura de toda a prova documental pré-constituída e junta ao processo. Quanto a este tipo de prova, o princípio do contraditório há-de traduzir-se em ter necessariamente de facultar-se à parte não apresentante a impugnação, quer da respectiva admissão, quer da sua força probatória.
Com efeito, a consagração constitucional do princípio do contraditório significa, no que à fase de julgamento respeita, que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem alguma decisão deve aí ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada uma ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual ela é dirigida de contestar a sua admissibilidade, de a discutir e de a valorar. Ora, relativamente a documentos que constem do processo e que tiverem sido indicados na acusação como meio de prova, a respectiva leitura ou exibição pública ritualística, embora se reconheça que poderia servir para realizar de modo mais intenso os objectivos do princípio da publicidade da audiência, nada acrescentaria no capítulo das oportunidades de defesa do arguido. Seria, “um verdadeiro “simulacro” de “constituição” no decurso daquele acto processual de uma prova que, afinal, já existia, de modo anterior e autónomo relativamente ao processo penal em questão”, como se aceita no referido acórdão.
8. A questão exige, porém, ponderações suplementares quando reveste a especificidade, que o recorte da norma sob apreciação precisamente coloca, de se tratar de documento que, embora constasse do processo desde a fase de inquérito, não foi incluído pelo Ministério Público nos meios de prova indicados na acusação.
Esta reserva não significa que se adopte o ponto de partida de que o juiz tenha de limitar os meios de formação da sua convicção ao material probatório fornecido pela acusação e pela defesa. O nosso sistema de processo penal não corresponde a um modelo acusatório puro ou estritamente subordinado ao princípio da discussão, em que o juiz se limitaria a apurar a verdade que resultasse da prova perante si apresentada e produzida pela acusação e pela defesa. O Código consagra um processo de estrutura acusatória, integrado pelo princípio da investigação judicial no domínio da produção de prova, como claramente resulta do n.º 1 do artigo 340.º que dispõe que “o tribunal ordena oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa”.
Como se disse no Acórdão n.º 137/02, este princípio significa, “mesmo no quadro de um processo penal orientado pelo princípio acusatório (artigo 32.º, n.º 5 da CR), que o tribunal de julgamento tem o poder-dever de investigar por si o facto, isto é, de fazer a sua própria “instrução” sobre o facto, em audiência, atendendo a todos os meios de prova não irrelevantes para a descoberta da verdade, sem estar em absoluto [de modo absoluto] vinculado pelos requerimentos e declarações das partes, com o fim de determinar a verdade material”. E, como no mesmo acórdão se acrescenta – embora aí mobilizando argumentos ordenados ao funcionamento do princípio em sentido favorável ao arguido, que era o sentido da prova cuja admissão então se discutia –, o princípio da investigação ou da verdade material tem valor constitucional, sem embargo da estrutura acusatória do processo penal português. Quer os fins do direito penal, quer os do processo penal, que são instrumentais daqueles, implicam que as sanções penais, as penas e as medidas de segurança, sejam aplicadas, mas apenas sejam aplicadas, aos verdadeiros agentes de crimes, pelo que a prossecução desses fins, isto é, a realização do direito penal e a própria existência do processo penal só são constitucionalmente legítimas se aquele princípio for respeitado. Por outro lado, o princípio da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal (artigos 27.º, n.º 2, 32.º, n.º 4) justifica-se certamente de um modo essencial pelo fim da descoberta da verdade material, sem prejuízo de visar igualmente o respeito das garantias de defesa (artigo 32.º). Finalmente, quando o artigo 202.º, n.º 1 atribui aos tribunais competência para administrar a justiça, esta referência em matéria penal tem que entender-se como significando a justiça material baseada na verdade dos factos, que é indisponível, não se admitindo a condenação do arguido perante provas que possam conduzir à sua inocência nem a sua absolvição perante prova validamente produzida e contraditada dos factos que lhe são imputados.
É bem certo que “atenta estrutura acusatória do processo e posição institucional do tribunal, a produção oficiosa de meios de prova pelo tribunal à luz deste princípio de investigação deve ter um papel residual” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág. 837). Mas relativamente a elementos de prova já constantes do processo – obviamente desde que não atingidos pelas proibições de valoração, designadamente, que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas – não existe tal risco de subversão da diferenciação de papeis entre órgão de acusação e órgão de julgamento. Assim compreendido o princípio do acusatório, a consideração oficiosa de documentos juntos ao inquérito não é de molde a comprometer as garantias de defesa só pelo facto de a acusação não ter indicado expressamente tal meio de prova.
