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Processo n.º 649/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Comarca da Lousã interpôs recurso para o Tribunal Constitucional da “sentença proferida […] na parte em que recusou a aplicação das normas constantes dos arts. 152º, nº 3, 153º, nº 8, e 156º, nº 2, do Código da Estrada com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica”.
No que ora releva, assentou a referida decisão nos fundamentos seguintes:
A convicção do Tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também por declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, parcialidade, coincidências e mais inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.
Deste modo, a formação da convicção deste Tribunal, quanto aos factos dados como provados, resultou da confissão do arguido integral e sem reservas.
Relativamente ao valor do exame o tribunal não pode atender ao mesmo uma vez que considera nulo tal meio de prova.
Com efeito, a Recolha de álcool no sangue do condutor interveniente em acidente de viação, em que não é possível o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, faz-se por aplicação do disposto no artigo 156, n.º 2 do C.Estrada: o médico do estabelecimento oficial de saúde a que o interveniente no acidente seja conduzido, deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool. E se, ainda por qualquer outro motivo, esta pesquisa de álcool no sangue não puder ser feita, então procede-se a exame médico para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool – nº 3, do artigo 156.
Coloca-se aqui a questão da constitucionalidade do referido preceito. Nesta matéria seguimos o entendimento plasmado no Acórdão da Relação do Porto de 9. 12.2009.
Refere este Acórdão, «(...) Inconstitucionalidade orgânica que existe igualmente para o regime de colheita da amostra de sangue com vista à realização da análise, em situação de acidente de viação, o mesmo é dizer do actual regime do artigo 156º, do Código da Estrada. Com uma nuance de não somenos importância: A inconstitucionalidade orgânica parece surgir logo com a alteração do regime ao abrigo do DL nº 265-A/2001, de 28 de Setembro, que, como já se anotou, não foi precedido de autorização legislativa sobre esta matéria.
Se olharmos para a evolução legislativa, também o DL nº 2/98, de 3 de Janeiro, dizia: Artigo 162º Exames em caso de acidente: 1 – Os condutores e quaisquer pessoas que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado nos termos do artigo 159.º 2 – pQuando não tiver sido possível a realização do exame no local do acidente, deve o médico do estabelecimento hospitalar a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos proceder aos exames necessários para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool. 3 – No caso referido no número anterior, o exame para a pesquisa de álcool no sangue só não deve ser realizado se houver recusa do doente ou se o médico que o assistir entender que de tal exame pode resultar prejuízo para a saúde. 4 – Não sendo possível o exame de pesquisa de álcool nos termos do número anterior deve o médico proceder aos exames que entender convenientes para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
Por sua vez, o DL nº 162/2001, de 22 de Maio, manteve o teor deste artigo 162-°, que no seu nº 3, continuou a dizer: 3 – No caso referido no número anterior, o exame para a pesquisa de álcool no sangue só não deve ser realizado se houver recusa do doente ou se o médico que o assistir entender que de tal exame pode resultar prejuízo para a saúde.
Contudo, o DL nº 265-A/2001, de 28 de Setembro, vem dar a seguinte redacção ao Artigo 162 […] 1 – Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 159.º. 2 – Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool. 3 – Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito, o médico deve proceder a exame pericial para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
Redacção ou teor correspondente ao actual artigo 156º, do Código da Estrada, alterado pelo DL nº 44/2005, de 23 de Fevereiro.
Seguindo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, significa que da passagem do regime dos Decretos-leis nºs 2/98 e 162/2001 para o regime do DL nº 265-A /200 1, de 28 de Setembro, existiu uma alteração inovatória, agravando a situação do condutor interveniente em acidente de viação. A mesma inovação e agravação que passou a existir para qualquer condutor, ainda que não interveniente em acidente, com o regime actual. Com um reparo ainda: Esta alteração do DL nº 265-A/2001 ao artigo 162º, que é igual à do actual artigo 156º, pode ter uma leitura, aquela que teve o julgador de 1ª instância, em que nem sequer é possível/admissível existir recusa à colheita de amostra de sangue! Temos para nós como a mais correcta, apesar de tudo, que a recusa sempre seria possível sem prejuízo de o recusante incorrer em crime de desobediência. Mas acontece que, pelos fundamentos aduzidos, nem sequer esta leitura deve ser admissível face à não autorização legislativa sobre esta possibilidade de agravação da situação do condutor, ou seja, de que se o condutor recusar a colheita de sangue, praticará um crime de desobediência. É que mesmo esta leitura da actual solução legislativa está ferida de inconstitucionalidade orgânica.
Para o suprimento do direito de o condutor/sinistrado poder livremente recusar a colheita de sangue para efeitos de análise ao grau de alcoolémia do condutor, na medida em que esta alteração legislativa tem um conteúdo inovatório, necessitava o legislador governamental da autorização legislativa, pois que a decisão normativa primária cabia à Assembleia da República, por força da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.
Assim, a colheita de sangue para aqueles fins, ao abrigo dos actuais artigos 152º, nº 3, 153º, nº 8 e 156º, nº 2, todos do Código da Estrada, na redacção dada pelo DL nº 44/2005, de 23 de Fevereiro – sendo a deste último preceito já desde a redacção dada pelo DL nº 265-A/2001, de 28 de Setembro – sem possibilitar ao condutor a sua recusa, está ferida de inconstitucionalidade orgânica.
Nestes termos, a concreta recolha de sangue ao arguido recorrente que serviu de base à análise para apurar o seu grau de alcoolémia, constitui prova ilegal, inválida ou nula, que não pode produzir efeitos em juízo»
Nestes termos, não pode o tribunal dar como não provado o resultado do referido exame.
Quanto às condições pessoais e económicas do arguido foram pelo próprio relatadas.
Mais se atendeu ao CRC junto aos autos.
2. No Tribunal Constitucional, a relatora, no despacho que determinou a apresentação de alegações, consignou o seguinte:
Para alegações, com a seguinte advertência:
O requerimento de interposição do recurso faz referência às normas constantes dos artigos 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 8 e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada. No entanto, resulta da fundamentação da sentença recorrida (fls. 43-46) que apenas foi recusada a aplicação da norma constante do artigo 156.º, n.º 2 do Código da Estrada.
Deve, assim, entender-se que o objecto do presente recurso consiste apenas na apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 156.º, n.º 2 do Código da Estrada.
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou alegações, concluindo:
1. Quer segundo o artigo 162°, nºs 1 e 2 do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n° 2/98, de 3 de Janeiro, quer segundo o artigo 156° do mesmo Código na actual redacção (saída das alterações operadas pelo Decreto-Lei n° 265-A/2001, de 28 de Setembro e pelo Decreto-Lei n° 44/2005, de 23 de Fevereiro), em caso de acidente trânsito, quando não for possível realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, deve ser realizado, no estabelecimento de saúde para onde os intervenientes forem conduzidos, exame de pesquisa de álcool no sangue.
2. Como resulta da análise conjugada dos n° 2 e 3 do artigo 156° da Código da Estrada, na actual redacção, com o disposto nos n°s 3 e 4 do artigo 162°, na redacção dada pelo Decreto-Lei n° 2/98, em qualquer dos regimes, o interveniente em acidente pode recusar submeter-se àquele exame, caso em que se procederá à realização de outros exames médicos para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
3. Esta conclusão também se extrai do Acórdão n° 275/2009 do Tribunal Constitucional que julgou organicamente inconstitucional a norma do n° 8 do artigo 153° do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n° 44/2005, uma vez que se considerou que a alteração introduzida por aquele diploma legal retirara ao condutor o direito de recusar a recolha de sangue, direito que a redacção anterior (dada pelo Decreto-Lei n° 265-A/2001), lhe concedia.
4. Ora, o Decreto-Lei n° 44/2005 não introduziu qualquer alteração relevante ao artigo onde se inclui a norma do n° 2 do artigo 156° do Código da Estrada, mantendo-se, no essencial, a redacção anterior, conferida pelo Decreto-Lei n° 265-A/2001 (artigo 162°).
5. Deste modo, não tendo a actual redacção do artigo 156° do Código da Estrada qualquer carácter inovatório em relação ao estabelecido no artigo 162° do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n° 2/98, a norma do n° 2 daquele artigo 156° não é organicamente inconstitucional, mesmo entendendo que se está perante matéria cujo tratamento legislativo cabe na competência exclusiva da Assembleia da República (artigo 165.°, n.° 1, alíneas b) e e) da Constituição).
6. Pelo exposto, deve conceder-se provimento ao recurso.
O recorrido não contra-alegou.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A conformidade constitucional da norma que integra o objecto do presente recurso, tal como delimitado pela relatora no despacho que determinou a apresentação de alegações, já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 487/2010, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que não julgou a norma inconstitucional e cuja fundamentação se acompanha e se dá aqui por integralmente reproduzida.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não conhecer do objecto do recurso na parte respeitante às normas constantes dos artigos 152.º, n.º 3 e 153.º, n.º 8 do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro;
b) não julgar organicamente inconstitucional a norma constante do artigo 156.º, n.º 2 do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro;
c) e, em consequência, conceder parcialmente provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo que agora se formula quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.