9. Do exposto resulta que, quando cada uma das circunstâncias analisadas se verifique isoladamente, não pode falar-se em violação dos princípios constitucionais do processo penal ou de deficit das garantias de defesa. Não viola o núcleo desses princípios a valoração de documentos constantes do processo e indicados pela acusação como meio de prova, ainda que não se tenha procedido à sua leitura (ao seu expresso exame) em audiência. E também não os infringe permitir que se valorem oficiosamente documentos constantes do processo desde o inquérito, ainda que não indicados pela acusação, se se tiver procedido ao seu exame em audiência. Quid juris, porém, quando as duas circunstâncias se juntarem- Quando, como na norma em apreciação, nem o Ministério Público (no requerimento de produção de prova) nem o juiz (durante a audiência) tiverem procedido de modo a confrontar o arguido com o documento-
Em princípio, perante a conjugação das duas circunstâncias, não pode manter-se a mesma solução para a hipótese de cada uma delas ocorrer isoladamente, sem com isso entrar em conflito com a exigência de que o processo penal assegure todas as garantias de defesa, consagrada no n.º 1 do artigo 32.º da CR. Uma tal solução pressuporia não só que o arguido, através do seu defensor, examina o processo, mas que procede a esse exame com um grau de diligência e em condições tais – de tempo, de modo e de lugar -, que o habilita a que se aperceba da existência nele de todo e qualquer documento, do seu potencial probatório e da sua utilizabilidade em termos de poder antecipar contra ele a defesa que entenda. Porém, elevar os deveres de diligência da defesa a um tal patamar traduzir-se-ia na imposição de um ónus a cargo do arguido que pode gerar compromisso para as garantias do processo penal, com risco de um inocente poder vir a ser condenado por causa de não ter apresentado a sua versão quanto ao significado desse documento ou de lhe não ter oposto contraprova.
E esse é um risco que não pode desvalorizar-se, com o fundamento, de carácter geral, de que a defesa é tecnicamente assegurada por profissionais sujeitos a deveres deontológicos e ao correspondente padrão de diligência, sendo o perigo para as garantias de defesa despiciendo e inerente a exigências de praticabilidade do funcionamento das instituições numa sociedade democrática. Na verdade, se em processos simples ou pouco complexos e a que corresponda um dossier (processo na acepção de caderno de papéis), materialmente bem organizado e pouco volumoso, se apresenta curial presumir o apercebimento da existência e do valor probatório dos documentos incorporados por parte do arguido (rectius, do seu defensor), já o mesmo não pode dizer-se em processos complexos, muito volumosos ou em que a relevância do documento não seja evidente. Se a própria acusação não o invoca, por não se aperceber dele ou do seu significado ou contributo probatório, bem pode ter acontecido o mesmo com a defesa.
Assim, a regra será a de que, na conjugação das referidas circunstâncias, só a rigorosa observância da contraditoriedade da produção de prova em audiência pode garantir que o arguido teve oportunidade de defender-se adequadamente. Vale por dizer que o juiz pode utilizar documentos constantes do processo desde o inquérito e não indicados pela acusação. Mas tem de confrontar em audiência os sujeitos processuais – aqui é o arguido que interessa, porque o facto lhe é desfavorável – com a possibilidade de consideração desse elemento de prova.
10. Todavia, esta exigência de princípio pode conviver, sem quebra da exigência de que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa, com excepções decorrentes da própria natureza do documento.
Com efeito, a lei processual penal adopta uma noção ampla de documento, considerando como tal toda a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico nos termos da lei penal (artigo 164.º do CPP). Esta remissão integrativa para a lei penal significa que se considera documento qualquer “declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo conhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta” [artigo 255.º, alínea a), do CP].
Porém, documentos há, como aquele cuja valoração está em causa, que se limitam a conter a narrativa de actos processuais ou do inquérito. O “objecto elaborado pelo homem” em que consistem (artigo 362.º do Código Civil) visa traduzir ou reproduzir o que ocorreu numa determinada diligência do inquérito ou do processo. Não são incorporados no processo para comprovar um facto externo, mas sim elaborados e integrando necessariamente o processo como instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais ou de inquérito. Não deixando de ser em sentido genérico documentos, em sentido material são autos (artigo 99.º do CPP). Ora, perante tais documentos, pelo menos quando a narrativa que contêm do que ocorreu em determinada diligência está indissoluvelmente ligada a um resultado que se destinou a preparar e que é expressamente invocado como meio de prova, o sujeito processual não pode ignorar a sua existência e aptidão probatória. A invocação probatória do resultado consequente é suficiente para assegurar que o arguido, patrocinado por advogado, possa defender-se do auto que documenta uma diligência que é um antecedente necessário à determinação desse resultado contra ele invocado, em termos de dispor e poder usar todos os instrumentos processuais necessários e adequados para defender a sua posição e contrariar a acusação.
No caso, estamos perante uma situação deste tipo. O documento em causa é o auto relativo à “análise para quantificação da taxa de álcool no sangue”, elaborado pelo agente da autoridade que conduziu o arguido ao estabelecimento de saúde, relatando a colheita da amostra de sangue para análise e contendo a assinatura do examinado e do médico que a ela procedeu. À recolha assim documentada seguiu-se a análise, cujo resultado, documentado no “relatório” de fls. 21, é expressamente invocado como prova na acusação do Ministério Público. Esta invocação é suficiente para assegurar o contraditório e a possibilidade de defesa do arguido relativamente ao instrumento que relata a recolha da amostra que dessa análise é antecedente necessário.
Tem pois de concluir-se que a norma em apreciação, nestas especiais circunstâncias de aplicação, não viola a exigência de que o processo penal assegure todas as garantias de defesa (n.º 1 do artigo 32.º da Constituição) e o princípio do contraditório na produção de prova (n.º 5 do artigo 32.º da Constituição).
11. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas custas, com 25 unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 2 de Março de 2011.- Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.